
Naquele ano, os irm�os Piri�s, Orlando e Sebasti�o Patr�cio, aterrorizavam o sert�o mineiro, saqueando s�tios e levando p�nico a fam�lias, enquanto Ramiro, o “Bandido da Cartucheira”, dava trabalho � pol�cia e se transformava em uma lenda nos arredores de Belo Horizonte. Temer o trio era a regra, em um tempo em que cada movimento dos criminosos locais que fizeram fama ocupava grande parte do notici�rio local.
Mas, depois de 18 de novembro de 1978, portanto h� exatos 40 anos, eles sa�ram repentinamente de cena. Nas p�ginas dos jornais, ganhava espa�o uma trag�dia que horrorizou todo o mundo: o suic�dio coletivo comandado pelo norte-americano James Warren Jones (1931-1978), o pastor Jim Jones, l�der da seita Templo do Povo. Em um acampamento em Jonestown, na Guiana, Am�rica do Sul, cerca de 900 pessoas morreram depois de ingerir veneno com suco de frutas. O que nem todos sabem � que, para contar a hist�ria desse l�der messi�nico, � preciso passar pela capital mineira. Dezesseis anos antes da trag�dia, Jim Jones morara no Bairro Santo Ant�nio, em uma ent�o pacata Regi�o Centro-Sul. A cidade longe do mar e protegida por montanhas foi considerada, no in�cio da d�cada de 1960, um dos nove lugares no planeta para se esconder do apocalipse nuclear ou fim dos tempos.

Morador desde que nasceu de uma casa quase em frente do n�mero 203 da Rua Marab�, onde Jim Jones viveu com a fam�lia entre 1962 e 1963, o banc�rio �der Geraldo de Souza, de 65 anos, casado, se lembra muito bem do “homem alto, rosto arredondado, sempre de terno preto e carregando uma pasta preta”, que ele via sair ou chegar em casa. “Falava ingl�s, nunca portugu�s, da mesma forma que os filhos, que ent�o eram mais ou menos da minha idade”, conta, em refer�ncia ao americano que chegou � capital mineira em 11 de abril de 1962, segundo registro da �poca do Departamento de Estrangeiros da Pol�cia Federal.

Aquele era um tempo em que Belo Horizonte ainda permitia brincadeiras naquela rua de cal�amento, tranquila, bem diferente da via agitada de hoje, que desemboca na Avenida Prudente de Morais. “�s vezes, lanchava na casa deles, comia biscoitos e chupava laranja. Lembro-me dos adotados, um negro e dois asi�ticos, e do filho biol�gico do casal”, recorda-se o banc�rio aposentado. A casa n�o dispunha de muitos m�veis, acrescenta: “Tinha o b�sico, a mudan�a que trouxeram. E havia uns colch�es espalhados pela ch�o”. A moradia foi ocupada pela fam�lia norte-americana por 10 meses, per�odo em que l� viveram Jim Jones, a mulher, Marceline Mae Jones, o filho biol�gico, Stephan, e os adotivos: James e os coreanos Lew Eric e Suzanne. “N�s cham�vamos o menino negro de Smith”, conta �der.
CRIAN�AS Geralmente no fim da tarde, quando Jim Jones chegava do trabalho, costumava bater papo com um vizinho de frente, que falava ingl�s. O que impressionava �der, ent�o com quase 10 anos, era o n�mero de crian�as adotadas pelo casal. Por isso mesmo, quando soube da trag�dia ocorrida em um s�bado � noite, na Guiana, imaginou que Jim Jones poderia ter estado no Brasil � procura de crian�as. “Todo mundo ficou muito assustado. Nosso pa�s era pobre, atrasado, acredito que ele estivesse aqui na esperan�a de algu�m lhe dar uma crian�a carente.”
Na sala de casa, na tarde de uma segunda-feira, o banc�rio aposentado volta a um per�odo da vida que n�o esqueceu. “Muitos adultos que conheciam melhor essa hist�ria morreram, outros se mudaram, e h� aqueles que n�o est�o com boa mem�ria. Mas, guardadas as devidas propor��es, acho que Jim Jones pode ser comparado a Hitler (Adolph Hitler, 1889-1945, l�der do nazismo), devido ao fanatismo. Talvez at� estivesse pensando em algo bom, mas foi pelo caminho errado”, acredita �der que, orgulhoso do bairro em que vive, conta que mora na mesma casa desde que veio ao mundo.
A equipe do Estado de Minas esteve por duas vezes na casa de n�mero 203 da Rua Marab�, que, depois da fam�lia Jones, teve outros moradores. Na primeira vez, pelo interfone, uma pessoa que trabalha para a fam�lia informou que os patr�es n�o estavam e que n�o poderia fornecer o telefone. Nova investida e outra mulher, tamb�m pelo interfone, contou que Jim Jones viveu na casa ao lado, hoje um centro esp�rita – um equ�voco, j� que os demais vizinhos indicam o local como a antiga resid�ncia do pastor. A constru��o j� n�o guarda semelhan�a com o antigo im�vel, em estilo moderno dos anos 1950/1960.
No lugar da grade, que deixava � mostra o jardim, foi erguido um muro. Reportagem da jornalista Maya Santana (leia depoimento), rep�rter do Estado de Minas na �poca, assegura o endere�o como do l�der da seita Templo do Povo (em ingl�s People’s Temple Church). Inclusive, foto da �poca, pertencente ao arquivo do EM registra um grupo de rep�rteres diante do im�vel de n�mero 203, dias depois da trag�dia na Guiana.

