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Estado de Minas

Recome�o: saiba como tatuagem pode ajudar quem precisa superar marcas da automutila��o

Projeto oferece servi�o gratuito que substitui cicatrizes por desenhos. 'Aquilo n�o faz mais parte da minha vida', desabafa rapaz ap�s se livrar de marcas de tentativa de suic�dio


30/09/2019 06:00 - atualizado 30/09/2019 10:31

A tatuadora Manoela e Kelly durante sessão que permitiu substituir marcas de cortes por desenho dentro do projeto 'Meu Recomeço'
A tatuadora Manoela e Kelly durante sess�o que permitiu substituir marcas de cortes por desenho dentro do projeto 'Meu Recome�o' (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press )

"�s vezes, quando chego a um lugar, me esque�o e viro o bra�o. Mas na maior parte do dia fico namorando minha tatuagem." Esse � o relato de Kelly Georgiany Gon�alves dos Reis, de 29 anos, que se emocionou ao ver o desenho que tinha acabado de ser feito em seu membro superior direito. Para ela, a caveira acompanhada de um morcego e uma lua vermelha � muito mais do que uma tatuagem. Por anos, ela usou somente blusas de mangas compridas, para ocultar cicatrizes da automutila��o. Ela foi uma das mulheres que procuraram o projeto "Meu Recome�o", de abrang�ncia nacional, que conecta tatuadores com quem, como Kelly, virou a p�gina e quer superar essas marcas do passado.

O "Meu Recome�o" tem tudo a ver com o Setembro Amarelo, que termina hoje mas deixa uma pauta a ser discutida durante todo o ano: a preven��o ao suic�dio. Segundo a Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS), todos os anos cerca de 800 mil pessoas se suicidam no mundo. No Brasil, uma pessoa tira a pr�pria vida a cada hora, enquanto outras tr�s tentam se matar sem sucesso no mesmo per�odo. Em Minas Gerais, 733 pessoas praticaram o autoexterm�nio s� este ano. A OMS estima que nove em cada 10 casos poderiam ser prevenidos.

Al�m de abusos na inf�ncia, Kelly sofreu bullying e agress�es na adolesc�ncia. Aos 14 anos, se fechou para o mundo e come�ou a marcar a pele com cortes aos 16. Aos 24, depois de anos torturada pela ideia e com hist�rico de abuso de bebidas, tentou tirar a pr�pria vida. Depress�o ainda � a doen�a mais conhecida e citada no Setembro Amarelo como causa de suic�dio. Mas h� muitas outras. Kelly conta que s� depois dessa tentativa de autoexterm�nio recebeu o diagn�stico correto: borderline, associado a outros transtornos. Agora, ela faz o tratamento correto, compartilha seu amor com dois gatinhos e anseia pelo recome�o. "O dia a dia n�o � f�cil. N�o se pode ter uma vida normal com essa cicatriz. � na padaria, no metr�, numa entrevista de emprego... Todos te olham torto", contou.

A hist�ria de Kelly se cruzou com a de Manoela. Kelly desejava tampar as marcas em seu bra�o e passou a pesquisar formas de faz�-lo pela internet. Encontrou o projeto "Meu Recome�o". Na plataforma, tatuadores se colocam � disposi��o para fazer a tatuagem gratuitamente em pessoas em situa��es similares � de Kelly. N�o obteve sucesso com a primeira mensagem que mandou a participante da plataforma. “Fiquei ansiosa e nada. Queria tampar minhas cicatrizes e, infelizmente, n�o teria dinheiro para pagar. Gasto muito s� com meus rem�dios. � dif�cil”, lembrou. Foi quando encontrou Manoela Lages, de 26. Manu, como � chamada, h� tr�s anos encarou a depress�o e se identificou com a ideia do projeto. "Eu j� tinha visto programas nos quais a tatuagem era usada para cobrir outras cicatrizes, como de cirurgias em casos de c�ncer de mama ou em pessoas trans. Mas esse tocou em uma ferida minha. Chegou meu momento de retribuir a ajuda que tive e passar o que aprendi", disse.

