
Os sinais de que a pandemia mexeu n�o apenas com o corpo, mas com a cabe�a dos brasileiros est�o no ar... nas farm�cias, na internet, nas redes sociais. No ambiente virtual, eles se revelam sob a forma da escalada na procura por assuntos e subst�ncias como os relacionados � dificuldade para dormir, que cresceram quase uma vez e meia no mais conhecido motor de busca da web.
No mundo f�sico, esses ind�cios se concretizam sob a forma da disparada nas vendas de medicamentos das classes dos ansiol�ticos, hipn�ticos, estabilizadores de humor ou antidepressivos, que aumentaram em alguns casos at� 80%. Uma realidade que agravou o quadro de parcela da popula��o j� adoecida mentalmente, como revelam dados do Minist�rio da Sa�de.
N�o parece por acaso que a venda dos medicamentos relacionados a dist�rbios ps�quicos tenha chegado a 3,76 bilh�es de comprimidos nas farm�cias brasileiras nos 12 meses terminados em maio deste ano.
O total equivale a 5,75% de aumento em compara��o com o mesmo per�odo do ano anterior, segundo os dados mais atuais da consultoria IQVIA, especializada no setor farmac�utico. Em maio, ainda de acordo com a empresa, o crescimento na comercializa��o de antidepressivos, especificamente, foi de 9,62%.
Segundo o Sindicato do Com�rcio Varejista de Produtos Farmac�uticos do Estado de Minas Gerais (Sincofarma-MG), no recorte para Belo Horizonte e regi�o, as vendas de zolpidem, rem�dio para dormir, e clonazepam, um calmante, aumentaram 10% na compara��o entre o per�odo antes da pandemia e agora.
Quanto � sertralina, medicamento antidepressivo, o �ndice de crescimento da procura � de 80%. O n�vel mais significativo de consumo desses tipos de medicamentos, conforme o sindicato, � observado na Zona Sul da capital mineira.
No Brasil, balan�o do Conselho Federal de Farm�cia (CFF) d� conta de que a procura por f�rmacos anticonvulsivantes, que atuam contra a epilepsia, passou de mais de 6 milh�es de unidades, em abril de 2019, para mais de 7,5 milh�es no mesmo m�s de 2020.
Quanto � venda de antidepressivos e estabilizadores de humor, usados nos casos de transtornos afetivos, como depress�o, distimia (neurose depressiva) e transtorno afetivo bipolar, o �ndice saltou de mais de 7,6 milh�es de unidades, no quarto m�s do ano passado, para mais de 8,8 milh�es em abril de 2020.
Al�m da evolu��o nas vendas de ansiol�ticos e antidepressivos no per�odo da pandemia, tamb�m aumentou substancialmente nesses meses o consumo dos fitoter�picos que aliviam sintomas de ansiedade e ins�nia.
Levantamento da subsidi�ria brasileira da farmac�utica Aspen Pharma mostra que em maio de 2019 a demanda por um dos fitoter�picos que comercializa, entre os dois que produz � base de passiflora, era de 118 mil unidades, chegando agora a 188 mil vendidas, aumento de 59%.
Entre abril e maio deste ano, quando estiveram em vigor medidas mais r�gidas de isolamento social devido � pandemia, a palavra “ins�nia” foi a mais procurada no Google, um tema comumente associado �s agruras da quarentena. A busca na internet por “rem�dio para ins�nia” cresceu 130% no quinto m�s de 2020.
� constatado ainda um crescimento da procura virtual por f�rmacos que agem no sistema nervoso central, para tratamento de depress�o, p�nico, ansiedade e estresse, entre muitos outros desequil�brios. Um cen�rio perigoso quanto ao ato da automedica��o, em alguns casos. Tudo relacionado � inseguran�a que paira nesses tempos sombrios.
Mesmo antes da pandemia, o Brasil j� era considerado pela Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) o pa�s mais ansioso do mundo. Mapeamento da entidade d� conta de que, no fim de 2019, 19,4 milh�es de brasileiros tiveram diagn�stico de transtornos ansiosos, incluindo fobias, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), estresse p�s-traum�tico e ataques de p�nico.
