O drama das fam�lias que vivem sob medo constante em Minas
No interior ou na capital, a vida de quem mora em �reas de risco em Minas, seja perto de rios, de encostas ou de barragens, � uma tens�o constante.
A vida entre dois monstros: um assombra dia e noite, o outro, incontrol�vel, invade casas e ruas durante as chuvas torrenciais do ver�o. Fam�lias mineiras tamb�m se espremem entre a cruz e a espada, pois sobre a cabe�a est� o barranco, e, a poucos metros dos p�s, a ribanceira que desemboca no c�rrego. E tem tamb�m os ribeirinhos, cujas moradias se cobrem de barro, encontrando como �nica alternativa o abrigo, longe de seus pertences, da sua hist�ria e, muitas vezes, de pessoas queridas.
Quem vive em �reas de risco conhece os perigos, aprende a "vigiar" o tempo e re�ne todas as for�as para lutar. Em Congonhas, na Regi�o Central do estado, moradores do Residencial Gualter Monteiro dizem que as indefini��es por parte do poder p�blico e de uma mineradora aumentam os preju�zos e o n�vel de estresse coletivo.
Na capital, as fam�lias da Vila Chaves, na Regi�o Noroeste, se equilibram � beira dos abismos. J� em Santa Luzia, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a exemplo de Sabar�, Raposos, Betim e Brumadinho, � hora da faxina, de voltar com os m�veis para o lugar e contar as perdas materiais ap�s a enchente.
As �guas tamb�m tomaram conta de Governador Valadares, no leste mineiro, com a cheia do Rio Doce e os in�meros transtornos para os habitantes da cidade e regi�o. Neste cen�rio, n�o escapam as estradas, os pontos tur�sticos, a exemplo de Capit�lio, na Regi�o Sudoeste, e os celebrados patrim�nios mundiais, a exemplo de Congonhas e Ouro Preto, onde at� casar�o tombado foi soterrado por encosta no Centro Hist�rico.
S�o 11h de quarta-feira, o sol reapareceu e chegou a hora de lavar a casa, tirar o barro do passeio, encontrar caminho no meio do lama�al e recolocar a vida no eixo. No Residencial Gualter Monteiro (nome de um ex-prefeito), onde vivem cerca de 2,6mil pessoas incluindo o vizinho bairro Cristo Rei, em Congonhas, na Regi�o Central do estado, os transtornos causados pela cheia do Rio Maranh�o foram grandes e aumentaram a tens�o dos moradores, permanentemente assustados com um poss�vel rompimento da barragem da mina Casa de Pedra, da CSN Minera��o.
"Convivemos com dois monstros. Todo dia, a amea�a da barragem, e, em dezembro e janeiro, as chuvas. Moro aqui com minha m�e, que tem problemas de sa�de, ent�o fica mais dif�cil qualquer decis�o. Na verdade, os abalos s�o mais psicol�gicos do que f�sicos", diz, apreensivo, o eletricista Wellington Barbosa Alves, residente na Rua Maria Fernandes Ara�jo.
Eni veio do Rio para Minas pela tranquilidade, mas vive preocupada
Mostrando a casa atingida pela enchente, Wellington aponta as marcas da �gua na parede, a lona preta forrando o teto, os m�veis encharcados e as roupas perdidas. "Levei o que pude para o c�modo de cima, mas os riscos s�o iminentes o ano todo." Fora da casa, perto do campo de futebol coberto de lama, onde duas crian�as tentam brincar, o eletricista se encontra no espa�o maior das preocupa��es. "Ali no alto, podemos ver a barragem. Se romper, perdemos a vida, pois � muito pr�xima. Chegamos aqui muito antes dela, moro aqui h� 36 anos. Ent�o, precisamos de uma solu��o urgente."
Perto da casa de Wellington, a dona de uma loja de roupas contabiliza seus preju�zos e n�o esconde a irrita��o. Num canto, est�o empilhados sapatos femininos; no outro, cal�as e camisas imprest�veis agora. “Nossas casas perderam o valor? Se sair, onde vou colocar tudo isso?”, pergunta a comerciante, que, como os demais, se sente abandonada pelo poder p�blico e imersa nas incertezas da mineradora.
