
Uma onda de esperan�a s�bita, sem limites, contagiosa: h� 10 anos o mundo �rabe viveu uma s�rie de revoltas populares, que representaram um sopro de liberdade, antes de resultar em frustra��o. Um acontecimento hist�rico que mudou de maneira irremedi�vel a regi�o.
Do colapso como um castelo de cartas de regimes que pareciam intoc�veis at� o auge e queda do califado jihadista, a chamada "Primavera �rabe", que nasceu no fim de 2010, transformou o Oriente M�dio em cen�rio de constante agita��o durante a segunda d�cada do s�culo XXI.
Os protestos da popula��o na Tun�sia, Egito, L�bia e I�men foram seguidos, no melhor dos casos, por reformas decepcionantes, mas com frequ�ncia os pa�ses sofreram com guerras internas e novos regimes ditatoriais.
O esp�rito das revolu��es, no entanto, n�o se apagou, como demonstra a segunda onda de levantes no Sud�o, Arg�lia, Iraque e L�bano oito anos depois.
Lina Mounzer, escritora e tradutora libanesa, cuja fam�lia tem ra�zes no Egito e S�ria, afirma que desde as revoltas algo mundo na "f�brica da pr�pria realidade".
"N�o sei se h� algo mais comovente ou nobre que as pessoas pedindo uma vida digna com uma s� voz", afirma.
"Demonstra que isso � poss�vel, que as pessoas podem se rebelar contra os piores d�spotas, que ainda resta coragem suficiente nas pessoas que se levantam e trabalham juntas para enfrentar ex�rcitos inteiros".
Fa�sca da Tun�sia
Tudo come�ou em 17 de dezembro de 2010, quando um jovem vendedor ambulante, revoltado com anos de persegui��o policial, jogou gasolina no corpo e ateou fogo diante da sede do governo da cidade de Sidi Bouzid, no centro do pa�s.
A imola��o de Mohamed Bouazizi n�o foi a primeira na regi�o ou na Tun�sia, mas foi a fa�sca que inflamou uma raiva nunca antes registrada. Apesar da aus�ncia de imagens, a hist�ria do ambulante viralizou na regi�o.
Quando Bouazizi morreu em consequ�ncia das queimaduras em 4 de janeiro, o movimento de protesto contra o presidente Zine El Abidine Ben Ali, que estava h� 23 anos no poder, se propagou por todo o pa�s.
Dez dias depois, Ben Ali fugiu para Ar�bia Saudita, onde morreu exilado em 2019 para indiferen�a geral.
Nas semanas seguintes, as manifesta��es pr�-democracia chegaram ao Egito, L�bia e I�men.
Quando a revolta se propagou pelas ruas do Cairo, a maior cidade da regi�o e s�mbolo pol�tico hist�rico, o movimento come�ou a ser chamado de "Primavera �rabe".
Centenas de milhares de pessoas sa�ram �s ruas no Egito para gritar suas aspira��es democr�ticas e pedir a sa�da de Hosni Mubarak, que estava no poder desde 1981.
� dif�cil compreender o sentimento de esperan�a e euforia que aquelas imagens geraram em toda a regi�o e no resto do mundo. Parecia que havia acabado o fatalismo que geralmente impregna qualquer refer�ncia � pol�tica no Oriente M�dio.
Clamor de esperan�a
"Olhe as ruas do Egito esta noite; isto se parece com esperan�a", escreveu a romancista eg�pcia Ahdaf Soueif em um artigo no jornal The Guardian na �poca.
A voz do povo se levantou como apenas uma, n�o apenas em um pa�s, mas em toda a regi�o, derrubando alguns dos ditadores mais sanguin�rios do planeta e estremecendo milh�es de pessoas no mundo.
"Al-shaab yureed iskat al-nizam" (O povo quer a queda do regime) foi o slogan da Primavera �rabe em toda a regi�o.
Estas palavras eram um grito visceral que levou coragem a uma gera��o que n�o sabia que estava farta. Os termos viraram uma esp�cie de feiti�o que, se repetido por tempo suficiente, libertaria as pessoas de seus opressores.
