Negro ou preto? Lideran�as negras refletem sobre o uso dos termos ao longo da hist�ria
A sem�ntica perseguiu a popula��o n�o branca brasileira carregada pelo preconceito e s� perdeu o tom pejorativo na luta dos movimentos sociais de liberta��o
Negro drama, cabelo crespo e a pele escura/A ferida, a chaga � procura da cura”. Esses versos escritos por Edivaldo Pereira Alves, mais conhecido como Edi Rock, comp�em a segunda estrofe de uma das letras mais contundentes e representativas do rap nacional. Lan�ada pelos Racionais MC’s em 2002 no disco Nada Como um Dia Ap�s o Outro Dia, a m�sica Negro Drama, composta em parceria com Mano Brown, trata com naturalidade e realidade o cotidiano da popula��o negra no Brasil.
Mas, o certo � dizer popula��o ‘negra’ ou popula��o ‘preta’? Quem frequenta as redes sociais digitais deve ter se deparado com essa celeuma nos �ltimos dias, sobre qual seria a forma correta de classifica��o e tratamento. O Estado de Minas conversou com intelectuais negros de diferentes campos do saber e prop�e no Dia da Consci�ncia Negra, celebrado hoje, uma reflex�o sobre o uso dos termos ao longo da hist�ria.
O olhar atento aos dois termos revela uma trajet�ria de luta do movimento negro que foi al�m de positivar esses termos, do ponto de vista sem�ntico. Ela ajuda a descortinar quest�es que envolvem a popula��o negra, por exemplo, ao preencher formul�rios nas redes de atendimento � sa�de no momento de autodeclarar a cor. A medida � uma forma de saber como determinadas doen�as impactam esse segmento da popula��o e ajudam tamb�m na defini��o de pol�ticas p�blicas.
Conversamos com a escritora Concei��o Evaristo, que abre caminhos para os negros na literatura. Tamb�m falou com o cientista pol�tico Cristiano Rodrigues, pesquisador do Departamento de Ci�ncia Pol�tica da Universidade Federal de Minas Gerais, e com a jornalista Rosane Borges, pesquisadora colaboradora do Centro Multidisciplinar de Pesquisas em Cria��es Colaborativas e Linguagens Digitais (Colabor), da Escola de Comunica��es e Artes da Universidade de S�o Paulo (USP).
A reportagem ainda fez um levantamento no imenso manancial que � a m�sica brasileira para entender como esses termos foram empregados ao longo dos anos. A maneira como os termos aparecem, quase sempre, demonstra momentos importantes da hist�ria brasileira e como a quest�o racial foi tratada no pa�s. As m�sicas s�o chaves para reflex�es, s�o fonte de constru��o de identidade e autoestima e, muitas vezes, s�o den�ncias. A sem�ntica positiva foi dada aos termos muito em fun��o da m�sica e da literatura.
Luta pela positiva��o
“Sou de uma gera��o que assistiu esse esvaziamento negativo da palavra negro. A palavra negro era usada sempre no sentido pejorativo. Quando queria atingir uma pessoa negra, o termo era usado. Houve um trabalho, uma autonomea��o da palavra negro para esvaziar o sentido negativo dessa palavra. Foi criada uma sem�ntica de positividade. Isso muito por meio da literatura”, afirma Concei��o Evaristo.
A escritora Concei��o Evaristo usa com mais frequ�ncia o termo negro, mas lembra que, influenciada pelas novas gera��es, passou a adotar o termo preto (foto: Livia-Wu/Divulgacao)
A positiva��o do termo negro se deu, por exemplo, nos Cadernos Negros, publica��o que abriu espa�o para a literatura afro-brasileira desde 1978 at� os dias atuais. “A pr�pria nomea��o de Cadernos Negros indica. Em v�rias cria��es po�ticas, o eu l�rico se pronunciava como negro ou a musa inspiradora do poema era sempre uma mulher, e essa mulher nomeada de negra”, diz Concei��o, que defendeu em, 1997, disserta��o de mestrado com o t�tulo Literatura negra: uma po�tica de nossa afro brasilidade.
