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Estado de Minas

10 anos da Lei de Cotas: "A universidade n�o � mais a mesma"

Representante da UFMG avalia que sistema de reserva de vagas trouxe impacto significativo, critica falta de dados oficiais e diz que � cedo para avaliar efeitos


13/09/2022 04:00 - atualizado 12/09/2022 20:24

Rodrigo Edinilson de Jesus, presidente da Comissão de Ação Afirmativa e Inclusão da UFMG
Rodrigo Edinilson de Jesus, (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press - 17/5/18 )


A legisla��o que mudou o perfil das institui��es federais de ensino completa 10 anos. Ao reservar metade das vagas a estudantes vindos de escolas p�blicas e, entre esses, negros, ind�genas, deficientes e pessoas de baixa renda, a Lei de Cotas vai al�m da cor, origens, tipo de cabelo, condi��o financeira... Ela toca direto � assist�ncia estudantil, nas quest�es envolvendo a perman�ncia desses estudantes e no desejo e direito de representa��o desses grupos nos espa�os de ensino, pesquisa e extens�o. Nas universidades federais, o n�mero de cotistas aumentou 10 vezes. Em Minas Gerais, a UFMG, uma das maiores do pa�s, viu a presen�a de alunos negros e brancos equilibrar a balan�a da (des)igualdade. Os efeitos globais das cotas s�o desconhecidos, pois falta avalia��o nacional. A lei tem lacunas e precisa de aprimoramentos, mas o debate n�o encontrou eco e a revis�o prevista para este ano est� ficando na gaveta. Na terceira e �ltima reportagem da s�rie sobre a Lei de Cotas, o  Estado de Minas entrevista o presidente da Comiss�o de A��o Afirmativa e Inclus�o da UFMG, Rodrigo Edinilson de Jesus, para quem uma avalia��o neste momento � arriscada do ponto de vista pol�tico e da coleta de dados. “Se a lei tem como objetivo direto e indireto combater desigualdades raciais, n�o pode ser uma revis�o apenas do n�mero de ingressantes ou de egressos”, diz. Combater v�cios hist�ricos e garantir direitos ainda representam grandes desafios: “O imagin�rio do Brasil ainda est� vinculado � casa grande e � senzala”, afirma.
 
A revis�o da Lei de Cotas n�o foi feita ainda. O que fica comprometido?
Lei tem for�a de lei, e ela diz que em 10 anos o texto seria revisado. Mas, em geral, toda lei tem decretos complementares de regulamenta��o para dizer como ser� operacionalizada. H� o decreto regulamentando a aplica��o da lei, mas n�o h� regulamenta��o da revis�o. Minha avalia��o pol�tica: no momento do debate p�blico sobre a lei havia m� vontade grande de alguns setores e algumas condicionalidades foram aprovadas para mitigar o impacto mais efetivo da lei. Ela ser� de 10 anos e n�o ad eternum. O movimento negro tamb�m encampou o discurso n�o como algu�m que quisesse a lei por 10 anos, mas falar dessa condicionalidade ajudava no convencimento. Tr�s elementos que hoje discutimos muito – pol�ticas de perman�ncia, revis�o da lei e acompanhamento da autodeclara��o – j� estavam de alguma forma presentes no debate, mas n�o foram tematizados, porque eles gerariam mais tens�o. No fim das contas, atores pol�ticos interessados na implementa��o das cotas pensaram: vamos conseguir a pol�tica de acesso para depois avan�ar nas outras dimens�es. Embora presente na lei, (a revis�o) n�o foi seriamente levada em considera��o. Tanto � que temos muitas iniciativas setoriais de avalia��o, como no curso X, na universidade Y, mas uma pesquisa de acompanhamento de grande banco de dados ligando acesso e inser��o no mercado de trabalho, isso n�o houve.
 