Um novo paradigma nasceu no Oriente M�dio com a constata��o de que os tiranos n�o eram invenc�veis, que a mudan�a poderia acontecer por dentro e n�o apenas como resultado de outra jogada no tabuleiro da geopol�tica mundial.
Lina Mounzer recorda que nos primeiros dias a revolta popular acabou com o sentimento de "derrota �rabe" que impregnou duas gera��es ap�s a morte do eg�pcio Gamal Abdel Nasser e seu projeto de nacionalismo pan-�rabe.
"Havia um sentimento de que n�s, �rabes, �ramos pregui�osos e est�vamos cansados para nos levantar contra a opress�o, que aceit�vamos o regime dos ditadores e d�spotas porque �ramos fundamentalmente deficientes, ou porque o colonialismo e a interfer�ncia ocidental haviam nos transformado em burros de carga", disse � AFP.
"Isl� e democracia"
O impens�vel aconteceu em 11 de fevereiro de 2011, quando foi anunciada a ren�ncia de Mubarak.
"Durante a noite da queda de Mubarak eu chorei de alegria. N�o conseguia acreditar como os eg�pcios eram corajosos e belos. Parecia o alvorecer de uma nova era", recorda Mounzer.
"E depois, a S�ria. Se acreditava que estava feliz com o Egito, surpresa com o Egito, com a S�ria eu estava em �xtase".
Seis meses antes de ser assassinado em Istambul, o jornalista e dissidente saudita Jamal Khashoggi afirmou que as revoltas acabaram definitivamente com a ideia generalizada de que os �rabes e a democracia eram incompat�veis.
"Este debate sobre a rela��o entre Isl� e democracia acabou com o surgimento da Primavera �rabe", disse em um discurso em 2018.
Al�m de Ben Ali e Mubarak, o l�der l�bio Muamar Khadafi, Ali Abdullah do I�men e, no ano passado, o sudan�s Omar al-Bashir foram outros que ca�ram com revolu��o �rabe.
Os cinco ditadores juntos somavam 146 anos de poder, sem contar os 12 anos que Saleh passou como presidente do I�men do Norte antes da unifica��o do pa�s em 1990.
Durante algum tempo, o colapso das autocracias da regi�o parecia impar�vel.
"Inverno �rabe"
Mas a "Primavera �rabe" t�o aguardada n�o durou muito.
Ironia da hist�ria, o termo que surgiu no fim de janeiro de 2011 quase n�o � usado nos pa�ses �rabes, onde se prefere falar em "levante" e "revolu��o".
De todos os modos, rapidamente deu lugar � express�o inversa, "Inverno �rabe", que d� t�tulo a um livro que o americano Noah Feldman publicou em 2019.
Na sinopse do livro, o proeminente acad�mico Michael Ignatieff afirma que a obra destaca "um dos acontecimentos mais importantes de nosso tempo: o tr�gico fracasso da Primavera �rabe".
Com exce��o da Tun�sia, o vazio gerado pela queda dos regimes odiados n�o foi preenchido com as reformas democr�ticas que eram exigidas pelos manifestantes. Pior, em alguns casos resultou em conflitos armados.
No Egito, uma breve e emocionante experi�ncia democr�tica acabou rapidamente com uma brutal repress�o policial.
Em 2012, os eg�pcios escolheram nas urnas Mohammed Morsi como presidente, um islamita que tinha a oposi��o de boa parte dos manifestantes, o que abriu o caminho para o golpe do ministro da Defesa Abdel Fattah al Sisi no ano seguinte.
Al Sisi permanece no poder e seu governo �, no m�nimo, t�o autorit�rio quanto o de Mubarak.
A decep��o entre os rebeldes � amarga. A esperan�a de Ahdaf Soueif nos primeiros dias de fevereiro de 2011 agora parece uma miragem.