"Sou de uma gera��o que assistiu esse esvaziamento negativo da palavra negro. A palavra negro era usada sempre no sentido pejorativo. Houve um trabalho, uma autonomea��o da palavra negro para esvaziar o sentido negativo dessa palavra. Foi criada uma sem�ntica de positividade. Isso muito por meio da literatura"
Concei��o Evaristo, escritora
Concei��o usa com mais frequ�ncia o termo negro, mas lembra que, influenciada pelas novas gera��es, passou tamb�m a adotar o termo preto. “Prefiro o termo negro. � mais enf�tico por esse trabalho de criar um novo sentido, de rebater o sentido negativo da palavra e se afirmar como pessoa negra em todos os sentidos”, diz.
Em Becos da Mem�ria (Mazza Edi��es, 2006), um dos personagens criados por Concei��o � Negro Al�rio. A palavra est� muito colada ao personagem. Noutros momentos, a escritora usa a palavra negro e negra tanto para personagens femininos como masculinos. “Becos da Mem�ria termina com a frase: o negro luzidio. A narrativa se refere ao corpo de v� Rita, o negro luzidio de sua pele”, destaca Concei��o.
Diferen�a de gera��es
Para o cientista pol�tico Cristiano Rodrigues, a diferen�a no uso dos termos tem a ver com quest�es geracionais. Os movimentos negros, Movimento Negro Unificado (MNU), Cadernos Negros, passaram a adotar e reafirmar o sentido do termo negro na d�cada de 70 e, com isso, influenciaram toda uma gera��o. As gera��es que os antecederam usavam outras nomenclaturas e as gera��es contempor�neas optam pelo termo preto.
O uso pode ser tanto de um termo quanto outro. Cristiano destaca que os termos preto e negro s�o intercambi�veis. “N�o vejo, do ponto de vista sem�ntico, nenhuma diferen�a entre um e outro”. Para ele, o que a disputa de certo ou errado sobre o uso dos termos revela � muito mais discuss�es internas dos movimentos sociais e reflexo de mudan�a geracional.
Cristiano Rodrigues pontua que o debate eclode com maior for�a no Brasil nos anos de 1970, quando h� uma express�o dos movimentos sociais, que contribui para construir uma ideia de negros, de uma consci�ncia negra, da negritude. “Isso vai ser amplamente divulgado nos debates dos movimentos negros da �poca e chega � sociedade”, afirma.
"Existem ativistas do movimento negro que v�o revelar, durante o per�odo da escravid�o, a refer�ncia a pretos e negros. Negro fuj�o, voc� referia a negro. Essa positiva��o da categoria negro para ativistas tinha a ver com o negro que foge da posi��o de cativeiro e o preto seria categoria mais de cativo. N�o sei se � verdade ou n�o, mas de todo jeito houve uma prefer�ncia do movimento negro pela categoria negro"
Cristiano Rodrigues, cientista pol�tico
O cientista pol�tico lembra que uma gera��o que tomou consci�ncia da quest�o racial, a partir da influ�ncia do MNU nos anos 1970, opta pela nomenclatura negra. A discuss�o tamb�m recebe influ�ncia de um debate internacional, o black is beautiful nos Estados Unidos e a transforma��o da nomenclatura nigger para black entre os anos 1960 e 1980. No Brasil, a prefer�ncia recai pela nomenclatura negro.
O pesquisador destaca tamb�m a emerg�ncia da categoria cor nos censos brasileiros. “Por um tempo, tivemos a categoria cor de pele esva�da, retirada dos censos brasileiros, depois inclu�da de forma aberta (as pessoas informavam a cor) e, mais tarde, inclu�da de forma fechada em que h� duas categorias: pretos e pardos”, diz.
As denomina��es de pretos e pardos ficam sob o guarda-chuva da categoria negro, definindo a popula��o negra. O Censo 2010 apontou que o total da popula��o brasileira � de 190.755.799. Desse total, 91.051.646 se autodeclararam brancos (47,73%), 82.277.333, pardos (43,13%), 14.517.961, pretos (7,61%), 2.084.288, amarelos (1,09%) e 817.963 (0,42%), ind�genas, enquanto 6.608 (0,003%) n�o declararam cor ou ra�a. Somados, pretos e pardos representam 50,74% da popula��o brasileira.
