
Bilu, um pequeno vira-lata caramelo, monta guarda ao lado da churrasqueira de seu dono, o mec�nico Jo�o Ferreira. De olhos vidrados e orelhas baixas, ele ativa o “modo olhar pid�o” para tentar ganhar um peda�o de carne. Mas o apelo j� n�o faz o mesmo efeito de antes. Desde o in�cio da pandemia, o cachorro s� descola algumas parcas tirinhas de muxiba, ou fica na vontade mesmo. Com o estrondoso aumento do produto nos a�ougues nos �ltimos dois anos, compartilh�-lo com os pets tornou-se um luxo insustent�vel. “Sinto muito, meu amigo, mas essa linguicinha aqui n�o vai sobrar para voc�, n�o!”, brinca Jo�o.
E Bilu est� longe de ser o �nico a ter privil�gios cortados. Os custos inflados — 22,06% s� nos �ltimos 12 meses, conforme o �ndice Nacional de Pre�os ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE) — reconfiguraram o tradicional churrasco em todas as suas pontas, do consumidor caseiro � churrascaria a rod�zio, passando pelo a�ougueiro e o vendedor de espetinhos. O �nico beneficiado � o pecuarista.
Ao longo de outubro, a infla��o chegou a dar uma tr�gua � turma do “churras”. Ap�s 16 meses consecutivos de alta, os pre�os da carne tiveram ligeira queda de 0,31%. A �ltima baixa havia sido registrada pelo IBGE em maio de 2020 (-1,33%). A redu��o � associada pelos economistas � suspens�o das exporta��es para a China. O com�rcio foi interrompido em 4 de setembro, ap�s o Brasil confirmar dois casos at�picos de vaca louca, em Minas Gerais e no Mato Grosso, o que fez as vendas internacionais despencaram 43%. Com o al�vio na demanda externa chinesa, sobram mais mercadorias para o mercado interno, o que, em tese, puxa os pre�os para baixo.
O movimento da balan�a comercial, contudo, mal � capaz de fazer c�cegas no bolso do consumidor. Pesquisa divulgada pelo site Mercado Mineiro no dia 9, feita em 39 a�ougues de Belo Horizonte e regi�o metropolitana, apontou discreta redu��o no valor cobrado pelos cortes, com destaque para a alcatra (-1,41%), o ac�m (-7%), a fraldinha (-5,65%) e a bisteca su�na (-3,57%). Os acr�scimos acumulados pelas pe�as nos �ltimos dois anos, no entanto, passam de 140%. (Veja arte na p�gina ao lado.)
“Sem querer ser o estraga-prazeres das festas de fim de ano, preciso ponderar um outro fator: nada garante que essa tend�ncia de queda v� se manter. Se a China resolver voltar a comprar do nosso mercado com o mesmo apetite dos �ltimos dois anos, o que � bastante plaus�vel, os pre�os voltar�o a subir”, analisa o diretor do Mercado Mineiro, Feliciano Abreu.


Churrasqueiro muda corte e racha a conta
Para driblar os pre�os salgados e manter as churrasqueiras acesas, os amantes do churrasco t�m recorrido �s mais variadas t�ticas. “Asso carne quase todo fim de semana, sozinho ou acompanhado. Na pandemia, n�o abandonei o costume. Mas como a carne est� sendo vendida a peso de ouro, tive que fazer adapta��es”, conta o mec�nico Jo�o Ferreira, que mora no Bairro C�u Azul, na Regi�o de Venda Nova, em Belo Horizonte. A primeira delas foi rachar a despesa dos “eventos” com a fam�lia e os amigos. Jo�o relata que, at� pouco antes da pandemia de COVID-19, fazia quest�o de oferecer ele mesmo os cortes. Aos convidados, pedia apenas que levassem as bebidas. Agora, os participantes tamb�m precisam contribuir com alguns quilinhos de prote�na.
Os assados tamb�m j� n�o s�o os mesmos. Picanha, alcatra, bife ancho e at� asinha praticamente desapareceram dos espetos. “Antes, eu fazia quest�o de ter ao menos uma pe�a mais nobre. Agora tivemos que baixar a bola e usar a criatividade. Passamos a comer op��es mais baratas, como ma�� de peito e sobrecoxa de frango. At� o toucinho de barriga entrou na roda!”, diz Ferreira.
A tend�ncia foi rapidamente detectada nos a�ougues de classe m�dia, onde a carne de segunda — nome popular dado aos peda�os da banda dianteira do boi e do porco, de qualidade considerada inferior — tornou-se musa do braseiro. As pe�as su�nas tamb�m ganharam prest�gio no espeto. “O toucinho de barriga, hoje, � mais procurado que o pernil pelos churrasqueiros. E, acredite se quiser, o pessoal tem assado at� f�gado bovino. Sabendo fazer, fica gostoso!”, atesta Francisco de Assis, dono do frigor�fico Gomes e Silva, que fica no Bairro S�o Paulo, Regi�o Nordeste de BH.
De acordo com o empreendedor, o novo card�pio do churrasco inclui ainda cortes como miolo de ac�m, frald�o, assado de tiras (fibras provenientes da costela dianteira do boi) e ac�m com osso. A migra��o para a grelha acompanha mudan�as na nomenclatura, que, aparentemente para ganhar um tempero de sofistica��o, ficou mais pr�xima do vocabul�rio dos “barbecues” americanos.
“O miolo de ac�m a gente vende como 'chuck eye roll'. A ma�� de peito, como 'brisket'. A fraldinha � o 'skirt steak'. O ac�m com osso virou 'short ribs'. A paleta mudou para 'flat iron steak' . A ideia � tirar das pe�as o estigma de carne de segunda. At� porque, como a gen�tica do gado melhorou muito nos �ltimos anos, n�o faz sentido menosprezar os cortes dianteiros, que est�o muito mais macios e saborosos”, justifica Assis.
No mercado h� 44 anos, o comerciante diz que, ao contr�rio do que os pre�os possam sugerir, seu neg�cio nunca viveu tempos de vacas t�o magras. “Desde o in�cio de 2020, com a disparada dos pre�os, minha margem de lucro ficou bem estreita, pois eu n�o posso repassar todo o aumento da carne para o consumidor, sen�o ele some. Ent�o, absorvi boa parte do preju�zo. Outra medida para manter as portas abertas foi dispensar 60% dos funcion�rios”, conta o empres�rio.
A reinven��o do churrasco acabou contribuindo para a continuidade do frigor�fico. “No fim das contas, o fato de o consumidor ter descoberto cortes alternativos me ajudou. Algumas pe�as tradicionais do churrasco encareceram tanto, que eu parei de comprar. A picanha angus � um exemplo. O pre�o de custo dela hoje � de R$ 120. Ficou impratic�vel. Claro que continuo vendendo picanhas, mas s� as do tipo B. Elas t�m um padr�o de gordura inferior, mas s�o razo�veis e eu consigo manter no estoque e vender”, diz o a�ougueiro.