Quase 10% da popula��o brasileira convive com problemas emocionais ligados � ansiedade, e o Brasil tamb�m � o pa�s na Am�rica Latina com o maior �ndice de indiv�duos com o desequil�brio – no mundo s�o 264 milh�es de pessoas. Quanto � depress�o, 12 milh�es de brasileiros apresentam a doen�a, ainda segundo o levantamento do ano passado. Nos �ltimos anos, a incid�ncia de depress�o aumentou 18% no mundo e quase 6% no Brasil.
Quando o medo se une � crise concreta
H� dois anos, a empres�ria Milena Pieroni, de 41 anos, faz tratamento para s�ndrome do p�nico e depress�o. M�e de uma garota de 4, no fim de 2019 se separou do marido, e pouco tempo depois explodiu a pandemia.
Os problemas se acumularam e ela come�ou a experimentar um aumento significativo das crises de p�nico. “Fiquei com muito medo de morrer. Moro sozinha com minha filha, e temia acontecer algo comigo e n�o ter ningu�m para socorrer”, conta. A menina, que ficou tr�s meses sem ver o pai, tamb�m come�ou a demandar mais aten��o e cuidado.
“Fiquei extremamente ansiosa e estressada. Parei com tudo, inclusive com as atividades f�sicas, e respeitei o isolamento. N�o sa�a mais de casa, mas continuei trabalhando.” Milena conta que carrega seus rem�dios na bolsa. J� fazia acompanhamento com psiquiatra, e o m�dico aumentou a dose do antidepressivo, al�m do ansiol�tico, para melhorar o sono.
Come�ou tamb�m com medita��o, ho'oponopono (t�cnica ancestral havaina) e uso de �leos essenciais, al�m da terapia on-line com psic�logo e das idas mensais ao m�dico. Agora, ela cr� que os desequil�brios estejam mais controlados.
O psic�logo Ivo Carraro, da Uninter, cita como uma das principais queixas com a pandemia o sentimento de inseguran�a. Sobre a sa�de, o trabalho e o desemprego, a educa��o dos filhos, o receio de ser contaminado – tudo o que um contexto de incertezas sobre o futuro pode gerar. Mas, lembra, esse aspecto parte de uma experi�ncia individual. O n�vel de sofrimento varia entre cada pessoa.
Em tempos t�o complicados, crescem os epis�dios de p�nico, ansiedade, depress�o, medo, estresse, esgotamento, inquietude, irritabilidade, sofrimento, tormenta, tristeza. Por isso, para quem j� sofre com algum tipo de dist�rbio ps�quico os cuidados devem ser ainda maiores.
Com a perda da liberdade e a solid�o, cen�rios comuns com o isolamento, alguns fatores s�o gatilhos para o agravamento dessas quest�es. Em situa��es mais severas tamb�m aumentam os n�meros de tentativas de autoexterm�nio.
“Essa realidade tem as emo��es como um terreno f�rtil para se instalar e causar uma grande desordem. S�o respostas do c�rebro baseadas em informa��es sensoriais do mundo exterior. Pode ser uma emo��o em particular ou um misto delas. S�o sentimentos pr�prios dos tempos de pandemia. Se o circuito cerebral ligado a ansiedade, medo, estresse e depress�o estiver permanentemente ativado, o risco de desenvolver um problema de sa�de mental � alto. � importante n�o permanecer nesse estado. Para isso, � preciso evoluir para um outro circuito – o da gentileza, empatia e compaix�o”, diz Ivo Carrara.
Para o especialista, n�o se deve temer o coronav�rus, mas sim respeit�-lo – quando respeita algo, a pessoa se protege. “S�o quest�es sobre o pr�prio controle que o homem considerava ter em rela��o � vida, sua sa�de, suas a��es. A pandemia leva � perda do controle sobre a realidade. E isso leva � ansiedade. Manter uma rotina ajuda na volta da confian�a para seguir avante. � preciso lidar bem com essa realidade”, afirma.
