Foram seis meses usando Ritalina, conhecida como a “p�lula da intelig�ncia”. Era o fim da gradua��o e Bruno* precisava se concentrar e ter foco para fazer os trabalhos de conclus�o de curso e carimbar a formatura. Seguiu os passos de uma amiga e passou a usar o rem�dio de forma indiscriminada e indevida. Mas, o est�mulo se transformou em torpor e o professor, hoje com 31 anos, viu sua vida se arrastar para o fundo do po�o, num quadro agudo de depress�o. “A faculdade � muito dif�cil e queremos nos sair bem de qualquer maneira. O medicamento fazia efeito, pois n�o pensava em mais nada, s� no que precisava fazer, ou seja, estudar. N�o pensava nem sequer que devia comer. � como se estivesse morto naquilo ali. Ela tolhe a puls�o da sua vida”, conta.
O psiquiatra Renato Ara�jo destaca que o uso indevido desse tipo de medicamento ocorre em todas as faixas de idade. Na inf�ncia, os pr�prios pais s�o os respons�veis por dar o rem�dio aos filhos, na expectativa de um rendimento escolar satisfat�rio. Adolescentes e jovens usam para melhorar o desempenho na escola ou na faculdade e tamb�m em festas e baladas. Adultos apelam para a Ritalina para melhorar a performance em cursinhos e concursos. Para essas pessoas que n�o t�m o TDAH, a expectativa � de que o rem�dio desempenhe o mesmo papel no corpo saud�vel, fazendo “bombar” a capacidade de estudar. Renato Ara�jo, diretor da Cl�nica Mangabeiras, na Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte, e especialista em neuromodula��o, afirma que a p�lula da intelig�ncia n�o produz efeitos nesses casos ou �, no m�nimo, question�vel. “Esses medicamentos usados em pessoas saud�veis melhoram a intelig�ncia, a cogni��o do paciente, a ponto de irem melhor em estudo ou concurso? � como se fosse uma bomba muscular. Estudos modernos mostraram que n�o h� efic�cia comprovada de que melhoraram o desempenho em pessoas sem a doen�a. � mais uma sensa��o subjetiva”, afirma.
O m�dico explica que o TDAH � normalmente identificado na inf�ncia ou, tardiamente, em quem n�o teve o diagn�stico precoce ou � portador de uma forma leve da doen�a. O paciente apresenta dificuldades em tr�s esferas em maior ou menor grau: hiperatividade (crian�a agitada, inquieta, n�o consegue ficar parada em lugar algum), impulsividade (por causa disso, pode at� ser agressiva) e desaten��o (a crian�a fica “no mundo da lua” e n�o consegue ter a aten��o sustentada). De acordo com o psiquiatra, meninos costumam apresentar o subtipo hiperativo e meninas, o desatento. Al�m desse, h� o subtipo combinado, com todas as caracter�sticas. “H� outros sinais, como dificuldade em aprendizado e na motricidade fina, associada � dislexia. A resposta em crian�as e adultos que tratam o TDAH � muito boa � medica��o. Quando bem indicada, pode trazer benef�cios diversos”, diz. O rem�dio pode ser associado ainda ao tratamento de pacientes com quadro grave de depress�o, para melhorar a energia.
"Voc� n�o consegue nem mais ler os textos. A�, sai dali para ir ao psiquiatra e tomar antidepressivo. � um c�rculo muito perverso"
Bruno*, 31 anos, professor
Mas, mesmo em pessoas com diagn�stico positivo para a enfermidade, podem ocorrer efeitos colaterais: ins�nia, falta de apetite, perda de peso e irritabilidade. Algumas crian�as ficam ainda mais agitadas e indiv�duos com propens�o psiqui�trica podem desenvolver quadros psic�ticos, ressalta o m�dico. Quem usa sem necessidade pode, al�m desse quadro, criar depend�ncia qu�mica. “Os psicoestimulantes t�m baixo potencial de depend�ncia, mas quando ingeridos de maneira abusiva e sem prescri��o m�dica, em doses cada vez maiores, causam a necessidade de uso constante. Em doses altas, pode dar euforia e sensa��o de prazer. Pode ser usado como uma coca�na. H� pacientes, inclusive, que quebram a medica��o para cheir�-la”, relata o psiquiatra.