A ideia do projeto � atribuir novo significado �s cicatrizes. “A tatuagem tamb�m � uma cicatriz. Estamos transformando a cicatriz inicial em uma arte, em algo que a pessoa escolhe ter. Se ela n�o gostava do que tinha, quero que ap�s a tatuagem se orgulhe, que ache o desenho bonito”, contou Manu. Expectativa que se cumpriu no caso de Kelly. Ap�s uma sess�o de tatuagem que durou quatro hora, ela mal podia acreditar: "A Manoela � um anjo; estou muito grata pelo que ela me proporcionou”.

Contatada por meio de redes sociais, Manoela j� tatuou sete pessoas em dois meses de projeto. Quinze est�o na fila de espera. Ela se dedica � causa, principalmente, �s sextas-feiras e atende at� duas pessoas por semana. O �nico requisito � que o interessado envie uma foto da cicatriz. “Pe�o a foto para estudarmos um desenho. � um desafio para mim, j� que a tatuagem em uma pele com alto-relevo n�o tem o mesmo efeito que uma pele lisa. Fa�o o melhor poss�vel”, contou.

Emo��o

Contar a hist�ria da cicatriz n�o � um pr�-requisito. A sess�o, segundo a tatuadora, pode durar at� seis horas e ela procura fazer com que a pessoa se sinta bem � vontade. “Em geral, quem vem acaba contanto. Tento trat�-las com muito carinho desde o primeiro contato e acho que elas acabam se sentindo confort�veis”, disse. “�s vezes, � dif�cil engolir o choro, me emociono”, conta Manoela, para quem um dos momentos mais marcantes foi receber o abra�o da m�e de um jovem de 17 anos em agradecimento � ajuda dada ao filho, que passou por tentativa de suic�dio.

Tatuagem no braço de Franco: cicatrizes de tentativa de suicídio viraram flores e agora fazem parte do passado do jovem
Tatuagem no bra�o de Franco: cicatrizes de tentativa de suic�dio viraram flores e agora fazem parte do passado do jovem (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)


O rapaz � Franco Gomes e mora atualmente em Portugal. Por mais de dois anos ele carregou nos bra�os resqu�cios de les�es autoprovocadas em consequ�ncia de depress�o e agora est� em tratamento. Veio visitar a m�e no Brasil e fazer sua primeira tatuagem, em homenagem a ela: uma coruja. S�mbolo da sabedoria e da educa��o, a coruja foi desenhada cercada de flores. "Melhor coisa que aconteceu na minha vida. Foi minha primeira tatuagem e escolhi a coruja para representar minha m�e, que me ajudou muito no meu processo de recupera��o, e, tamb�m, pela saudade porque estou morando sozinho. Vejo tanto como homenagem quanto como recome�o. N�o preciso olhar para meu bra�o e ver algo marcado pelo que aconteceu de forma menos favor�vel", contou ele.

A decis�o expressa um momento especial em sua vida. "Passei dois anos e meio olhando para aquele bra�o que me trazia recorda��es de sofrimento. Aquilo n�o faz mais parte da minha vida”, acrescentou. E Franco quer ir mais � frente: aprender a tatuar para um dia retribuir o que recebeu. “Vou voltar para Portugal e estudar, quero come�ar a tatuar. Quero muito poder fazer parte de um projeto similar. N�o temos nada parecido por l�. Quero poder ajudar como fui ajudado”, contou o jovem.

Em Belo Horizonte, al�m da Manoela, a amiga tatuadora Luiza D’�vila, de 31, faz parte do projeto e conta que o problema n�o se limita aos jovens. Integrante de um grupo de m�es em uma rede social, ela j� foi procurada por mulheres de at� 50 anos em busca de ajuda. “Eu tamb�m j� tive depress�o. Sei o que � estar no fundo do po�o. E pedir ajuda � dif�cil, receb�-la � mais dif�cil ainda. Ent�o, me disponho a ajudar. � s� me procurar”, ofereceu a jovem.