A sa�da est� na resposta de Valdirene Aparecida Santana Maciel, que se mudou h� dois anos com o marido e decidiu ir embora. "Moro de aluguel e estou com muito medo. Perdi quase tudo, s� fiquei com a geladeira, o fog�o e o tanquinho. A gente fica nervosa, e tem a hist�ria da barragem."
INDENIZA��O
Caminhando pelo bairro, a equipe do Estado de Minas encontrou o presidente da Associa��o dos Moradores do Residencial Gualter Monteiro, Warley Ferreira Costa, que acompanhava os necess�rios servi�os p�blicos p�s-enchente. "Felizmente, todo mundo aqui se ajuda na �poca de enchente, ent�o fica mais f�cil. Outro problema s�rio est� na barragem, e o pessoal quer indeniza��o para sair, n�o simplesmente uma mudan�a de lugar", explica Warley. Uma quest�o a mais est� no fechamento da creche e da escola, levando ao deslocamento das crian�as.
Em 29 de abril de 2019, o Minist�rio P�blico de Minas Gerais ajuizou a��o para que a empresa retire, pagando os custos, as fam�lias interessadas em sair das �reas de risco no Residencial Gualter Monteiro e Cristo Rei, al�m da constru��o de creche e escola.
Na �poca, a decis�o da Justi�a foi que a CSN pagasse aluguel para os moradores dos bairros localizados abaixo do Complexo Casa de Pedra.
"Quero ser indenizado. N�o aceito alternativa", assegura Roberto de Paula, de 63 , h� quatro d�cadas residente no local, e firme na limpeza da Rua Jos� Morais Silva. A vizinha, a auxiliar de servi�os gerais Rayne Keteleyn Jorge, que mora h� seis meses com o marido e dois filhos, tamb�m sofreu os efeitos, tendo que ir para a casa de uma tia.
"Viver sob risco � triste, perigoso e desanimador", afirma a mulher, que contou com a ajuda da irm� Joelma Celeste Jorge e do cunhado Claudinei Gomes. "Somos 28 pessoas da mesma fam�lia morando aqui. Com a enchente, d�-se um jeito, mas se a barragem estourar, estaremos todos mortos. N�o queremos virar estat�stica", ressalta Joelma. A vizinha da frente, a cozinheira Eni de Oliveira Passos, m�e de Laura, de 14, e Davi, de 10, veio do Rio de Janeiro (RJ) para Minas, pois ouviu dizer que "era tranquilo, com boas escolas" e gostou. Mas alerta: "S� de falarem que a barragem � monitorada 24 horas j� me preocupa. Se n�o oferecesse risco, seria diferente", ressalta.
Em nota, a CSN Minera��o informa que recebeu na sexta-feira (14) fiscais da Ag�ncia Nacional de Minera��o (ANM) para vistoriar o avan�o das obras em andamento para corrigir os efeitos da chuva na barragem de Casa de Pedra de Pedra. Tr�s dias antes, os fiscais estiveram na Mina de Fernandinho, tamb�m da CSN.
"A empresa segue monitorando os equipamentos com leitura em tempo real, 24 horas por dia, e n�o foi detectada nenhuma anomalia. Quanto � barragem de Casa de Pedra, a mesma n�o enfrentou problemas, permanecendo segura e est�vel. A companhia segue prestando todas as informa��es necess�rias para os �rg�os competentes e conta, ainda, com um comit� formado por representantes da sociedade civil desde 2018, com o objetivo de informar � comunidade sobre as a��es para descaracteriza��o das barragens, bem como sobre novos projetos. Al�m disso, t�m sido emitidos informes digitais peri�dicos para a comunidade. Por fim, a empresa lembra que, desde 2020, toda a sua produ��o � feita com a filtragem total do rejeitos, isto �, sem o uso de barragens."
O EM pediu esclarecimento � Prefeitura de Congonhas sobre pontos importantes para a comunidade, como a constru��o de creche e escola, mas n�o obteve resposta.