"Nunca imaginei que meu sobrinho, Alaa Abd el Fattah, ainda estaria na pris�o", declarou � AFP. "Ou que a pobreza atingiria um n�vel recorde... ou que os jovens, pela primeira vez na hist�ria, desejassem sair do Egito."
No Bahrein, a �nica monarquia do Golfo que registrou protestos, em 2010, o levante foi brutalmente reprimido com a ajuda da Ar�bia Saudita, que n�o hesitou em atacar qualquer desejo revolucion�rio em seu territ�rio.
Os protestos na atemorizada Arg�lia, que viveu uma guerra civil, n�o explodiram. Isto s� aconteceu quase 10 anos depois em 2019. No Marrocos foram sufocados com reformas cosm�ticas.
Na L�bia, os revolucion�rios se dividiram em v�rias mil�cias que fragmentaram o pa�s. O I�men, pa�s mais pobre da pen�nsula ar�bica, entrou em um conflito civil alimentado pelo sectarismo e permanece em guerra.
Mas foi na S�ria que a Primavera �rabe foi enterrada.
"Sua vez, doutor"
Nenhum l�der da regi�o parecia mais dif�cil de derrubar que Bashar al Asad quando o movimento come�ou em 2011. Algumas semanas depois dos primeiros protestos, uma mensagem pintada em um muro da cidade de Daraa, sul do pa�s, advertiu o oftalmologista que estudou em Londres.
"Sua vez, doutor", afirmava a mensagem de um adolescente, que foi detido e brutalmente torturado, o que provocou uma onda de protestos pela liberta��o do jovem e que muitos consideram o detonador do levante em todo o pa�s.
Mas a vez de Assad nunca chegou. Ele superou a tempestade e virou a pe�a do domin� que n�o caiu.
Com exce��o da Tun�sia, as revolu��es acabaram de maneira negativa. Na S�ria, a luta do regime para sobreviver deixou mais de 380.000 mortos.
Um dos grafiteiros de 2011, Moawiya Sayasina, afirmou em 2018 � AFP que o contra-ataque foi pior do que jamais teria imaginado.
"Tenho orgulho do que fizermos na �poca, mas nunca pensei que chegar�amos a este ponto, que o regime nos destruiria desta forma. Pens�vamos que poder�amos nos livrar dele", confessou.
Enquanto os protestos eram brutalmente reprimidos, o �dio sect�rio aumentou e os jihadistas, tanto na S�ria como em outros pa�ses, encontraram um terreno f�rtil imbat�vel.
"Os valores contra a viol�ncia dos manifestantes n�o demoraram a virar campos de batalha na L�bia, S�ria e I�men", afirma Robert F. Worth, jornalista e autor do livro "A Rage for Order" (Raiva por Ordem).
O avan�o do jihadismo culminou na proclama��o em 2014 pelo grupo Estado Isl�mico (EI) de um "califado" em regi�es da S�ria e do Iraque que chegou a ter o tamanho da Gr�-Bretanha.
A viol�ncia atroz que o Estado Isl�mico propagava nas redes sociais e sua habilidade para atrair milhares de combatentes da Europa e outros pontos do planeta gerou p�nico no Ocidente, que rapidamente perdeu o entusiasmo pr�-democracia.
O foco do mundo se concentrou na luta contra o terrorismo, deixando de lado a mudan�a dos regimes autocr�ticos que rapidamente se apresentaram como �ltimo baluarte contra o extremismo islamita.
"Sua pr�pria hist�ria"
O Ocidente, liderado pelo governo americano de Barak Obama, n�o previu as revoltas �rabes. E se no primeiro momento deram apoio aos manifestantes, rapidamente descartaram qualquer interven��o direta, com exce��o dos pol�micos bombardeios da Otan na L�bia para evitar que Khadafi esmagasse a revolu��o.
"O significado pol�tico central da Primavera �rabe e suas consequ�ncias � que foram os pr�prios �rabes que atuaram por conta pr�pria, em pleno direito, produtores independentes de sua pr�pria hist�ria", escreve Noah Feldman em "O Inverno �rabe".