Um mal com muitas causas


Suic�dio � tema complexo, delicado e cercado de tabus, mas que n�o pode ser ignorado pela sociedade. De acordo com a Associa��o Brasileira de Psiquiatria (ABP), 50% dos suicidas tinham alguma doen�a mental identificada, n�o tratada ou n�o tratada de maneira adequada. Pacientes com mais de um transtorno identificado t�m riscos aumentados. Podem ser eles: depress�o, transtorno bipolar, transtornos mentais relacionados ao uso de �lcool e outras subst�ncias, transtorno de personalidade ou esquizofrenia.

(foto: Arte EM)


A depress�o vem sendo considerada o “mal do s�culo”. No Brasil, a doen�a atinge 5,8% da popula��o – taxa que est� acima da m�dia global (4,4%), segundo a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS). A psicanalista, doutora e coordenadora do N�cleo de Acessibilidade e Apoio Psicopedag�gico da Faculdade Ci�ncias M�dicas, Marina da Cunha Pinto Colares, explica a diferen�a da tristeza e da depress�o: A depress�o � duradoura e a pessoa, normalmente, sente impot�ncia, des�nimo, a vida perde o sentido. Ela pensa em desistir dos objetivos, acreditando estar num “beco sem sa�da”. “As atividades que nos davam prazer come�am a n�o fazer sentido, preferimos ficar sozinhos, isolados, achando que n�o somos boa companhia”, explica.
 
J� a tristeza todo ser humano sente, � um estado transit�rio, passageiro e importante. “Auxilia no processo de amadurecimento pessoal, a elaborar a frustra��o e um poss�vel luto. Atualmente, percebemos um imperativo de sermos felizes. Tiramos fotos e colocamos nas redes sociais demonstrando um mundo perfeito e as vezes isso n�o condiz com a realidade”, contou.

A automutila��o, que � quando se faz cortes no pr�prio corpo, pode ser um forte sinal da depress�o. “Podem ser cortes superficiais ou profundos, em qualquer parte do corpo. Atualmente, percebemos que os jovens est�o buscando meios para endere�ar, cada vez mais, o seu impasse e (o sintoma) tem aparecido nas escolas”, disse. Em sua pesquisa de doutorado, a especialista revelou que escolas p�blicas t�m solicitado interven��o nos casos de tentativa de suic�dio e a automutila��o em uma faixa et�ria de 12 a 16 anos. “Inicialmente parece que � algo que os alunos fazem escondido, mas quando os colegas contam para os professores, diretores ou coordenadores, os pr�prios adolescentes mostram os cortes e come�am a falar sobre a dor. Esperam um adulto ver, na expectativa de iniciar um di�logo”, disse.

A especialista explica que existe uma cren�a, circulada fortemente no meio social, de que cortar o corpo alivia a dor de dentro, do peito. “Mas o que esses jovens vivenciam � o contr�rio. A dor interna n�o passa com o corte. Isso � um apelo para o outro entrar na rela��o, estar pr�ximo, precisamos entender como um pedido de socorro, algo que n�o vai bem”, acrescentou. Portanto, aceitar o di�logo e o tratamento � necess�rio, por mais dif�cil que seja falar sobre isso.

A psicanalista avalia que a iniciativa das tatuadoras � “maravilhosa”, pois, quando tratado, o processo de automutila��o passa, mas a cicatriz fica. A pessoa olha para o corpo e pode reviver todo aquele processo. “Ent�o, cobrir com um desenho ou mensagem da escolha da pessoa pode dar novo significado �quelas marcas e apontar para o la�o com a vida. Da mesma forma que alguns jovens come�am a escrever, colocar palavras para a dor e nomeiam a ang�stia”, finalizou.

Como pedir ajuda

O CVV – Centro de Valoriza��o da Vida realiza apoio emocional e preven��o do suic�dio, atendendo volunt�ria e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e chat 24 horas todos os dias. Se precisar de atendimento, ligue 188 ou entre no site www.cvv.org.br.

Projeto "Meu Recome�o"


Conhe�a o projeto: www. meurecomecotattoo.com.br

Contato da Manoela Lages
Instagram: @manoelalages

Contato da Luiza D’�villa
Instagram: @frauleintattoo


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