Roberto de Paula, morador de Congonhas, diz que s� aceita indeniza��o
Cen�rio desolador e problema estrutural
As chuvas que se intensificaram no s�bado, quando ocorreu a trag�dia em Capit�lio, no Sudoeste de Minas, com a queda de um pared�o de rocha e morte de 10 turistas, e estragos na rodovia BR-040, devido ao transbordamento de um dique de conten��o da Mina de Pau Branco, da mineradora Vallourec, em Nova Lima, na RMBH, j� deixaram um saldo desolador. Segundo o Boletim da Defesa Civil divulgado ontem, h� 377 cidades em situa��o de emerg�ncia em Minas. No per�odo chuvoso (a partir de 1º de outubro), houve 25 mortes e mais de 50 mil pessoas tiveram que sair de casa (6.664 desabrigadas e 45.815 desalojadas).
(foto: JUAREZ RODRIGUES/EM/D.A PRESS)
"Morro de medo, ent�o vou abrindo caminho no mato"
Elis�ngela Soares Arcanjo, moradora da Vila Chaves
Os n�meros n�o traduzem todo sofrimento das fam�lias atingidas pelas enchentes ou daqueles que se encontram sob a amea�a constante de rompimento de barragens. Como disse a moradora de Congonhas, todos querem viver, e n�o virar estat�stica. Sobre esse aspecto, n�o h� um levantamento sobre quantas pessoas moram em �reas de risco em Minas Gerais, mas h� uma certeza: "Trata-se de uma situa��o t�cnica e pol�tica extremamente complexa e que sempre penaliza popula��es mais pobres, ribeirinhas, de �reas perif�ricas, sem pol�ticas urbanas", afirma a antrop�loga Andr�a Zhouri, coordenadora do Grupo de Estudos em Tem�ticas Ambientais (Gesta), vinculado ao Departamento de Antropologia e Arqueologia da Faculdade de Filosofia e Ci�ncias Humanas (Fafich) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Com longa experi�ncia nas quest�es socioambientais, a professora Andr�a Zhouri n�o poupa as autoridades governamentais e os empreendedores, certa de que os desastres resultam de padr�es institucionais econ�micos, administrativos e pol�ticos. "N�o � correto dizer que os problemas foram causados apenas pelas chuvas. As enchentes em janeiro s�o recorrentes, os efeitos, previs�veis. Assim, as consequ�ncias evidenciam as escolhas econ�micas tomadas. Dessa forma, s�o problemas ambientais, mas tamb�m sociot�cnicos."
O conceito de "atingido" demanda aten��o e ganha sentido nas palavras da professora. "Esse � o xis da quest�o. Quem � o atingido? O que � o risco? N�o � um problema matem�tico, de resposta r�pida. H� os que moram no entorno de barragem, de hidrel�tricas, mas que estavam ali antes de o empreendimento chegar, e, muitas vezes, t�m um deslocamento for�ado, com perdas maiores do que materiais, pois perdem sua hist�ria. Mas, hoje, existe o risco de qualquer um ser atingido trafegando na rodovia BR-040, ou at�, como j� aconteceu, passando numa via p�blica da Regi�o Centro-Sul de Belo Horizonte."
E mais: "Fundamental, portanto, � reverter a economia de visibilidades dos riscos imposta pela 'geografia do empreendimento', pois ela n�o contempla a vida constru�da no territ�rio. Precisamos incorporar um sentido de justi�a �s decis�es pol�tico-administrativas", destaca a coordenadora do Gesta/UFMG.
A solidariedade � uma marca do Residencial Gualter Monteiro
As �ltimas chuvas escancararam a inseguran�a em que vivem os residentes no entorno de empreendimentos de minera��o, assegura a bi�loga Let�cia Oliveira, integrante do Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens (MAB). "Falta maior fiscaliza��o, pois a popula��o nunca est� segura", diz Let�cia, lembrando que, se n�o h� um n�mero de pessoas amea�adas, tem-se a certeza de 70% dos atingidos n�o recebem seus direitos.
"A situa��o est� bem cr�tica. As pessoas ficam sempre em d�vida, n�o confiam nas informa��es, mesmo com avisos e sirenes", observa Let�cia, lembrando os rompimentos de barragens em Bento Rodrigues, em Mariana (em 5 de novembro de 2015) e Brumadinho (que completa tr�s anos no pr�ximo dia 25), ambas somando quase 300 mortos, para se avaliar a extens�o desse drama socioambiental. "No Quadril�tero Ferr�fero, o problema fica mais evidente. Mas se torna necess�rio o cumprimento da legisla��o por parte dos empreendimentos como tamb�m a fiscaliza��o, por parte das autoridades, de forma independente".