Mas esta vontade estagnou e, uma d�cada depois, � dif�cil considerar as revoltas �rabes como um �xito.
Ahdaf Soueif pensa que ainda � cedo para tirar conclus�es.
"As condi��es em que as pessoas viveram desde meados da d�cada de 1970 propiciaram a revolta. Era inevit�vel. E continua sendo inevit�vel", opina.
Assim como outros ativistas, Ahdaf rejeita a ret�rica que vincula o crescimento do isl� radical com as revoltas. Ele afirma que foram as contrarrevolu��es que alimentaram as frustra��es e priva��es que alimentaram os jihadistas, diz.
Legado e li��o
Em 2018, uma nova onda de protestos com pedidos de transpar�ncia e reformas democr�ticas no Sud�o, Arg�lia, Iraque e L�bano reavivou as esperan�as.
Os mesmos slogans voltaram a ser ouvidos, confirmando que o esp�rito das revoltas de 2011 resiste e ainda inspira a juventude da regi�o.
Para Arshid Adib-Moghaddam, professor da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos de Londres, as principais reivindica��es dos protestos continuam sob a superf�cie "e devem ferver novamente com a m�nima oportunidade como um tsunami pol�tico".
"As pessoas da regi�o estabeleceram um novo padr�o para a pol�tica e a governan�a que exigem que seja cumprido. Desde ent�o, as pol�ticas s�o medidas em compara��o a estas reivindica��es", afirma Adib-Moghaddam, autor do estudo "On the Arab revolts and the Iranian revolution: Power and resistance today" (Sobre as revoltas �rabes e a revolu��o iraniana: Poder e resist�ncia hoje).
Mudan�as irrevers�veis foram adotadas e est�o abrindo caminho.
No Egito, "h� uma revolu��o social" que conseguiu fazer com que assuntos como "direitos da mulher ou da comunidade LGBTQ encontrem mais espa�o", destaca Soueif.
Alaa al-Aswany, um dos principais romancistas eg�pcios e personagem central do movimento que acampou brevemente na pra�a Tahrir do Cairo, gosta de afirmar que "a revolu��o � como se apaixonar, faz de voc� uma pessoa melhor".
Lina Mounzer, que tamb�m viveu a revolta do L�bano em 2019, considera que a forma como as pessoas observam seus l�deres, o restante do mundo e eles mesmos mudou para sempre.
"Vivemos muito tempo em um mundo que tentou nos incutir a ideia de que o pensamento comunit�rio � suspeito e que o individualismo � sin�nimo de liberdade. E n�o � assim. Dignidade � sin�nimo de liberdade", afirma.
"Isto � o que a Primavera �rabe, em seus primeiros e idealistas dias, n�o apenas nos ensinou, e sim nos confirmou... O que faremos com esta li��o - enterr�-la ou construir sobre ela - � algo que resta ver", completa.
A "Revolu��o de Jasmim" tunisiana � apontada como o exemplo de que as revoltas �rabes podem ter sucesso.
Quase n�o houve derramamento de sangue, divis�es profundas foram evitadas e o partido isl�mico dominante Ennahda fez uma transi��o relativamente tranquila para o consenso pol�tico.
"Em contraste com o fracasso do Egito e o desastre da S�ria, a Tun�sia parece um caso at�pico no fen�meno regional que come�ou", escreve Noah Feldman em "O Inverno �rabe".
Mas tamb�m no pa�s norte-africano a hist�ria n�o acabou e para seus 11 milh�es de habitantes os dividendos da revolu��o de 2010 ainda n�o s�o t�o �bvios.
Ashref Ajmi, de 21 anos, que conversou com a AFP a poucos metros de onde tudo come�ou na pra�a Sidi Bouzid, onde h� uma est�tua de Bouazizi, est� desencantado.
Ben Ali saiu, o pa�s n�o est� dividido, mas a situa��o econ�mica que provocou a revolta n�o melhorou.
"O slogan da revolu��o era 'trabalho, liberdade, dignidade nacional'. N�o vimos nada disso. N�o h� trabalho", afirma o jovem.