Transtornos mentais: a nova onda da crise
De acordo com o Minist�rio da Sa�de, no cen�rio da sa�de mental no Brasil, antes da pandemia, cerca de 3% da popula��o j� apresentava transtornos mentais severos e persistentes, 6% transtornos psiqui�tricos graves decorrentes do uso de �lcool e outras drogas, 12% necessitava de algum atendimento em sa�de mental, seja cont�nuo ou eventual.“A tend�ncia � de que esse quadro se modifique e que haja maior incid�ncia de casos de transtorno mental. � o que se configura como a quarta onda da pandemia”, salienta a psic�loga Tatiana Mendes Alencar, supervisora de Sa�de Mental do Centro de Estudos e Pesquisas Dr. Jo�o Amorim (Cejam).
A dificuldade em manter a estabilidade econ�mica com a pandemia pode levar tamb�m a uma instabilidade psicol�gica. Outros problemas podem vir de atritos nas rela��es interpessoais, com conflitos e ang�stias que agora s�o potencializados.
“O estresse pand�mico � mais intenso do que outras manifesta��es ansiosas geradas por situa��es do dia a dia. Como n�o h� previs�o para que as coisas voltem a ser como eram de costume, esse tipo espec�fico de resposta f�sica acaba sendo mais assolador”, diz o psic�logo Alexander Bez. “Mas s�o decorr�ncias provenientes apenas da pandemia, o que cessar� com o t�rmino desse ciclo”, avalia. As emo��es tamb�m afetam a imunidade. A prote��o do corpo est� diretamente ligada a fatores psicossociais.
Entre os sinais de que algo n�o vai bem e de que se pode estar no limiar de um surto psic�tico est�o cansa�o excessivo, altera��es no sono, falta de concentra��o, apetite desregulado, tonteira, ins�nia, taquicardia, alucina��es, agressividade, desorienta��o, fuga da realidade, crises depressivas, despersonaliza��o, perda de identidade, epis�dios de paranoia, vis�o de pessoas imagin�rias, de sombras ou flashes de luz, sensa��o de ouvir vozes e amea�as que ningu�m mais escuta.
Especialistas advertem que quem faz uso de medica��o prescrita, principalmente para controlar problemas psiqui�tricos, n�o deve deixar de tomar rem�dios por conta pr�pria. Outro alerta � sobre a compra desses medicamentos sem prescri��o m�dica.
Impactos em todas as esferas da vida
As pandemias carregam, al�m da crise sanit�ria, impactos sociais, econ�micos, culturais e pol�ticos. “O desencadeamento ou agravamento de manifesta��es psicopatol�gicas � sist�mico e multifatorial”, diz a psic�loga Tatiana Mendes Alencar.Ela pontua que quest�es relacionadas a altera��o do humor, ansiedade, estresse, preju�zo ao sono, abuso de drogas, entre outros, j� eram end�micas no Brasil mesmo antes da COVID-19.
“Agora, verifica-se um aumento exponencial desses casos, principalmente relacionados aos transtornos ansiosos, transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de �lcool e outras drogas, transtornos depressivos e transtornos de alimenta��o”, alerta.
A psic�loga refor�a que existem estrat�gias para evitar ou minimizar o desencadeamento desses desvios. “O isolamento social n�o � sin�nimo de distanciamento afetivo. Para se ter uma boa sa�de mental, ajudam cuidados como manter a higiene do sono, realizar t�cnicas de relaxamento, ter cuidado com a exposi��o excessiva � informa��o e sempre checar a veracidade do conte�do, al�m de buscar ajuda especializada, quando os sintomas persistirem ou houver sofrimento intenso, com comprometimento social. Nesse ponto, � fundamental se fortalecer por meio de uma rede de apoio”, ensina.