"Acho um problema quando a lei descreve que destinat�rios da pol�tica s�o pretos, pardos, ind�genas, separados com v�rgula. Fica parecendo que pretos e pardos s�o grupos aut�nomos"

 

Como fazer essa revis�o?
Se a lei tem como objetivo direto e indireto combater desigualdades raciais, n�o pode ser uma revis�o apenas do n�mero de ingressantes ou de egressos. Tem que acompanhar a transi��o no mercado de trabalho para ver se o rendimento de indiv�duos negros tem aumentado nesse ingresso. N�o faz sentido esse acompanhamento em 10 anos, porque em uma d�cada n�o se completa um ciclo. Em termos de desenho, avalia��o, acompanhamento, o ciclo de monitoramento de cotas n�o se fechou. S�o cinco anos em m�dia de gradua��o, um ou dois anos de interse��o para entrada no mercado na sua �rea espec�fica, mais cinco anos para in�cio e meio de carreira. S�o pelo menos 15 anos para come�ar a fazer efeito. N�o d� para pensar em apenas uma turma de ingressantes, a de 2013. O Brasil tem passado por momento de decl�nio no mercado de trabalho, isso impacta tamb�m. Tem vari�veis intervenientes que precisam ser consideradas. Para fazer esse tipo de esfor�o, � necess�ria a coordena��o feita pelo MEC (Minist�rio da Educa��o) com equipe e recursos. Sen�o, corre-se risco de fazer avalia��o como em S�o Paulo, uma avalia��o ideol�gica.

E o que precisa ser levado em conta? 
H� dois pontos: juridicamente falando, h� ritos, quando se coloca na letra da lei que ela ser� submetida � revis�o, e a expectativa do que ser� feito a partir de dados e tomada de decis�o com base em evid�ncia. Mas, olhando para nosso Legislativo, n�o tem muita expectativa de que todas as pessoas que est�o l� v�o tomar decis�o a partir de evid�ncia. H� muitos projetos de lei tramitando atualmente sobre as cotas, alguns indicando a continuidade da lei, outros propondo a retirada do recorte racial, mas tudo isso a partir de impress�es. Aqueles que sinalizam a necessidade de continuidade chamam a aten��o para aus�ncia de dados e do ciclo completo da gera��o dos efeitos. Mas, mesmo esses n�o est�o ancorados em dados, porque n�o existem. A �nica iniciativa do MEC de que tenho not�cia de avalia��o mais global da lei foi pesquisa financiada em 2017, que coordenei, na transi��o do governo Michel Temer (2016-2017). Tivemos incumb�ncia, al�m de entrevistar egressos negros e ind�genas, de fazer an�lises substanciais de dados quantitativos de ingresso de negros e aumento de pol�tica de cotas. S�o dados s� de ingressantes, porque n�o h� banco de dados de concluintes. Tem Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), mas ele � amostral, n�o tem dado universal. N�o tem como identificar o c�digo do aluno e ele no mercado de trabalho. O Inep teria como fazer, pegar amostras para fazer rendimento de ingresso no mercado de cotistas e n�o cotistas.
 

"A UFMG tinha 70% de alunos autodeclarados brancos, em 2003, e em 2009 (ano em que instituiu o b�nus no vestibular), vai para 49% de estudantes brancos e 45% negros"

 
 
Na aus�ncia de regulamenta��o da revis�o, em ano eleitoral, h� espa�o para essa discuss�o? 
A reforma conservadora que vivemos se deve a pol�ticas progressistas, como a de cotas. A pol�tica explicita exist�ncia de conflitos raciais no Brasil, explicita o abismo racial na sociedade brasileira, e um dos espa�os de reprodu��o da desigualdade da universidade � questionada, deixa de ser exclusiva. Nesse momento que emerge discurso forte de que o PT dividiu a na��o, criou brancos e negros e o discurso de descredita��o da universidade p�blica, chamando-a de balb�rdia... A retirada de Dilma (Roussef), entrada de Temer e posterior elei��o foram parte da desestabiliza��o dessa pol�tica e desse projeto de na��o. N�o foi falta de planejamento, mas continuidade do enredo. N�o h� interesse na continuidade da pol�tica, porque para esse governo nem existe racismo no Brasil. � incoerente patrocinar a revis�o da lei, por desacreditar nela, e mais estranho seria se houvesse revis�o para continuidade. O discurso que esteve presente na �poca da cria��o da lei (e ainda existe), de que “cotista roubou minha vaga”, mostra a vaga como capitania heredit�ria e ideia do cotista como marginal, como ladr�o. Outro exemplo � o programa Mais m�dicos: a oposi��o a esses m�dicos n�o se deve ao fato de serem estrangeiros, mas por serem negros cubanos. O imagin�rio do Brasil ainda est� vinculado � casa grande e � senzala.

