Dia de Combate ao Feminic�dio: entenda por que Minas tem t�o pouco a celebrar
Apesar de avan�o legal, data lembrada pela primeira vez este ano ocorre em contexto em que uma mulher foi morta a cada tr�s dias no primeiro semestre de 2019 em Minas
postado em 24/08/2019 06:00 / atualizado em 27/08/2019 11:21
Uma mulher foi morta por marido, namorado, companheiro ou ex a cada tr�s dias em Minas Gerais no primeiro semestre deste ano, per�odo em que ocorreram 64 feminic�dios no estado e outras 104 tentativas. No Dia Estadual de Combate ao Feminic�dio, lembrado pela primeira vez em 2019, o quadro geral indica que os n�meros de crimes contra a vida s�o t�o escandalosos quando os de agress�es. Considerados dados de todo o ano de 2018, houve em territ�rio mineiro nada menos que 144.957 registros policiais de viol�ncia dom�stica e familiar contra a mulher. S�o 16 epis�dios por dia ou um aproximadamente a cada 4 minutos – sem contar os casos que nunca chegam ao conhecimento das autoridades. Uma curva que vem se mantendo praticamente est�vel nos �ltimos tr�s anos.
A Lei Maria da Penha, que completou neste m�s 13 anos de vig�ncia, trouxe arcabou�o legal de prote��o para as mulheres. No entanto, especialistas lembram que para que os assassinatos e o quadro geral de viol�ncia se reduzam, � necess�rio mudar uma cultura que persiste, embora bastante contestada, de que a mulher � propriedade do homem. Os pr�prios dados do feminic�dio demonstram o tamanho do desafio: apenas em Belo Horizonte, oito mulheres foram assassinadas entre janeiro e agosto deste ano por homens com quem haviam se relacionado, n�mero que j� ultrapassou a soma de todo o ano passado na capital, quando foram sete assassinatos.
(foto: Arte EM)
“Os feminic�dios ocorrem por uma s�rie de fatores. O sentimento de posse, o machismo muito presente na sociedade... O homem se sente dono da mulher e age como se pensasse: 'Se n�o � minha, n�o vai ser de mais ningu�m'”, afirma a promotora de Justi�a Patr�cia Habkouk. E completa: “A viol�ncia contra a mulher � antiga, fen�meno global, n�o vem de hoje. S�o mortes toleradas pela sociedade, coberta por costumes e tradi��es.”
A opini�o sobre a import�ncia de uma mudan�a cultural � compartilhada pela delegada respons�vel pela Delegacia Especializada de Atendimento � Mulher (Deam), Carla Concei��o. “Nossa sociedade machista guarda resqu�cios do patriarcado. H� muito o que se avan�ar nesse sentido”, afirma. Ela destaca a import�ncia da Lei Maria da Penha, mas ressalta que � preciso mais. “A lei sozinha n�o vai fazer transforma��o. Mesmo com a lei, se mantivermos a cultura do machismo, n�o conseguimos avan�ar e ter resultados positivos”, diz.
Com o prop�sito de formar futuras gera��es, ocorreram ontem a��es educativas para lembrar o Dia de Combate ao Feminic�dio. Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, foi realizado ato em mem�ria de L�lian Herm�gnes da Silva, morta aos 44 anos, em um crime que, de acordo com as investiga��es, ocorreu a mando do ex-marido. Na ocasi�o, foi lan�ado o concurso de reda��o com o tema "A import�ncia da educa��o na preven��o � viol�ncia contra a mulher e o feminic�dio", promovido pelas secretarias de estado de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social e de Educa��o e pelo Minist�rio P�blico.
Em Ribeir�o das Neves, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, ocorreu caminhada de conscientiza��o em trajeto entre a sede da prefeitura e a sede da delegacia especializada, na Rua Luiza Augusta Guimar�es, Bairro S�o Pedro. Somente no primeiro semestre foram solicitadas 128 medidas protetivas no munic�pio, com registro de 386 ocorr�ncias de viol�ncia. A Deam e a Delegacia de Homic�dios apuram cinco casos de feminic�dio na cidade. “� o primeiro ano do Dia Estadual de Combate ao Feminic�dio, por isso resolvemos marcar a caminhada para conscientizar a popula��o em rela��o � quest�o da viol�ncia contra a mulher, sendo o feminic�dio o �ltimo grau”, afirma a delegada.