GRANDE VAZIO
Procurar apoio profissional foi a decis�o de Jana�na Ribeiro, de 37 anos, que trabalha com comunica��o social. Na adolesc�ncia, vivenciou uma crise de depress�o. Tem emprego em um escrit�rio de advocacia e, com o in�cio da pandemia, ficou preocupada com o risco de ser desligada da empresa. Para evitar a situa��o, aumentou o empenho no intuito de se mostrar necess�ria, em suas palavras.“Isso gerou muita ansiedade. Quando a ansiedade diminuiu um pouco, veio a ang�stia, a tristeza, senti um grande vazio. Tive dificuldades para dormir, al�m da preocupa��o com minha filha, de ela ser infectada e at� morrer”, relata. Jana�na voltou a tomar antidepressivos e ansiol�ticos, aumentou a frequ�ncia � terapia com psic�logo e agora observa melhoras. “Em pouco tempo de pandemia, j� passei por tudo isso.”
Mais de 1 milh�o de acessos em um dia
H� tr�s anos, um grupo de psic�logos abriu pela internet um canal espec�fico para aconselhamento terap�utico para pessoas que vivem conflitos ou d�vidas. A ideia original do site “A chave da quest�o” � ajudar no manejo de ocasi�es dif�ceis.
Com a pandemia, os profissionais criaram um espa�o virtual para atender indiv�duos em isolamento. N�o � o mesmo que psicoterapia, como explica uma das integrantes, a psic�loga F�tima Marques – trata-se de acolhimento. “Abrimos a nossa casa, agregando agora outros profissionais, de �reas diferentes da sa�de, com abordagem multidisciplinar para auxiliar a popula��o em suas mais diversas afli��es”, explicita.
Em menos de 24 horas ap�s a inaugura��o do sistema, no fim de mar�o, houve mais de 1 milh�o de acessos. De l� para c�, a equipe de especialistas cresceu. S�o 22 psic�logos, tr�s psiquiatras, dois nutricionistas, um fisioterapeuta e um fonoaudi�logo.
No princ�pio, a fila de espera ultrapassava 200 pessoas, n�mero m�ximo que o sistema conseguia reconhecer – por isso, a procura poderia ser bem maior, sem que houvesse registro.
Com o aumento no n�mero de profissionais, a fila agora est� zerada. At� hoje, o n�mero de atendimentos ultrapassa 9 mil. S�o mais de 100 chamadas a cada cinco minutos.
“Estamos vivendo algo muito novo, e isso pode acarretar uma desestrutura��o emocional. As pessoas est�o desesperan�osas, aflitas e angustiadas”, diz F�tima. Entre os direcionamentos oferecidos h� dicas de alimenta��o, sobre atividades da rotina, exerc�cios f�sicos, op��es de divers�o, o que fazer com as crian�as em casa e conta��o de hist�rias.
Na Doctoralia, plataforma de consultas on-line, as especialidades mais procuradas para atendimento remoto t�m sido psicologia e psiquiatria. Desde mar�o, mais de 165 mil consultas por v�deo j� foram agendadas e, dessas, 80 mil foram para cuidar da sa�de mental.
Segundo a psic�loga Bruna Murakami, integrante da rede, nesse contexto a telemedicina � um facilitador, pois permite que aqueles que j� se tratavam continuem a terapia e d� a oportunidade de oferecer ajuda �s pessoas que come�aram a sofrer com o isolamento social.
De acordo com a especialista, as queixas dos pacientes t�m mudado ao longo da pandemia. “No in�cio, eram referentes � adapta��o com a nova rotina. Em seguida, o descobrimento de uma nova din�mica, com colegas e chefes fisicamente distantes e familiares, parceiros, filhos e pets fisicamente perto demais. J� os pacientes que come�aram a terapia nesse momento, apresentavam demandas pautadas em ang�stias e ansiedade”, revela.
SARS Dados da revista East Asian Arch Psyciatry apontam que, entre 2002 e 2003, quando o coronav�rus causador da Sars matou 800 pessoas no mundo, 42% dos sobreviventes desenvolveram algum tipo de transtorno mental. Mais da metade das pessoas sofreu com o transtorno de estresse p�s-traum�tico.