DEPOIMENTO
V�timas de um m�stico ensandecido - Maya Santana, jornalista (*)
“Eu tinha 27 anos, come�ara a trabalhar havia pouco na reda��o do Estado de Minas, quando o editor de Cidade, Rog�rio Perez, me incumbiu de fazer a grande reportagem do dia: contar como havia sido a misteriosa passagem por Belo Horizonte, 16 anos antes, do reverendo americano Jim Jones, que acabava de chocar o mundo ao induzir � morte cerca de 900 pessoas, em Jonestown, na Guiana. O suic�dio coletivo tornou-se a principal not�cia internacional daquele novembro. E meu chefe me deu a miss�o de descobrir tudo o que aquele macabro personagem havia feito durante o tempo em que morou na capital mineira.
Daqueles dias, sem celular nem internet, me lembro muito bem do profundo impacto que as mortes causaram, sobretudo porque entre as v�timas do m�stico ensandecido havia centenas de crian�as. Eu me recordo tamb�m da surpresa dos belo-horizontinos ao tomar conhecimento que Jim Jones havia morado por mais de um ano na cidade, sem chamar a aten��o de ningu�m. Mas o que ficaria para sempre gravado em minha mem�ria � a contradi��o entre o perfil do homem ‘bom e generoso’ tra�ado pelos vizinhos da casa onde morou na Rua Marab�, n�mero 203, no Bairro Santo Ant�nio, e o monstro que revelou ser o l�der da seita Templo dos Povos.
Voltei para a reda��o do jornal especialmente impressionada com o depoimento de uma senhora que trabalhava para uma fam�lia vizinha dos Jones – o pastor era casado e tinha quatro filhos, tr�s deles adotivos. Para ela, aquele homem alto e sempre alegre jamais poderia ter causado tal trag�dia. ‘� dif�cil a gente acreditar. Ele era muito bom. Enchia sacos de mantimentos e distribu�a entre os pobres’, contava, espantada. Muito surpresos ficaram tamb�m outros vizinhos, evidenciando que, pelo menos em Belo Horizonte, Jim Jones havia se comportado como um verdadeiro pastor. A cobertura das suas pegadas pela capital durou v�rios dias e atraiu a imprensa nacional e internacional.
Investigar as a��es do americano em BH teve profundo impacto sobre mim, naquele distante 1978, quando iniciava minha carreira de jornalista. Fiquei t�o marcada com a hist�ria daquele homem que li praticamente tudo sobre ele. E, 40 anos depois, ainda leio. Nunca saiu da minha cabe�a o trecho de uma de suas biografias, no qual o autor conta que, quando nasceu, em 13 de maio de 1941, sua m�e, Lynetta Putnam, estava certa de ter ‘dado � luz um messias’. Mas Jim Jones passaria para a hist�ria como o mentor do maior suic�dio coletivo de todos os tempos.”
(*) Maya Santana foi rep�rter do Estado de Minas na d�cada de 1970
BH: REF�GIO NUCLEAR PLANET�RIO
Antes de morar na Rua Marab�, no Bairro Santo Ant�nio, Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte, o pastor norte-americano Jim Jones, que horrorizaria o mundo ao liderar o suic�dio de 900 pessoas na Guiana, teria passando algum tempo no Hotel Financial, na Avenida Afonso Pena, Centro da capital. Completando sete d�cadas neste ano, o hotel, de propriedade do empres�rio Ant�nio Luciano Pereira Filho (1913-1990), era dos mais importantes do estado nas d�cadas de 1950 e 1960. Segundo um funcion�rio, hoje n�o h� mais documentos que possibilitem verificar a estada de Jones. “O registro do h�spedes era bem diferente do atual. Cada um preenchia uma ficha com dados pessoais, que era enviada � pol�cia. As mesmas informa��es eram armazenadas em um livro, que ficava no hotel. Mas n�o temos mais esses livros”, contou. Na �poca, o chamado arquivo morto era queimado de cinco em cinco anos. Outra informa��o � que Jim Jones teria trabalhado na extinta lavanderia Eureka, o que foi descartado, em 1978, pelo diretor-comercial da empresa, que fizera levantamento no departamento pessoal e n�o encontrara tal registro de emprego de um estrangeiro.
Coincide com a passagem do l�der messi�nico por Belo Horizonte uma reportagem de autoria da jornalista Carolina Bird, publicada na revista norte-americana Esquire, em janeiro de 1962, ano em que Jim Jones chegou � capital mineira. Em tempos de Guerra Fria, como se tornou conhecida a corrida armamentista e nuclear que op�s os Estados Unidos � Uni�o Sovi�tica, a reportagem listava os nove lugares no mundo para se proteger no caso de uma hecatombe at�mica, paranoia que tomava conta dos americanos. Para escrever a mat�ria, a jornalista se baseou em trabalhos de especialistas militares em radia��o at�mica e da Defesa Civil dos Estados Unidos.