A situa��o cr�nica decorre de dois fatores de alto risco, diz a presidente nacional do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), arquiteta e urbanista Maria Elisa Baptista. "Grande parte da popula��o n�o tem onde morar com seguran�a, sem acesso a terra urbanizada ou a assessoria t�cnica para constru��o. Assim, vai para locais insalubres, sujeita a riscos inclusive geol�gicos."
Mas a situa��o n�o pode ser desvinculada do aumento cada vez maior das �reas ocupadas por minera��o e agroneg�cios. "No primeiro caso, a atividade segue modelos de explora��o arcaicos, causando deslizamentos, eros�o e outros danos ambientais", afirma a presidente do IAB. Na sua avalia��o, "Minas Gerais se tornou um grande retalho das mineradoras, causadoras da crescente polui��o das �guas e abertura de crateras. O exemplo maior est� no Quadril�tero Ferr�fero, no entorno de BH, que tem enorme potencial h�drico, mas exibe as marcas da explora��o predat�ria e das desigualdades sociais."
"Vivemos aos trancos e barrancos"
Cen�rio da Vila Chaves, na Regi�o Noroeste de BH, onde a moradora Dalirian Apolin�ria vive com medo: "A gente nunca consegue dormir direito" (foto: JUAREZ RODRIGUES/EM/D.A PRESS)
Quando chove, Elis�ngela Soares Arcanjo n�o tem coragem de transitar na fr�gil passarela de madeira, sobre um c�rrego, que lhe garante o acesso � rua. "Morro de medo, ent�o vou abrindo caminho no mato", confessa a m�e de Ana Cristina, de 18 anos, Davi Luan, de 5, e Maria Eduarda, de 3. Moradora da Vila Chaves, perto do Conjunto Calif�rnia 2, na Regi�o Noroeste de Belo Horizonte, ela, o marido e os filhos vivem em �rea de risco geol�gico. "N�o quero sair daqui. Ir para abrigo, para onde j� fui h� muitos anos. N�o quero de jeito nenhum", diz a simp�tica Elis�ngela.
No in�cio da tarde de quarta-feira, a equipe do EM esteve na Vila Chaves e viu as condi��es das fam�lias que vivem em casas de alvenaria, mas perto de barrancos. "Meu marido, o Cear�, fala em voltar para a terra natal, levar todo mundo, mas fico pensando no que j� constru�mos. Come�amos com um c�modo, h� seis anos, j� vamos para o terceiro", diz Elis�ngela estendendo a roupa no varal e mostrando casas que j� ca�ram, e das quais ficou apenas o alicerce.
N�o muito longe, a manicure Dalirian Apolin�ria, m�e de Lav�nia, de 2, resume o cen�rio na �rea invadida: "Vivemos aos trancos e barrancos". Para chegar � porta da moradia, � preciso uma escalada a partir do Beco Vale Verde, na beirada do c�rrego. "Morar aqui d� medo, a gente nunca consegue dormir direito. Desta vez, felizmente, o c�rrego n�o subiu tanto."
Adensamento urbano, assoreamento de cursos d'�gua e ocupa��o de �reas que jamais deveriam ser urbanizadas se transformam, durante as chuvas, em fatores de alto risco para os moradores, diz o ge�grafo, professor e pesquisador Alessandro Borsagli, que divide seu tempo entre BH e Jana�ba, no Norte de Minas. Um dos exemplos dessa situa��o pode ser visto ao longo do Rio das Velhas, que, neste per�odo, transbordou em Raposos, Santa Luzia e Sabar�, com s�rios preju�zos.
"Desde a Antiguidade, o ser humano procurou se fixar na margem dos rios, a fim de desenvolver a agricultura e ter �gua para o consumo das comunidades. Em Belo Horizonte, a partir da d�cada de 1940, houve maior ocupa��o, pelos menos abastados, das margens do Ribeir�o Arrudas, afluente do Velhas e integrante da Bacia do S�o Francisco. A ocupa��o, junto a outras interven��es, contribuiu para as enchentes hist�ricas nas d�cadas de 1980 e 1990, com mortos, desabrigados e preju�zos materiais."
