
Gustavo Werneck
A m�o firme d� as boas-vindas, enquanto o sorriso tranquilo abre as portas para uma boa conversa – e cada palavra ouvida deve ser anotada delicadamente, pois traz li��es de vida, cultura, experi�ncia. Dona de grande lucidez e com disposi��o para aprender todo dia, �ngela Tonelli Vaz Le�o, professora em�rita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da PUC Minas, esbanja energia aos 100 anos, completados no �ltimo dia 1º, e, sincera, diz n�o encontrar palavras para traduzir a vida. "Vida? N�o sei...pode ser amor � vida. Sim, tenho amor pela vida."
Neste s�bado, Dia dos Professores, as merecidas homenagens aos docentes mineiros se entrela�am na figura e no trabalho da mestra, natural de Formiga, na Regi�o Centro-Oeste de Minas. "N�o tenho exatamente uma mensagem aos professores. Penso que quem achar que deve comemorar que comemore." Em seguida, ao ouvir palavras elogiosas � sua trajet�ria em sala de aula, participa��o em encontros de literatura e publica��o de livros, desconversa. "Eu? � mesmo? Tudo � trabalho. O que gosto de fazer eu fa�o", pontua a frase com bom humor e encerra com seriedade.
LEITURA, SEMPRE Na tarde de ontem, descansando no s�tio do filho M�rio Coelho Le�o, engenheiro, em Confins, na Regi�o Metropolitana de Belo Horizonte, a professora �ngela disse que continua no trabalho com as palavras – "escrevendo" –, ressalta . "Era muito menina ainda, tinha 13 anos quando comecei a dar aulas, em Formiga. � noite, meu pai me levava. J� se passaram tantas d�cadas, mais de 80 anos, nem sei quantos alunos tive, pois foram centenas.".
O tempo passou e a jovem se graduou em letras, nos anos 1940, na UFMG, onde muitas d�cadas depois se tornaria professora em�rita. Cada passo teve a escrita como guia. "Sempre gostei de ler e tenho meus autores preferidos: Machado de Assis, pelo estilo e compet�ncia. Em mat�ria lingu�stica, n�o existe outro no Brasil e em Portugal. Sou f�", conta a professora, que sempre retorna �s p�ginas de "Dom Casmurro". J� entre os portugueses, est� Lu�s de Cam�es e seu "Os Lus�adas".
Na varanda do s�tio, dona �ngela, residente em Belo Horizonte, de onde diz gostar demais, observa a tarde, fala de como aprecia a natureza e da melhor maneira de preservar a sa�de para chegar bem aos 100 anos. Sobre esse �ltimo aspecto, entusiasma-se: "A vida inteira pratiquei esporte. Muito mesmo! Na Escola Normal, em Formiga, jogava v�lei". Um cochilo depois do almo�o � sempre bem-vindo, ela concorda, embora ontem n�o tenha demonstrado o menor sinal de cansa�o durante a entrevista, que ocorreu logo depois da refei��o.
Ainda na varanda, mostra a �ltima edi��o do seu livro "Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o S�bio: Aspectos culturais e liter�rios". Olha com aten��o a obra, sobre a qual se tornou especialista, e elogia o texto escrito no s�culo 13, em galego-portugu�s. "� muito bonito", resume.
FAM�LIA Vi�va h� 30 anos de Wilson Coelho Le�o, a professora �ngela tem cinco filhos (Athos, M�rio, as g�meas Beatriz e Regina e �ngela Maria), 10 netos e 11 bisnetos. "Minha m�e trabalhou na PUC Minas at� os 93 anos. Depois ainda continuou, em casa, com um grupo de seis a oito alunos, em estudos sobre literatura medieval, as 'Cantigas de Santa Maria'. Mas veio a pandemia e foi obrigada a parar", conta o filho M�rio. Vale destacar que as "Cantigas de Santa Maria" s�o composi��es em galego-portugu�s que, no s�culo 13, era a l�ngua fundamental da l�rica culta em Castela.
A mod�stia parece fazer parte do universo de dona �ngela, que fala tantos idiomas que prefere n�o cit�-los. Mas ao citar o latim traz um brilho extra no olhar: "Sou professora de latim", diz num tom de rever�ncia � l�ngua.