O objetivo dos pesquisadores era “encontrar �reas que n�o fossem afetadas pelos danos diretos de ataques ou pelas cinzas nucleares, mas que tamb�m tivessem recursos suficientes para o homem reconstruir uma civiliza��o industrial”. Na rela��o de locais, constavam, no Hemisf�rio Norte, Eureka, na Calif�rnia (EUA), Cork (Irlanda), e Guadalajara (M�xico). No Hemisf�rio Sul, figuravam o Vale Central do Chile, Mendoza (Argentina), Melbourne, (Austr�lia), Christchurch (Nova Zel�ndia), Tananarive (Madagascar, na �frica), e o �nico representante do Brasil: Belo Horizonte.
Entre as caracter�sticas positivas apontadas pela reportagem da Esquire em BH, cidade ent�o com cerca de 600 mil habitantes, estavam a localiza��o, distante do mar e protegida por montanhas; a produ��o de latic�nios, fundamental para longos per�odos de escassez de alimentos; a riqueza mineral, essencial para a produ��o industrial; e tamb�m o clima tropical, seco, o que garantiria a sa�de, em especial para impedir doen�as pulmonares.
TRAG�DIA NA GUIANA Quem tem em torno de 50 anos ou mais certamente se lembra do suic�dio coletivo na Guiana. Para os mais jovens, interessados em hist�ria, uma pesquisa em arquivos de jornais ou na internet descortina o horror em massa. O tr�gico fim dos seguidores do Templo do Povo come�ou com a morte do deputado americano Leo J. Ryan, que investigava den�ncias contra a seita, e tamb�m as do rep�rter Don Harrys, de 42, da rede NBC, do cinegrafista Robert Brow, de 36, da mesma emissora, do fot�grafo Gregory Robinson, de 27, do jornal San Francisco Examiner e de Patr�cia Park, de 18, uma das seguidoras da seita. O epis�dio causou como��o e levou o ent�o presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, a destacar que o “empenho de Harrys em conseguir informa��es o levou a uma tr�gica morte”.
Segundo pesquisa em jornais da �poca, Jim Jones pregava o suic�dio coletivo caso surgissem amea�as � sua seita, “e, aparentemente, deu ordem e o exemplo ap�s a investiga��o do representante da Calif�rnia no congresso (deputado americano Leo J. Ryan) e dos jornalistas”.
A “imola��o coletiva” come�ou com uma rajada de 85 tiros de armas semiautom�ticas, conforme um advogado contou � imprensa na capital da Guiana, Georgetown. A testemunha prosseguiu: ap�s matar o congressista americano e outros integrantes da comitiva, “os fan�ticos religiosos usaram veneno durante um culto”. Entre os seguidores da seita Templo do Povo havia “grupos de negros pobres, pessoas de classe m�dia de todas as etnias, viciados em drogas, criminosos, prostitutas que viviam nas ruas, bem como enfermeiras, engenheiros, universit�rios, funcion�rios do governo e advogados”.
Logo depois do culto fatal, cerca de 80 pessoas, a maioria na faixa de 60 anos, conseguiram escapar, alegando “que ainda n�o era hora de morrer”. Segundo os relatos, o pastor falava em “fraternidade e igualdade, exortando � integra��o”, mas tamb�m dizia que a matan�a e a destrui��o estavam pr�ximas. Um dos filhos do pastor, que estava nos Estados Unidos na �poca do suic�dio coletivo, contou que o pai, ent�o com 46 anos, andava “doente, paranoico e drogado”. Jim Jones foi encontrado com um tiro na cabe�a. Na propriedade de 12 mil hectares, foram achados mais de US$ 1 milh�o em moeda e ouro.
Cronologia fatal

1950
O norte-americano James Warren Jones, que se tornou conhecido como pastor Jim Jones, funda a seita Templo do Povo, em Indian�polis, capital do estado de Indiana, nos Estados Unidos. Mais tarde, a sede � transferida para S�o Francisco, na Calif�rnia, atraindo maior n�mero de pessoas.
1962
Em janeiro, a revista norte-americana Esquire publica reportagem indicando nove locais no mundo para se proteger do apocalipse. Belo Horizonte � a �nica cidade brasileira citada.
1962/1963
Durante cerca de 10 meses, Jim Jones e fam�lia vivem em uma casa da Rua Marab�, no Bairro Santo Ant�nio, Regi�o Centro-Sul de BH. Antes, o pastor teria morado no Hotel Financial, no Centro da capital.

1978
Em 18 de novembro, integrantes da seita Templo do Povo, liderada por Jim Jones, matam cinco pessoas: um deputado dos Estados Unidos, que havia ido � Guiana para investigar o grupo, tr�s jornalistas e uma jovem.
1978
Na noite de 18 de novembro ocorre o suic�dio coletivo em Jonestown, na Guiana: cerca de 900 integrantes do Templo do Povo morrem depois de ingerir veneno com suco de fruta.
