
Os quase 700 quil�metros de cursos d’�gua existentes na regi�o de Belo Horizonte foram decisivos na escolha do antigo Curral del-Rei como ponto de partida da futura capital mineira. Apesar disso, a riqueza natural foi ignorada no projeto original de Aar�o Reis, chefe da comiss�o construtora da nova capital, no fim do s�culo 19. Apenas o Ribeir�o Arrudas fazia parte da planta de BH. Os reflexos desse descaso chegaram r�pido e j� nos anos 1920 come�aram as inunda��es. Cem anos depois, no temporal sem precedentes de ter�a-feira, os rios voltaram a mostrar seu tra�ado, agora sobre avenidas, carros e pr�dios de uma metr�pole que preferiu enterr�-los.
“Apesar de invisibilizados no p� das pessoas, os rios est�o vivos, correndo 24 horas. Uma hora ele vai tomar o que � dele por direito. � muito antiga essa ideia do ser humano de controlar a natureza. Os fen�menos nos controlam”, afirma o ge�grafo e professor Alessandro Borsagli, autor do estudo Do conv�vio � ruptura: a cartografia na an�lise hist�rico-fluvial de Belo Horizonte, de 1894 a 1977.
A Bacia Hidrogr�fica de BH tem cerca de 900 nascentes, segundo dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. O Comit� da Bacia do Rio das Velhas, em cuja �rea de influ�ncia est� a capital, estima em 1,4 mil o n�mero de olhos d’�gua na cidade, 600 deles conhecidos, a metade demandando cuidado e recupera��o.
A destrui��o provocada pela chuva em BH de ter�a-feira (28), quando em duas horas choveu na Regi�o Centro-Sul mais da metade da m�dia hist�rica de janeiro, abriu a cratera dessa hist�ria em que rios ficaram � margem. Em 1923, come�aram as primeiras interven��es sanitaristas: o Ribeir�o Arrudas foi retificado, canalizado e revestido entre a Rua dos Guaicurus e a Avenida Tocantins, hoje Avenida Assis Chateaubriand, pr�ximo � Pra�a da Esta��o.
As primeiras inunda��es de BH
Com a falta de obst�culos naturais e permeabilidade do solo, come�am as inunda��es, com o transbordamento do Arrudas, de acordo com o engenheiro civil e sanitarista aposentado Jos� Roberto Champs, que trabalhou por mais de 25 anos na Superintend�ncia de Desenvolvimento da Capital (Sudecap).
"O engenheiro Saturnino de Brito (1864-1929) prop�s que os c�rregos e v�rzeas fossem preservados e a cidade ocuparia o que n�o est� dentro delas. Aar�o Reis recusou a proposta e adotou o modelo retil�neo", conta. A proposta rejeitada consistia na constru��o de avenidas com 50 metros de largura e c�rregos abertos passando ao meio – eram as chamadas avenidas sanit�rias.
"O engenheiro Saturnino de Brito (1864-1929) prop�s que os c�rregos e v�rzeas fossem preservados e a cidade ocuparia o que n�o est� dentro delas. Aar�o Reis recusou a proposta e adotou o modelo retil�neo", conta. A proposta rejeitada consistia na constru��o de avenidas com 50 metros de largura e c�rregos abertos passando ao meio – eram as chamadas avenidas sanit�rias.
Desde ent�o, 208 quil�metros de cursos d'�gua foram canalizados ou revestidos, 79% em canal fechado, segundo dados de 2017 da Sudecap. Na ter�a-feira, c�rregos esquecidos ou desconhecidos por parte da popula��o mostraram sua for�a, em especial o C�rrego do Leit�o, que atravessa a Avenida Prudente de Morais e o Bairro Lourdes, �rea nobre da capital.
Privil�gio para as ruas
Conforme a disserta��o de Borsagli, em 1924, as interven��es aumentam na dire��o Centro-Sul para os vales dos c�rregos do Leit�o e Acaba Mundo, que nasce no Bairro Sion at� o Parque Municipal. "Isso foi feito por quest�es vi�rias e a necessidade de alargamento das vias. Tudo ligado com a ind�stria automobil�stica, e tamb�m para esconder o esgoto, esconder a sujeira pra dentro do tapete", diz o ge�grafo.Na �poca dessas obras, o ent�o prefeito Fl�vio Fernandes dos Santos citou que as canaliza��es "ir�o exercer poderosa influ�ncia no desenvolvimento de uma parte valiosa da cidade, at� agora relegada ao mais completo abandono, apesar de sua pequena dist�ncia do Centro; novas constru��es h�o de aparecer nesta zona privilegiada topograficamente, fornecendo belas perspectivas".