O que mudou na UFMG com as cotas?
Hoje, do ponto de vista discente, a universidade n�o � mais a mesma. Esses estudantes n�o impactam apenas o corpo, o cabelo, mas a dimens�o epistemol�gica: se organizam, reivindicam representa��o, questionam a dimens�o euroc�ntrica dos curr�culos, a postura universalista da assist�ncia estudantil. Credito aos coletivos de estudantes negros e ao programa A��es Afirmativas e Conex�es dos Saberes a mudan�a por dentro. At� 2000, 2002, havia uma press�o muito de fora; com a chegada desses estudantes, come�a a ter press�o por dentro. A UFMG avan�ou em todos os aspectos. A elei��o de Jaime (Ramirez) e Sandra (Goulart), como reitor e vice, em 2004, teve impacto significativo na gest�o e nas pessoas mobilizadas para estar na gest�o, mas ainda h� enclausuramento da gest�o, ainda n�o tomou toda a institui��o. � conduzido por alguns t�cnicos e setores, mas tem alguns ainda que n�o conseguem dizer o que s�o cotas. Operacionalizam a pol�tica, que segue a cor. Eu avalio que temos processo de implementa��o de algumas pol�ticas em alguns setores, mas n�o a dimens�o institucional em v�rios deles.

A reserva de vagas se estende a todo o c�mpus?
A Lei 2.711 � uma reserva social e h� sub-reservas – em torno de 25% de estudantes autodeclarados pretos, pardos e negros. Em 2017 se conseguiu avan�o interessante, com aprova��o das cotas na p�s-gradua��o. Cotas para ingresso de servidores t�cnico-administrativos j� s�o implementadas na totalidade, mas embora tenha reserva para docentes, n�o h� garantia dessa reserva. Essa � uma mudan�a muito importante para conseguirmos diversificar corpo docente, gest�o, produ��o da ci�ncia e democratizar decis�es da universidade. N�o estou falando que vivemos num mundo sem desigualdade, mas houve avan�o na redistribui��o de renda. E isso gera ressentimentos.
 
 Estudantes na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
Faculdade de Filosofia e Ci�ncias Humanas da UFMG (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.A Press - 30/3/15)
 

Quais modifica��es deveriam ser feitas na Lei de Cotas?
A lei n�o garante o direito, o usufruto do direito, o que garante � a pol�tica. Acho um problema quando a lei descreve que destinat�rios da pol�tica s�o pretos, pardos, ind�genas, separados com v�rgula. Fica parecendo que pretos e pardos s�o grupos aut�nomos, que pardo � outro grupo racial. Em todo debate de a��o afirmativa na d�cada de 2000, estava n�tido que a pol�tica era dirigida � popula��o negra (de pele preta e de pele parda). Essa pode ser uma modifica��o na letra da lei.

E na pol�tica da lei?
Tem que ser pensada n�o como reserva de vaga, mas como a��o afirmativa. Est� vinculada � perman�ncia, titula��o, entrada no mercado, modifica��o dos curr�culos. Questionamento de hegemonia universalista que segue a cor (a legisla��o aborda o recorte racial e depois diz que n�o precisa olhar dimens�o racial na pol�tica). Dados que temos d�o conta de que estudantes cotistas evadem menos que n�o cotistas. Na UFMG � muito expl�cito em fun��o da pol�tica estudantil, uma das mais consistentes da universidade. N�o significa que n�o haja lacunas. Para esse estudante permanecer precisa ter suporte institucional, familiar, ou trabalhar muito mais que os outros. O custo simb�lico da vaga � muito maior que o custo para algu�m que sabe que entra, sai, muda de curso.

Como o senhor avalia a trajet�ria de cotistas?
A mudan�a foi muito significativa: sa�ram de 8 mil, em 2009, para 85 mil em 2016. A UFMG tinha 70% de alunos autodeclarados brancos, em 2003, e em 2009 (ano em que instituiu o b�nus no vestibular), vai para 49% de estudantes brancos e 45% negros. Esse percentual se mant�m mais ou menos est�vel. Em cursos mais prestigiosos, vemos como mudou o perfil do b�nus para as cotas. Nos cursos em que a m�dia de nota � muito alta, o b�nus n�o era suficiente para fazer essa diferen�a, ent�o, havia uma sobrerrepresenta��o em cursos com nota de corte um pouco menor. Quando se instauram as cotas, necessariamente se garante um percentual em cursos como direito, medicina, odontologia.
 
 


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