MERCADO PARALELO No consult�rio, ele diz que � comum receber pais � procura do medicamento por causa do baixo rendimento escolar dos filhos. “Na consulta, percebemos outros quadros. �s vezes, a ansiedade � dos pr�prios pais. No caso de concurseiros, muitos falam abertamente que querem o rem�dio para estudar”, diz. H� ainda quem simule sintomas da TDAH para conseguir a receita especial do rem�dio tarja preta (venda controlada) e quem compre diretamente com pacientes. O estudo de Harvard revela que 25% de adolescentes com o transtorno de hiperatividade e d�ficit de aten��o vendem a medica��o, fomentando, assim, um mercado paralelo e perigoso. A experi�ncia do m�dico Renato Ara�jo n�o o deixa mentir: nos �ltimos anos, tem aumentado o uso indiscriminado de psicoestimulantes. “A competi��o tem ficado cada vez maior e precoce. H� um componente importante da nossa sociedade atualmente, de que tudo tem que dar resultado.”

O Minist�rio da Sa�de e nem a Secretaria de Estado de Sa�de t�m a dimens�o do consumo de metilfenidato, o princ�pio ativo que d� nome aos psicoestimulantes, uma vez que ele n�o faz parte da Rela��o Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) do Sistema �nico de Sa�de (SUS). De acordo com o minist�rio, alguns estados e munic�pios inclu�ram a subst�ncia na rela��o local e fazem a distribui��o. “Sendo assim, a pasta publicou recomenda��es para que todos os gestores locais elaborem protocolos cl�nicos e diretrizes terap�uticas para controlar, de forma mais efetiva e eficiente, o uso desse rem�dio, que pode desencadear efeitos colaterais”, informou, por meio de nota. Em Minas, n�o h� distribui��o pelo sistema p�blico. (*) Nome fict�cio
Consumo alarmante
O Brasil desconhece o tamanho do problema relacionado ao mau uso de rem�dios com indica��o para tratar transtorno de d�ficit de aten��o e hiperatividade (TDAH). A Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) n�o tem o dado consolidado com a evolu��o das vendas de metilfenidato, princ�pio ativo desses medicamentos. Por ser uma subst�ncia controlada, todas as vendas no varejo farmac�utico s�o informadas para a ag�ncia – ela s� � comercializada mediante apresenta��o de receita m�dica. Mas, a Anvisa informa que isso n�o exclui a oferta do medicamento de forma irregular em lugares fora das drogarias autorizadas. “Por�m, os usu�rios devem ter bastante cautela com esse tipo de produto, pois n�o h� nenhuma garantia de sua origem e composi��o”, afirmou, por meio de nota.
Sem estat�sticas oficiais, a percep��o fica por conta de quem est� nos consult�rios atendendo quem toma irregularmente os medicamentos esperando melhorar o desempenho acad�mico. A conselheira e coordenadora da Comiss�o de Psicologia Escolar e Educacional do Conselho Regional de Psicologia, Stela Maris Bretas Souza, classifica como “alarmante” a quantidade de metilfenidato – o princ�pio ativo dos populares Ritalina, Concerta e Venvanse – consumida no Brasil. “Geralmente, � indicado para crian�as com comportamento muito agitado ou desatentas para ver se, controlando a agita��o e melhorando a aten��o, consequentemente, melhora o desempenho escolar. O medicamento ajuda a impulsionar foco e aten��o, fazendo o menino ficar mais centrado e, logo, com desempenho mais desej�vel”, diz Stela.Ins�nia, falta de apetite, perda de peso e irritabilidade. Algumas crian�as ficam ainda mais agitadas e indiv�duos com propens�o psiqui�trica podem desenvolver quadros psic�ticos.
Mesmo diante de indica��o cl�nica, a psic�loga questiona a prescri��o: “N�o h� comprova��o cient�fica da hiperatividade enquanto doen�a”, afirma. Ela relata conhecer v�rios casos de pessoas que se preparam para fazer concurso p�blico e que conseguem receita para a compra do rem�dio, na expectativa de se concentrar mais para render mais. “A que pre�o? Que pre�o estamos pagando com o uso indiscriminado da medica��o?”, questiona.
