
Brumadinho - “Para ter inimigos, n�o � preciso declarar guerra, basta que se diga a verdade.” Era assim que Sirlei de Brito Ribeiro, de 48 anos, se definia no status do WhatsApp. A mulher inquieta, incisiva e muito inteligente sempre se empenhou ativamente nos trabalhos pela comunidade do C�rrego do Feij�o e foi uma das v�timas do rompimento da barragem da Vale t�o pr�xima do local em que mantinha sua milit�ncia social. Vinte e um anos mais novo, Diego Antonio de Oliveira, empregado da Vale, tamb�m perdeu a vida que a lama dos rejeitos de ferro levou. Os destinos de Sirlei e Diego se cruzaram justo na corajosa decis�o de salvar outras vidas no momento em que se deram conta da cat�strofe, mas faltou tempo para que eles conseguissem.
Os animais eram como filhos de Sirlei. Ela tinha dezenas deles na grande casa em que vivia com o marido, o engenheiro ge�logo Edson Luiz Albanez, de 64. Pav�o, marreco, cachorro, papagaio, arara e galinhas ornamentais eram alguns dos que ocupavam o jardim que foi tomado pelo mar de lama em 25 de janeiro. A principal hip�tese para a morte de Sirlei � que ela teria corrido e ligado a caminhonete, mas voltou para buscar Bibi – cadelinha da ra�a Lhasa Apso, pela qual a professora era apaixonada.
O Corpo de Bombeiros a encontrou abra�ada com o animalzinho. Diego tamb�m foi identificado pelos bombeiros, gra�as aos documentos que carregava no bolso. O pai dele, o operador de instala��es Carlos Ant�nio, o Carlinhos, que sobreviveu � trag�dia, est� convencido de que o filho foi ao restaurante do complexo da Vale na esperan�a de avisar os companheiros sobre o desastre e tentar salv�-los, mas n�o teve tempo para isso.
Carlinhos deu seu emocionado depoimento ao Estado de Minas: “Era pra ele estar no meu lugar, eu tenho quase certeza que ele foi pro refeit�rio para tentar avisar o pessoal e salvar mais gente, mas foi muito r�pido”. O pai de Diego conta que estava de p� do lado de cima do refeit�rio. “Passaram dois caras da central por mim, passou o La�rcio, ele bateu no meu ombro e me chamou pra almo�ar. Nesse intervalo meu filho chegou, a gente ainda brincou com o Rangel, que trabalhava l� com a gente e os dois desceram. Eu sentei no lugar dele no carona, o Gleisson ainda brincou e falou: O Diego arruma cada uma. Ele estava com um �culos que tinha ganhado, olhou pra mim e saiu rindo: Era a despedida dele”, lembra emocionado.
At� entender que a barragem estava se rompendo, Carlinhos diz que se passaram menos de cinco minutos. Ele e o supervisor Gleison, que dirigia a caminhonete usada para salvar cerca de 30 pessoas, sa�ram em dire��o a outra �rea da mina e ainda cortaram caminho, para chegar ao ponto de destino mais r�pido, mas a lama os obrigou a mudar o caminho. “Em vez de ir no retorno, ele foi s� na metade do caminho, passou pela contram�o e subiu. Quando chegamos na cancela, onde tinha que apresentar o crach�, eu vi um poste caindo longe. Eu falei: Caiu um poste ali, ser� que foi um caminh�o que bateu nele? Ele respondeu: Uai, Carlinhos, esquisito, n�?”.
O di�logo entre os amigos continuou com a surpresa de ver outro poste cair. “A gente pensou, quando um poste caiu, puxa o outro, n�? Mas Deus ajudou e um britador subiu numa altura, voltou e deu umas tr�s sacudidas e eu falei: Gleison, � a barragem que estourou, � a barragem. Nisso, ele ficou frio, e mesmo com o barro vindo, ele virou a caminhonete pra gente descer. Eu falava: Gleison vira, vira, vamos embora, o barro, o barro.”
O drama de Sirlei Ribeiro n�o foi diferente. O marido dela, o engenheiro ge�logo Edson Luiz Albanez, conversou com o EM sobre o �ltimo dia de vida da mulher e registrar o trabalho de Sirlei na comunidade. Ela colocou nomes em ruas e l�mpadas em postes e mediava, junto a empresas mineradoras, melhorias para os moradores da regi�o.
Secret�ria municipal de Desenvolvimento Social de Brumadinho, coordenadora do curso de direito da Faculdade Asa e advogada, Sirlei era casada e n�o tinha filhos. Nasceu em Brumadinho, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, mas cresceu no C�rrego do Feij�o – onde o pai trabalhava na �rea de minera��o. Levava uma vida muito simples na zona rural. “Ela queria abra�ar todos os problemas do mundo”, contou o marido, que a conheceu h� 13 anos.