RISCO GEOL�GICO
Conforme a Prefeitura de Belo Horizonte, h� 2 mil edifica��es em �reas de risco de vilas e favelas. Em 2021, foram removidas, preventivamente, cerca de 200 fam�lias.
Em nota, a PBH esclarece que o risco geol�gico � um processo extremamente din�mico e a redu��o identificada pela realiza��o de obras. O aumento, por sua vez, est� diretamente ligado ao aumento das ocupa��es, constru��es irregulares em �reas impr�prias e por fen�menos naturais, como a precipita��o pluviom�trica. "Com as chuvas hist�ricas registradas no per�odo 2019/2020, superiores � m�dia hist�rica dos �ltimos 40 anos, as �reas sofreram significativas altera��es", informam os t�cnicos. Desde o �ltimo per�odo chuvoso, a PBH fez mais de 5 mil vistorias, removendo, preventivamente, mais de 800 fam�lias de �reas de risco. Todas foram atendidas e encaminhadas para o Programa Bolsa Moradia e/ou Abono Pecuni�rio.
(foto: GUSTAVO WERNECK/EM/D.A PRESS)
"S� penso em me mudar daqui, pois fico em p�nico quando come�a a chover"
V�nia Bezerra dos Santos, de 66 anos, moradora do Pantanal, em Santa Luzia, ao lado do marido na foto
Nervos � flor da pele com c�u nublado
Assim que as nuvens escuras e carregadas tomam conta do c�u, V�nia Bezerra dos Santos adoece. Os nervos ficam � flor da pele, a cabe�a d�i, o corpo bambeia e ela s� pensa no pior: enchente. Nem as palavras de for�a vindas do marido servem para acalmar a mulher de 66, natural de Afogados da Ingazeira (PE) e moradora h� mais de tr�s d�cadas no Pantanal, �rea �s margens do Rio das Velhas, em Santa Luzia (RMBH).
Se h� momentos bons vividos no local, as cheias do Velhas e consequente inunda��o conseguem apagar as melhores recorda��es da pernambucana, casada h� 50 anos com o conterr�neo Ant�nio Bezerra dos Santos, de 72, padeiro – juntos, o casal tem cinco filhos pernambucanos e cinco netos e tr�s bisnetos mineiros. "S� penso em me mudar daqui, pois fico em p�nico quando come�a a chover. A gente passa muito aperto", ela lamenta.
Nas telhas de amianto da varanda, os dois mostram a marca da �gua, que subiu quase tr�s metros entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020. Desta vez, o Pantanal ficou novamente ilhado e o casal conseguiu sair um dia antes.
Se vem a pressa para tirar os m�veis durante as tempestades que elevam o n�vel do Rio das Velhas, distante 100 metros da casa de V�nia e Ant�nio, h� a faxina depois que o leito do afluente do S�o Francisco abaixa. Como a casa tem dois andares, toda a mob�lia � transportada para os c�modos de cima. Na �ltima limpeza geral, h� dois anos, V�nia caiu da escada, quebrou o bra�o e levou 10 pontos na testa. "Tivemos que ficar tr�s meses na casa de uma filha, que mora em regi�o mais alta do munic�pio", conta a mulher.
Com a proximidade do rio, n�o � raro aparecerem cobras vivas e muitos peixes mortos no quintal. Na pen�ltima cheia, a situa��o ficou dram�tica tamb�m para as dezenas de galinhas de Ant�nio. "Elas estavam numa mangueira do quintal, e tentei de todo jeito que entrassem na parte de cima da casa, pois a �gua estava chegando perto. O problema � que eu pegava as galinhas e elas voltavam para a �gua. Morreram mais de 30", conta o padeiro com tristeza.
Passarela de madeira na Vila Chaves: moradores t�m medo de passar por ela em dias de chuva (foto: JUAREZ RODRIGUES/EM/D.A PRESS)
HORA DO APERTO
Localizado na parte mais baixa do Bairro Nova Esperan�a, o Pantanal � uma �rea de ocupa��o iniciada h� v�rias d�cadas. Em cada lote, � poss�vel encontrar v�rias fam�lias, de um mesmo n�cleo, habitando casas separadas, numa grande comunidade. Natural de Belo Horizonte, Lucineia Rangel, de 49, casada, tem quatro filhos, 10 netos e mora h� 25 anos na localidade, distante cinco quil�metros do Centro de Santa Luzia.