Consci�ncia racial
H� ado��o do termo negro, portanto, seguindo dois vetores: um dos movimentos sociais, de criar consci�ncia, oferecer novo sentido para terminologia negativa e o outro das pesquisas acad�micas. “Existem ativistas do movimento negro que v�o revelar, durante o per�odo da escravid�o, a refer�ncia a pretos e negros. Negro fuj�o, voc� referia a negro. Essa positiva��o da categoria negro para ativistas tinha a ver com o negro que foge da posi��o de cativeiro e o preto seria categoria mais de cativo. N�o sei se � verdade ou n�o, mas de todo jeito houve uma prefer�ncia do movimento negro pela categoria negro em detrimento da categoria preto”, diz Cristiano Rodrigues.
O cientista pol�tico destaca tamb�m os estudos sociol�gicos, de estratifica��o social e de desigualdades sociais e raciais brasileiras, que adotam a categoria negro pelo entendimento que faria a jun��o de dois grupos de cor aproximados, pessoas que se declaram pardas e o grupo daquelas que se declaram pretas.
Mudan�a de nomenclatura
Estudos do antrop�logo L�vio Sansone mostram a transforma��o da nomenclatura nas gera��es. “Uma gera��o mais velha, aquela que anterior ao MNU, tende a n�o se reconhecer negra, mas preta e usar outras categorias, como moreno e outras nomenclaturas poss�veis para designar pessoas n�o brancas no Brasil. A gera��o mais jovem, que teve acesso � mobiliza��o do movimento negro, tende a se declarar negro.”
Na avalia��o de Cristiano Rodrigues, o debate nas redes sociais � feito por uma gera��o ainda mais nova do que foi a socializada pelo MNU. A retomada do termo preto tem influ�ncia do debate sobre o colorismo, que afirma que o tom da pele determina os graus do preconceito. Quanto mais retinta a pele, de mais preconceito a pessoa � v�tima e pessoas com tons de peles mais claros teriam mais privil�gios de pessoas com tons de pele mais escuros. “A gera��o mais jovem, menos conscientizada pela a��o do movimento negro nos anos 1970, tende a trabalhar com terminologias mais flu�das do que das gera��es anteriores”.
Negro � lindo
A ideia do orgulho de pertencer � etnia negra foi bastante disseminada no mundo ocidental na d�cada de 1960, �poca em que o pensamento ‘Black is Beautiful’ (Negro � Lindo) se popularizou nos Estados Unidos. O movimento americano foi t�tulo de uma can��o gravada por Elis Regina, uma composi��o de Wilson Simonal, em 1970 em que a ‘Pimentinha’ pedia: “Eu quero um homem de cor. Um Deus negro do Congo ou daqui. Black is beautiful. Hoje � noite, amante negro, eu vou enfrentar o meu corpo no teu”.
A inspira��o alcan�ou Jorge Ben Jor que, em 1971, comp�s Negro � Lindo, para declarar o �bvio e, paradoxalmente, necess�rio de ser dito: “Negro � amor, negro � amigo. Negro tamb�m � filho de Deus”. E os manifestos em forma de can��o foram se multiplicando no repert�rio brasileiro.
Em Il� Ay�, de 1976, Gilberto Gil mostrou a todos o mundo negro e se negou a iluminar o caminho de quem n�o lhe compartilhasse da mesma malandragem e filosofia, disparando: “Que bloco � esse? Eu quero saber. � o mundo negro que viemos mostrar pra voc�. Somo crioulo doido, somo bem legal. Temo cabelo duro, somo black pow. Branco, se voc� soubesse o valor que o preto tem, tu tomava banho de piche e ficava preto tamb�m. Eu n�o te ensino a minha malandragem, nem tampouco minha filosofia. Quem d� luz a cego � bengala branca e Santa Luzia.”
Jorge Arag�o, em 1991, recha�ou a express�o ‘preto de alma branca’, termo pejorativo mal disfar�ado de elogio – e, consequentemente todas as suas varia��es, como o sujeito domin�, que � preto, mas com pinta de branco. Arag�o denunciou em e ensinou em Identidade a confrontar segrega��o nossa de cada dia nos elevadores sociais e de servi�o.
“Se preto de alma branca pra voc� � o exemplo da dignidade, n�o nos ajuda, s� nos faz sofrer, nem resgata nossa identidade. Elevador � quase um templo. Exemplo pra minar teu sono. Sai desse compromisso, n�o vai no de servi�o. Se o social tem dono, n�o vai. Quem cede a vez n�o quer vit�ria. Somos heran�a da mem�ria. Temos a cor da noite. Filhos de todo a�oite. Fato real de nossa hist�ria.”
