
O recente an�ncio do Instituto de Pesquisas Econ�micas Aplicadas (Ipea) de que o Brasil bateu novo recorde de homic�dios, atingindo a marca de 31,6 mortes por 100 mil habitantes, trouxe novamente ao debate a quest�o da flexibiliza��o do uso de armas de fogo no pa�s. Logo na abertura da apresenta��o do Atlas da Viol�ncia, em Bras�lia, no inicio do m�s, o presidente do instituto, Carlos von Doellinger, defendeu o acesso a armamentos pelo “cidad�o de bem”, declarando: “A mim me incomoda a impossibilidade de o cidad�o ter uma arma em defesa de sua integridade f�sica, do seu patrim�nio. Acho que esse � um direito que o cidad�o deve ter”. Ele acrescentou discordar que armas l�citas tenham rela��o com o aumento de homic�dios. A pol�mica que se estende entre profissionais de diferentes forma��es chega nesta semana ao plen�rio do Senado, onde aguardam aprecia��o, na ter�a-feira, nada menos que sete projetos de decreto legislativo contra a amplia��o do acesso a armamentos no pa�s.
As diverg�ncias de opini�es se fizeram ouvir no mesmo evento do Ipea. Ap�s a interven��o do presidente do �rg�o, a pesquisadora Samira Bueno, que participou do Atlas da Viol�ncia pelo F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica, disse que o crescimento das mortes nos �ltimos cinco anos decorreu “de altera��es que o Estatuto do Desarmamento vinha sofrendo”. “Ele j� vinha sendo flexibilizado, o que o Bolsonaro faz � radicalizar isso”, disse, em refer�ncia ao decreto presidencial que flexibilizou o acesso a armas de fogo. Em meio ao debate que op�e autoridades e especialistas de diferentes �reas, um dos pontos mais pol�micos diz respeito ao porte de armamentos que eram tidos como restritos, ou seja, s� poderiam estar em poder das for�as de seguran�a.
Trag�dias recentes acabam ilustrando argumentos de defensores e cr�ticos da flexibiliza��o do acesso a armas. Na noite de 21 de maio, com uma espingarda munida de cartuchos calibre 36, muni��o de uso permitido que naquela arma possibilitava apenas um disparo por alimenta��o, Rudson Arag�o Guimar�es, de 39 anos, foi capaz de assassinar tr�s pessoas em uma igreja evang�lica em Paracatu, no Noroeste de Minas. Ele tinha matado a facadas, ainda, uma ex-namorada. Em novembro do ano passado, em Ribeir�o das Neves, na Grande BH, outra chacina trouxe revolta. Homens munidos de armas de diversos calibres, como o 9 mil�metros, que era de uso restrito das for�as de seguran�a, invadiram uma casa no Bairro Veneza, matando quatro pessoas. Apenas uma menina de 9 anos escapou, depois de ser avisada pela m�e, antes de esta morrer, para se esconder e alertar o pai, preso, de que ele seria o pr�ximo.
Al�m do drama das fam�lias e da revolta que os casos geraram, os dois exemplos ilustram um aspecto da pol�mica despertada pelo porte de armas de fogo ap�s o Decreto 9.785, assinado em 7 de maio pelo presidente Jair Bolsonaro: a permiss�o de calibres antes tidos como restritos tem potencial de ampliar a viol�ncia, aumentar a letalidade dos casos que potencialmente se traduziriam em feridos ou trazer novos desafios para o enfrentamento da marginalidade pela pol�cia?
Outra pol�mica surgiu com a possibilidade, pelo texto do decreto, de que pessoas com permiss�o para portar arma de fogo tivessem acesso a vers�es de fuzis n�o autom�ticos (incapazes de disparar rajadas). Uma dessas armas � o fuzil T4, da fabricante gaucha Taurus. A vers�o semiautom�tica da arma de fogo tem uma energia cin�tica de 1.320 joules, abaixo do limite estabelecido pelo decreto, que � de 1.620 joules, ainda que use a mesma muni��o da vers�o militar, que � o calibre 5.56 (o mesmo de um fuzil AR-15). Essa pol�mica levou o governo federal a limitar o porte de armas longas aos fazendeiros com comprova��o de posse justa de propriedade rural e aos ca�adores e atiradores esportivos. Mesmo com a mudan�a, a delibera��o presidencial ainda enfrenta processos de suspens�o na Justi�a Federal e no Supremo Tribunal Federal, al�m dos projetos de decreto legislativo que tornam sem efeito a delibera��o de Bolsonaro.
Letalidade divide legista e cirurgi�o
A gama de muni��es antes restritas e atualmente ao alcance de v�rios perfis de profissionais com a edi��o do decreto presidencial sobre porte de armas trouxe pol�micas como a igualdade de poder de fogo de civis e autoridades, bem como o temor de aumento da viol�ncia. Uma coisa � certa entre m�dicos que atendem feridos a bala: calibres restritos s�o mais poderosos e causam danos mais severos que os liberados.