Desde jovem, passou a lutar inquietamente pelos direitos dos moradores do local onde viveu e pelo qual era apaixonada. Reorganizou a Associa��o de Moradores e brigou por melhorias na estrutura da cidade. “Revitalizou o cemit�rio, a igreja e o campo. Al�m do mais, colocou nome nas ruas – que at� ent�o n�o eram identificadas - e l�mpadas em poste. O prop�sito era mostrar para as pessoas que aquilo que elas n�o viam como op��o era poss�vel”, contou o marido. Sirlei promovia festas na comunidade e ainda foi uma das respons�veis pela mobiliza��o para a cria��o de um time de futebol no munic�pio.
E ela fazia isso tudo com muita garra. Seja pelos caminh�es que colocavam as pessoas do C�rrego do Feij�o em risco por conta da velocidade com que transitavam em vias rurais ou pela poeira que afetava a sa�de da popula��o, ela buscava diminuir o impacto da minera��o na cidade que tanto amava. “Era uma mulher dura., mas amiga do representante da mineradora para assuntos comunit�rios. Choramos juntos em seu enterro”, lembrou. Ele contou que o casal n�o tinha medo e n�o fazia ideia do risco de rompimento da barragem. “N�o existia um temor rondando o ambiente. Todos estavam muito tranquilos.”
A LAMA TOMOU CONTA Sirlei morava com o Edson, h� cerca de sete anos, na Vila Ferteco – em uma casa de oito quartos na mata, a poucos metros do p�tio de opera��es da Vale na Mina do Feij�o. Na �ltima sexta-feira, Edson contou que saiu de casa, por volta das 11h, para uma reuni�o de trabalho em Belo Horizonte. Sirlei, que ainda estava de f�rias do trabalho e retomaria as atividades na pr�xima semana, estava em casa. Edson perguntou se ela gostaria de acompanh�-lo: “N�o quis ir. Tinha afazeres”, lembrou o marido. L�, ficaram Sirlei, o jardineiro e uma empregada da casa.
“Que barulho � esse?”, perguntou Sirlei ao jardineiro. O funcion�rio, que trabalha h� mais de 10 anos com o casal, contou a Edson que ouviu Sirlei perguntar, tirou os protetores de ouvido que usava enquanto aparava o jardim e viu as �rvores se movimentando. Em disparada, saiu correndo. J� a faxineira, que estaria na sala, teria ouvido os gritos da patroa e dito: “Corre, doutora, corre!” O jardineiro e a dom�stica fugiram juntos. Correram cerca de 500 metros. Sirlei ficou. E a lama veio r�pido:.
Na fuga do operador Carlinhos e do amigo Gleison, encontrar um ponto mais alto para fugir da lama foi a salva��o deles e de muitos outras pessoas que ajudaram. Segundo Carlinhos, Gleison deixou as pessoas que estavam a salvo e decidiu voltar para tentar ajudar mais pessoas e em seguida os dois conversaram pelo r�dio. “Eu chamei ele no r�dio e perguntei como estava l� e ele perguntou: Carlinhos, voc� tem condi��o de me dar um apoio? Agora � s� eu e voc� aqui. Eu falei: Tenho sim. Ele disse: Esquece, eu sei que voc� est� pensando no seu filho que est� l�, mas desce que tem muita gente precisando. A� eu peguei a caminhonete, eu estava tremendo bastante ainda, e fui descendo pra encontrar ele na portaria. Encontrei crian�a, mulher gr�vida passando e fui recolhendo aquele povo”, diz emocionado.
O operador lembra que se juntou ao pessoal e encontrou um saco de ra��o vermelho e amarelo que come�ou a sacudir, na esperan�a de que os helic�pteros de buscas os avistassem. “Quando o helic�ptero passou, quando um cara chegou l�, eu fiquei mais aliviado. Mas mandaram a gente ficar quieto ali, porque corria risco de a barragem do Menezes estourar tamb�m. Eu tava com medo e perguntando, aqui � seguro? A� a carregadeira da Vale veio fazendo uma estrada pra tirar a gente dali, mas ela veio quebrando o mato e todo mundo come�ou a gritar, porque o barulho era igual ao da barragem. Mas a� a gente viu que eram eles para tirar a gente de l�”, completa.
Edson Albanez, o marido de Sirlei, s� tem as roupas do corpo com as quais saiu de casa, no dia do rompimento da barragem, para uma reuni�o de trabalho. “Encontrei um assessor de comunica��o da Vale e disse: ‘o que vai ser da minha vida?’, ‘para onde eu vou?’. Depois disso que a empresa providenciou o quarto em uma pousada. At� ent�o n�o havia nos procurado, assim como n�o procurou as fam�lias dos funcion�rios”, lamentou. Ele acredita que esse tipo de trag�dia ainda pode se repetir se a mentalidade da sociedade n�o mudar: “N�s vamos sim nos mobilizar, mas nada vai mudar de imediato. Precisamos de mais pessoas conscientes para enxergar a outra face da vida. N�o � s� dinheiro, eu gastei milh�es em uma casa e sai s� com a roupa do corpo”, ponderou.