� o pre�o que Bruno diz n�o querer mais pagar. Diante do psiquiatra, simulava sintomas pr�prios de TDAH para obter a receita. “O fato de o rem�dio dar o foco n�o significa ter atividade social normal. Pelo contr�rio. � altamente prejudicial. Quando ativamos o c�rebro para falar de v�rios assuntos, o organizamos para pensar. A Ritalina diminui essa m�ltipla aten��o. A pessoa fica boba, mata o desejo ligado a essa hiperatividade. Fica concentrada em determinado assunto e n�o pensa em mais nada”, conta.
Depois de usar o medicamento por longo per�odo, o professor entrou em depress�o, teve s�ndrome do p�nico e ficou inseguro. O �pice veio quando um dia, num m�s de julho, ele largou os livros na mesa e entrou no chafariz da universidade onde estudava, em Belo Horizonte. “Pensei que nada fazia sentido, queria me sentir vivo. Os guardas me levaram, torci a roupa e voltei para estudar”, lembra. Dali, ele foi encaminhado ao servi�o de psicologia da universidade, onde encontrou apoio para reverter o quadro.
“Tinha dificuldade de estudar, mas era uma quest�o de foco, concentra��o e objetivo e n�o de doen�a. As pessoas veem falta de foco como transtorno de d�ficit de aten��o e hiperatividade. Isso n�o � uma enfermidade. � disciplina que voc� p�e em sua vida. Mas, para facilitar, muita gente quer um rem�dio. Estamos numa �poca de medicaliza��o de tudo”, diz. “S�o pais que trabalham, n�o d�o conta da educa��o dos filhos e d�o Ritalina �s crian�as. N�o conseguem ver por que o menino est� sem foco, se est� dormindo na hora certa, por exemplo. � uma indisciplina que compromete a educa��o”, avalia. Bruno conta que, em determinado momento, al�m da depend�ncia, passa o suposto efeito da intelig�ncia. “Voc� n�o consegue nem mais ler os textos. A�, sai dali para ir ao psiquiatra e tomar antidepressivo. � um c�rculo muito perverso.”
Por meio de nota, o laborat�rio Novartis, que produz os comprimidos com o nome comercial de ritalina, informou que n�o endossa o uso de seus produtos fora das especifica��es de seus respectivos registros e promove apenas o uso aprovado em bula de seus medicamentos. "A Novartis repudia veementemente o uso indevido do cloridrato de metilfenidato e enfatiza que o medicamento deve ser usado somente conforme as indica��es em bula e mediante a prescri��o de um m�dico especializado", afirma o texto. "A seguran�a dos tratamentos e a sa�de das pessoas s�o premissas fundamentais para a Novartis. A empresa acredita que � preciso apoiar o fortalecimento do respeito � prescri��o m�dica e a ades�o ao tratamento designado pelo profissional da sa�de", conclui.

RITALINA
O QUE � Assim como concerta e venvanse, a ritalina � um psicoestimulante indicado para melhorar a cogni��o de pacientes diagnosticados com Transtorno de D�ficit de Aten��o e Hiperatividade (TDAH). Feitos � base de derivados da anfetamina, esses medicamentos atuam aumentando os n�veis de dopamina em importantes regi�es cerebrais. Ajusta foco e aten��o para, nos casos de diagn�stico positivo para a doen�a, melhorar o desempenho escolar. Pode ser associado ainda ao tratamento de pacientes com quadro grave de depress�o, para melhorar a energia.
USO IRREGULAR Estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, mostra que 3% a 6% da popula��o usa psicoestimulantes para outro fim: trazer mais concentra��o nos estudos e aumentar o desempenho na escola, na faculdade ou em concursos. Entre adolescentes, essa propor��o chega a 35%. Grande parte de quem n�o tem indica��o cl�nica compra o medicamento de pacientes com TDAH, criando um mercado paralelo.
EFEITOS COLATERAIS Ins�nia, falta de apetite, perda de peso e irritabilidade. Algumas crian�as ficam ainda mais agitadas e indiv�duos com propens�o psiqui�trica podem desenvolver quadros psic�ticos. Pessoas que usam sem necessidade podem, al�m de ter as rea��es pr�prias do medicamento, ficar dependente da droga.