No �ltimo ano, os hospitais que atendem pelo Sistema �nico de Sa�de (SUS) em Belo Horizonte contabilizaram 30.637 feridos por armas de fogo, sendo que 591 pessoas morreram nesses atendimentos. O n�mero de feridos no ano anterior foi 3% inferior, contabilizando 29.706, e o de mortos 2% menor, chegando a 580. “As armas de calibres restritos t�m uma pot�ncia maior e por isso causam les�es mais graves, tendendo a ser mais letais. Isso se deve � energia do propelente e n�o � massa. Para se ter ideia, a massa de um proj�til de calibre 22 (permitido) � semelhante � de um fuzil AR-15 (uso militar). Mas a velocidade do fuzil � maior”, compara o cirurgi�o-geral do Hospital de Pronto-Socorro Jo�o XXIII, R�mulo Souki.
O m�dico da institui��o, que � refer�ncia em atendimentos dessa natureza, diz que os danos desse tipo de muni��o podem matar em situa��es em que as permitidas poderiam n�o ser fatais. “Um disparo causa dois tipos de ferimento. Um � o t�nel de sua trajet�ria e o outro � a expans�o da cavidade interna dessa passagem. Com armas de alta energia, essa expans�o � maior e pode afetar �rg�os distantes. Um tiro de 22 no f�gado pode ser tratado, um de muni��o de alta energia pode explodir o �rg�o”, compara.
Contudo, de acordo com o chefe da Divis�o de Laborat�rio do Instituto de Criminal�stica da Pol�cia Civil de Minas Gerais, Ives Balthazar da Silveira Filho, e com o m�dico-legista Waterson Brand�o, o acesso a calibres com mais energia n�o dever� ter grande impacto no aumento do n�mero de mortes.
De acordo com o legista, em 1997, as pessoas assassinadas por armas de fogo levavam uma m�dia de dois disparos. Essa m�dia subiu para quatro em 2001 e continuou crescendo progressivamente, mesmo com a vig�ncia do Estatuto do Desarmamento. “Hoje, � comum mortes com 10 a 30 disparos chegarem para n�s, no Instituto M�dico-Legal (IML). Isso mostra que essas pessoas morreriam de qualquer forma, independentemente de serem v�timas de um calibre antes restrito ou de um permitido”, pondera Brand�o.
Na avalia��o do m�dico da Pol�cia Civil, os fatores que levam a um homic�dio s�o a inten��o do atirador, a sua disposi��o e a oportunidade. “A inten��o dita que a pessoa tentar� matar a outra de qualquer forma, pois essa � a sua meta. A motiva��o determina que a pessoa dar� quantos tiros for preciso e perseguir� sua v�tima at� onde puder. A oportunidade � que mostra a abertura que o atirador encontra para usar a arma. Assim, independentemente do calibre, ele pode emboscar sua v�tima, por exemplo”, indica.
Sobre o tipo da muni��o, o chefe da Divis�o de Laborat�rio do Instituto de Criminal�stica da Pol�cia Civil de Minas Gerais, Ives Balthazar da Silveira Filho, acredita n�o alterar substancialmente o n�mero de v�timas. “S�o tipos de armas que podem conferir capacidade de disparos e precis�o para igualar os armamentos de fazendeiros e dos ladr�es de propriedades. Para a pol�cia, isso n�o ser� problema de forma alguma. Pelo contr�rio. Quem tem armas legais � o cidad�o de bem. O cidad�o de bem traz mais seguran�a e � parceiro da pol�cia”, considera.
NEUTRALIZA��O Outro aspecto que a dupla da Pol�cia Civil questiona � a ideia de que calibres mais fortes que eram restritos, como .40, .45 e 9mm, teriam um poder de neutraliza��o maior do que os que eram permitidos antes do decreto presidencial, como 38 e 380. “Isso n�o � verdade. O que contam s�o as motiva��es e a habilidade do atirador em atingir pontos vitais, independentemente do calibre. Se voc� atingir o bulbo (tronco encef�lico) com um tiro de 22 entre os olhos, voc� paralisa a pessoa imediatamente. Uma pessoa que � alvejada por fuzil pode continuar a revidar”, pondera Balthazar.
“O tipo do proj�til da muni��o importa muito tamb�m. Os proj�teis de ponta oca, por exemplo, s�o melhores para a defesa, pois se alojam no agressor, fazendo grande estrago. J� os ogivais – em forma de ogiva – podem transfixar (atravessar) os oponentes e atingir quem o atirador n�o deseja”, diferencia, Silveira Filho.
J� o m�dico cirurgi�o-geral do Hospital de Pronto-Socorro Jo�o XXIII R�mulo Souki reitera a preocupa��o com a extens�o dos danos nos ferimentos mais severos, causados por armamento mais potente. “Quando recebemos v�timas de tiros de calibres mais potentes, como fuzis, j� esperamos um n�vel de les�o muito mais extenso”, pondera o m�dico.