Menos pontes, mais asfaltos
A canaliza��o do Acaba Mundo, no mesmo per�odo, permitiu a constru��o de vias do Bairro Funcion�rios e a comercializa��o de lotes em 13 quarteir�es, urbanizados a partir do fechamento do rio. O C�rrego da Serra foi o primeiro a ser “enterrado”, canalizado debaixo do solo por causa do n�mero de pontes que teriam que ser constru�das caso ficasse a c�u aberto."Na verdade, os c�rregos deveriam estar abertos, mas foram ocupados de forma irrevers�vel", afirma Champs. Ele cita a constru��o de bacias de conten��o, que possam deter a �gua, como alternativa para minimizar o problema. "Pa�ses como Fran�a e It�lia fizeram a intercomunica��o de canais. Se uma bacia hidrogr�fica est� cheia, voc� pode transferir para outra atrav�s de comportas", acrescenta.

Para Borsagli, o poder p�blico precisa "tomar vergonha na cara". "A reabilita��o � a �nica sa�da, devolvendo plan�cies de inunda��o que foram urbanizadas e criando �reas perme�veis nas vertentes dos cursos d'�gua", afirma.
Ele defende a retirada do asfalto de algumas �reas, como o Bairro Santo Ant�nio, para contribuir com a permeabilidade e a diminui��o do escoamento da �gua. De acordo com o professor, o cidad�o tamb�m tem que agir. "Dentro das resid�ncias, as pessoas podem criar �reas perme�veis e podem reter a �gua de chuva", afirma."O engenheiro Saturnino de Brito prop�s que os c�rregos e v�rzeas fossem preservados e a cidade ocuparia o que n�o est� dentro delas. Aar�o Reis recusou a proposta e adotou o modelo retil�neo"
Jos� Roberto Champs, engenheiro civil e sanitarista aposentado
Linha do tempo dos cursos d’�gua de BH
1900
Os c�rregos Leit�o, Acaba Mundo e Serra, antes integrados � paisagem do antigo arraial, s�o ignorados conceitualmente no momento do projeto urbano da nova capital. Alguns respiros s�o preservados e integrados, como a cachoeira natural do Parque Municipal.
1910-1920
S�o realizadas as primeiras obras de cunho sanit�rio e constru�dos emiss�rios paralelos aos cursos dos c�rregos para receber o esgoto que at� ent�o era jogado in natura nos c�rregos. Tais emiss�rios despejam o esgoto ao t�rmino dos trechos canalizados.
1920-1930
D�cada marcada pelas primeiras grandes transforma��es, com o in�cio das canaliza��es, retifica��es e mudan�as dos cursos d’agua, para adequa��o das ruas. Mesmo desviados
de seus cursos naturais, os c�rregos permanecem como elementos definidores da paisagem e ainda ’socializam’ com a vida urbana.
1930-1940
O apagamento dos c�rregos segue paulatinamente em dire��o � sua desnaturaliza��o. Cada vez mais os trechos s�o canalizados, retificados e t�m seu curso alterado.

1940-1980
� o in�cio de uma �poca de crescimento vertiginoso da cidade. Apesar das interven��es de canaliza��es terem car�ter higienista, revelando a preocupa��o do governo com quest�es sanit�rias, os cursos d’�gua, que j� se encontravam polu�dos, e a cidade continuam padecendo com as violentas inunda��es. Devido ao colapso da coleta de lixo, os c�rregos tornam-se locais de despejo de lixo dom�stico.
D�cada de 1960
Se firma como a conclus�o do apagamento dos c�rregos como elementos urbanos. O c�rrego Acaba Mundo � coberto em seu trecho da Rua Professor Moraes, impossibilitando seu �ltimo respiro.