Rede insuficiente
Um dos avan�os da Lei Maria da Penha foi a institui��o de uma rede de prote��o � mulher. No entanto, a promotora Patr�cia Habkouk lembra que � necess�rio avan�ar. “A estrutura da rede n�o � suficiente. Em Minas Gerais, s�o 853 munic�pios e temos delegacia da mulher e servi�o especializado em menos de 10%, 63 deles. A representante do MP lembra ainda que muitas mulheres n�o denunciam a viol�ncia. “Um grande desafio, muitas vezes, � a mulher enxergar que est� em situa��o de viol�ncia dom�stica. �s vezes, est� sob viol�ncia psicol�gica enorme, que n�o percebe.”
Para pedir apoio, a v�tima de viol�ncia dom�stica pode procurar a Delegacia Especializada de Atendimento � mulher ou as delegacias de homic�dios, em cidades onde n�o h� a especializada, para fazer o pedido de medida protetiva. Outro caminho � procurar os servi�os especializados, os centros especializados de atendimento � mulher ou os centro de refer�ncia especializados de Assist�ncia Social (Creas) e Centro de Refer�ncia de Assist�ncia Social (Cras).
Mineiras na vanguarda
Os movimentos feministas reivindicam, ao longo da hist�ria, que os homic�dios cometidos contra as mulheres sejam punidos como ato extremo de viol�ncia motivados pela quest�o de g�nero. Uma mudan�a na compreens�o da quest�o foi motivada pelo movimento Quem ama n�o mata, criado em agosto de 1980 em Belo Horizonte. At� ent�o havia uma corrente que defendia o entendimento de que o homem poderia matar a mulher em defesa da pr�pria honra. Jovens se indignaram contra o assassinato das mineiras Elo�sa Ballesteros e Maria Regina Souza Rocha, por seus respectivos maridos e seu ato pol�tico que reuniu cerca de 400 pessoas na Igreja S�o Jos� em plena ditadura militar se tornou divisor de �guas na luta das mulheres.
Uma das consequ�ncias dos atos foi a cria��o do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM). A jonralista Mirian Chrystus e a soci�loga Celina Albano foram eleitas a primeira presidente e vice-presidente do centro. Para comemorar os 39 anos desse espa�o ser� realizada na segunda-feira (26) roda de conversa com Celina Albano. "Mirian liderou o movimento Quem ama n�o mata at� a realiza��o do ato p�blico e Celina sugeriu trazer para Minas a experi�ncia das feministas europeias, liderando a cria��o do CDDM e se tornando a primeira presidente", afirma a soci�loga e pesquisadora da Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz) Beth Fleury. Mirian, embora tenha sido eleita para ocupar a presid�ncia, teve que sair por quest�es de sa�de.
Celina teve participa��o expressiva na articula��o de mulheres no Congresso Nacional, movimento que ficou conhecido como “lobby do batom”, e que resultou em importantes avan�os no campo da igualdade de g�nero na Constitui��o de 1988. A roda de conversa, que ocorrer� no Teatro da Cidade, abordar� a atua��o hist�rica do feminismo mineiro e brasileiro na d�cada de 1980.
Beth Fleury destaca que a atua��o do Quem ama n�o mata foi fundamental para a mudan�a de uma compreens�o amplamente aceita na sociedade brasileira, do assassinato em leg�tima defesa da honra. “A tese da livre defesa da honra deixava livres homens assassinos confessos”, diz. As a��es do movimento influenciaram no julgamento de Doca Street pela morte de �ngela Diniz, socialite assassinada aos 32 anos, em Arma��o de B�zios, em 30 de dezembro de 1976.
Beth lembra que a tese foi derrotada naquele julgamento. A opini�o p�blica da �poca foi mobilizada de forma a combater os crimes b�rbaros contra as vidas das mulheres. A movimenta��o das feministas mineiras pautou as primeiras pol�ticas p�blicas para a prote��o � mulher e contribuiu para que, anos depois, fossem institu�da a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminic�dio. “Em 1983, entregamos documento ao governador de Minas, Tancredo Neves, que, com Franco Montoro, em S�o Paulo, criaram os dois primeiros conselhos estaduais das mulheres e as duas primeiras delegacias de mulheres”, recorda.
Por�m, ainda hoje os movimentos se mant�m na luta para que homens que cometem feminic�dio sejam punidos adequadamente.