RECONHECIMENTO Pelo seu trabalho, �ngela Vaz Le�o j� recebeu v�rias homenagens: Pr�mio de Melhor Monografia de Conclus�o do Curso Normal das Escolas Oficiais de Minas Gerais (1949) � Gr�-Cruz da Ordem Nacional do M�rito Cient�fico, concedida pela Presid�ncia da Rep�blica (1998), passando pelo Pr�mio J�lio Ribeiro, da Academia Brasileira de Letras (1962), em reconhecimento ao livro "O per�odo hipot�tico iniciado por se"; pelo Pr�mio Cidade de Belo Horizonte, pelo livro "Hist�ria de palavras" (1961). Recebeu tamb�m o Pr�mio Ardu�no Bolivar (1949) como a melhor entre os estudantes que, naquele ano, conclu�ram o curso de letras na UFMG.
A produ��o acad�mica compreende de estudos dedicados �s po�ticas de Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa e Guimar�es Rosa aos que tratam da l�ngua portuguesa e das l�nguas rom�nicas, com destaque para a poesia galego-portuguesa de Afonso X. Ensaio, de sua autoria, sobre "Cadeira de balan�o", de Drummond, passou a figurar como pref�cio a essa obra, a partir de sua segunda edi��o.
Como docente da UFMG, ocupou as c�tedras de l�ngua portuguesa e de filologia rom�nica e exerceu os cargos de chefe do Departamento de Letras da antiga Faculdade de Filosofia, e, depois da reforma de 1968, o de primeira diretora da Faculdade de Letras (Fale). De acordo com a universidade, toda a estrutura��o da Fale � fruto de sua gest�o, que envolveu atividades de ensino, pesquisa e extens�o, bem como o in�cio da p�s-gradua��o.
Na PUC-Minas, foi respons�vel pela elabora��o dos projetos n�o s� do Prepes — Programa de P�s-Gradua��o lato sensu—, concebido com a finalidade de capacitar professores de escolas e faculdades do interior do Brasil e da Am�rica Latina, mas tamb�m do curso de p�s-gradua��o em letras nos n�veis de mestrado e doutorado.
COMPET�NCIA Professor dos cursos de gradua��o e p�s-gradua��o de literatura brasileira e portuguesa na PUC Minas, o professor Audemaro Taranto Goulart enaltece a figura e o trabalho da professora �ngela Vaz Le�o, a quem reconhece como refer�ncia em Belo Horizonte, tanto na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) quanto na PUC Minas. "Dona �ngela tem qualidades acima do que seria normal", diz o professor, que p�de constatar tal compet�ncia, a exemplo de centenas de pessoas, tanto na sala de aula, quando foi seu aluno, como mais tarde, j� seu colega na universidade.
Ressaltando a grande carreira de �ngela dedicada ao magist�rio de n�vel superior de letras na UFMG, Audemaro Taranto conta que, em certo per�odo, ela trabalhou na Federal e na PUC Minas, onde come�ou quando a institui��o se chamava Universidade Cat�lica de Minas Gerais. Com o tempo, ficou apenas na UFMG e depois, ao se aposentar, aceitou o convite para retornar � PUC. Foi, assim, "pioneira e fundamental" no projeto de cria��o e na implanta��o do curso stricto sensu (mestrado) em letras da PUC.
"Na �poca de cria��o do curso de mestrado, o nome de dona �ngela foi o primeiro a ser lembrado, pela compet�ncia e conhecimento em latim e l�ngua portuguesa, para ser a coordenadora do projeto", recorda-se Audemaro Taranto. "Ent�o, podemos dizer que a maioridade acad�mica da PUC Minas passou pela implanta��o desse mestrado e se concretizou gra�as, em muito, � presen�a da professora �ngela."
PRAZER EM CONVERSAR Para quem j� entrevistou �ngela Vaz Le�o, � sempre um prazer reencontr�-la. Trata-se de uma estudiosa que traz as palavras certeiras, sem firulas e volteios. Em tantos anos de vida e trabalho, ela tem um tesouro guardado que vai al�m da fam�lia. "Fiz grandes amigos. E nem poderia ser diferente."
TRABALHOS PUBLICADOS
- A estil�stica: Tentativa de conceitua��o e de aplica��o a alguns fatos da l�ngua (Revista Brasileira), 1958
- Sobre a estil�stica de Spitzer,1960
- O per�odo hipot�tico iniciado por se, 1961
- Hist�ria de palavras, 1961
- Contatos e resson�ncias: Literaturas africanas de l�ngua portuguesa, 2003
- Anais do 4º Encontro Internacional de Estudos Medievais, 2003
- Henriqueta Lisboa: O mist�rio da cria��o po�tica, 2004
- Jos� Louren�o de Oliveira – Legado e testemunhos, 2006
- Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o S�bio: Aspectos culturais e liter�rios, 2007, com reedi��o em 2015
- Cantigas de Santa Maria: Novas leituras, novos caminhos, 2009