No terreno, s�o quatro moradias, ocupadas por dois filhos, pois um deles mora com os pais. "Uma filha achou melhor se mudar, depois da �ltima enchente, e mora no Palmital (bairro no distrito de S�o Benedito)", conta Lucineia. Depois de conferir a "situa��o" do c�u, um assunto corriqueiro no Palmital, a moradora conta que perdeu tudo, "tudo mesmo", na �ltima enchente: "Todos os m�veis, geladeira, televis�o, o tanquinho... n�o ficou nada. E nem tive a sorte de ganhar outros". No fim de semana passado, ela reviveu os dramas e procurou abrigo antes de acontecer o pior. "Aqui em casa tem evang�lico, cat�lico, pedimos ajuda a Deus", afirma.
Em Valadares, li��es de resili�ncia
A foto de Camila Ferreira dos Santos Matos, de 32 anos, t�cnica de enfermagem, viralizou nas redes sociais dos moradores de Governador Valadares, na Regi�o Leste do estado. Ela foi flagrada pelo rep�rter fotogr�fico Juninho Nogueira quando estava saindo de casa carregando o pequeno Fumo (nome do seu cachorro de estima��o), dois smartphones e um carregador port�til dentro de uma sacola, presa entre os dentes, e um len�ol.
A coragem de Camila, andando no meio das �guas do Rio Doce, impressionou muitas pessoas. Apesar do perigo e dos riscos que ela enfrentou para tirar Fumo de casa e os pertences, � bom explicar que a rela��o dela com o rio � bem estreita, assim como a de seus vizinhos, moradores do Bairro S�o Tarc�sio, o primeiro a ser inundado. O bairro tamb�m � considerado o marco zero de Governador Valadares.
No in�cio da povoa��o da cidade, no fim do s�culo 19, a �rea onde hoje se encontra o S�o Tarc�sio ficava entre dois portos de canoas. Um deles se localizava pertinho da Rua Direita (atual Prudente de Morais e bem pr�ximo de onde Camilla estava) e o outro pr�ximo do local onde est� agora a Esta��o de Tratamento de �gua do Saae.
Nos dois portos chegavam gr�os, frutas e pequenos animais destinados ao com�rcio essencial para alimentar os moradores de Figueira, distrito de Pe�anha, emancipado em 1937, e que mudou de nome em 1938, passando a se chamar Governador Valadares.
A import�ncia hist�rica do S�o Tarc�sio, aliado ao fato de ser o primeiro a ser alagado, n�o coloca o bairro como prioridade nas opera��es de salvamento desencadeadas pelas autoridades. "Aqui, cada um ajuda o outro. S�o os vizinhos que chegam e perguntam o que a gente est� precisando", disse Camila.
EM FAM�LIA
Na casa de Camila moram sete pessoas. Ela, a m�e, dois irm�os, a cunhada e dois sobrinhos. E a enchente de 2022 fez um estrago. "Perdemos guarda-roupas, camas e outros bens materiais que n�o conseguimos subir. A �gua veio muito r�pido e n�o teve como evitar", disse. Apaixonada por motocicletas, Camila tem uma Honda XRE 300, que foi levada para a antiga Rua Direita, dos tempos da Figueira, atual Rua Prudente de Morais.
O fato de ter de se virar para se salvar, n�o somente ela, mas toda a comunidade do S�o Tarc�sio, n�o � motivo de revolta para Camila. Ela reconhece que a infraestrutura do bairro � deficiente. Afinal, historicamente, o bairro nasceu de uma ocupa��o desordenada e os acessos s�o dif�ceis.
Mesmo assim, ela reivindica uma aten��o especial das autoridades municipais e entidades assistenciais, principalmente no p�s-enchente. "�s vezes, as autoridades v�m aqui para mostrar a situa��o. A ajuda, as doa��es, ficam por nossa conta mesmo, por conta dos vizinhos e amigos".
Sobre a sequ�ncia de trag�dias que se abateu sobre Minas Gerais no fim de 2021 e in�cio de 2022, Camila diz que n�o d� para culpar ningu�m, embora ela reconhe�a a a��o do homem na destrui��o do meio ambiente. "Para mim, nada acontece se n�o for da vontade de Deus".