Em 1995, Rappin Hood, ainda no grupo Posse Mente Zulu, comp�s “Sou Negr�o”, uma declara��o de amor � ra�a, vindo a regrav�-la mais tarde, em 2000, num dueto com Leci Brand�o, em que dizem: “20 de novembro temos que repensar, a liberdade do negro, tanto teve de lutar. O negro n�o � marginal, n�o � perigo. Negro � ser humano, s� quer ter amigo.”
ENTREVISTA//Rosane Borges
Jornalista e pesquisadora colaboradora do Centro Multidisciplinar de Pesquisas em Cria��es Colaborativas e Linguagens Digitais (Colabor), da Escola de Comunica��es e Artes da Universidade de S�o Paulo (USP)
O termo "negro" passa a determinar a luta coletiva de um grupo populacional no Brasil a partir da institui��o do Movimento Negro Unificado no final da d�cada de 1970?
O termo negro ganha uma positividade com maior ader�ncia, com ascens��o do movimento negro contempor�neo no Brasil, protagonizado por institui��es como o MNU. Ent�o, a partir da d�cada de 1970, express�es que eram consideradas negativas, ruins ou n�o muito aceitas passam a ser adotadas como forma de resist�ncia. A palavra negro � uma delas.
Quais foram os ganhos que o termo negro trouxe do ponto de vista do combate ao racismo? � como se houvesse “povo” negro apagando as m�ltiplas camadas que envolvem pessoas desse grupo populacional...
O ganho que temos com a palavra negro � que ela abriga pretos e pardos. N�s somos maioria, porque somos essa jun��o de pretos e pardos no Brasil (Somados, pretos e pardos representam 50,74% da popula��o brasileira, segundo o IBGE). Quando a gente toma popula��o negra, os ganhos se d�o a partir da�. N�o considero que leva a essencialismos, porque os n�o-brancos no Brasil carregam o �nus do patrim�nio da cor. Quem tem o patrim�nio da cor � a popula��o branca. A categoria do ponto de vista sociol�gico e demogr�fico � importante para pensar esse Brasil n�o-branco e como essas pessoas sofrem por serem n�o-brancas. Esse marcador � fundamental e � importante.
Nos Estados Unidos, o termo "nigger" � recha�ado. No Brasil, ambos os termos negro e preto convivem entre si. H� raz�es para sobrepor um termo ao outro aqui?
Dentro das matizes de cor no Brasil, os n�o-brancos sabem que eles carregam o �nus da cor. Ent�o, a pessoa que � considerada parda sofre, ao longo de sua trajet�ria, destitui��es por n�o ser branca. N�o h� nenhum preju�zo, pelo contr�rio. Ao se adotar a palavra negro para abranger os n�o-brancos no Brasil, a gente aporta e revela que a quest�o racial � um d�namo para exclus�es.
O IBGE emprega o termo negro em refer�ncia a pretos e pardos. Essa classifica��o � correta?
A conviv�ncia do termo negro e preto se d� a partir do que voc� pergunta inicialmente – se h� ado��o do termo negro e do termo preto – dois termos que acabam tendo conota��o negativa. Algumas pessoas dizem que preto se refere a cor e negro se refere � dimens�o racial, mas, no Brasil, as duas categorias funcionam. Elas t�m uma sem�ntica que expressa, tanto para o racismo, quanto para o antirracismo, o que se quer dizer com essas palavras. N�o h� nenhum tipo de problema com as palavras. O problema � com o racismo.
Nos EUA, a express�o “Black is beautiful” e o movimento Black Panther mudaram a representa��o dos negros no mundo. Em que momento na hist�ria do Brasil, podemos destacar a positiva��o dos termos negro e preto com a for�a que tiveram na d�cada de 1960?
Desde a d�cada de 1970, o movimento negro brasileiro vem criando autoestima na popula��o negra. Isso vem tamb�m com os bailes blacks aqui. Vem com as agremia��es, reuni�es, afirma��o est�tica, e com valoriza��o do cabelo. Tivemos movimentos semelhantes aqui no refor�o da nossa identidade, no refor�o de est�tica afirmativa.