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Estado de Minas COMPANHIA DE JESUS

A vida nos assentamentos jesu�tas no s�culo 16, chamados de 'triunfo da humanidade'

Por um s�culo e meio, a Companhia de Jesus realizou uma grande experi�ncia social nas selvas sul-americanas %u2014 um ideal ut�pico que floresceu e deu frutos... pelo menos por um tempo.


05/06/2021 12:05 - atualizado 06/06/2021 07:41


Um belo exemplo do barroco guarani que surgiu do encontro entre indígenas e jesuítas em Paraquaria(foto: Getty Images)
Um belo exemplo do barroco guarani que surgiu do encontro entre ind�genas e jesu�tas em Paraquaria (foto: Getty Images)

O fil�sofo iluminista Voltaire (1694-1778), tipicamente um grande cr�tico das religi�es organizadas, estava t�o apaixonado por um per�odo extraordin�rio de 159 anos da hist�ria da Am�rica do Sul que se sentiu compelido a descrev�-lo assim:

"O assentamento no Paraguai, realizado apenas pelos (jesu�tas) espanh�is, parece, em alguns aspectos, um triunfo da humanidade. Parece expiar as crueldades dos primeiros conquistadores. Os quakers na Am�rica do Norte e os jesu�tas na Am�rica do Sul... eles deram uma nova luz ao mundo."

Esse "triunfo da humanidade" foram as miss�es fundadas pelos jesu�tas na vasta regi�o do Paran�, conhecidas como "redu��es", que no castelhano dos s�culos 16 e 17 significava "comunidades".

Voltaire n�o foi o �nico a destacar seus m�ritos.

Outro expoente do Iluminismo, o fil�sofo franc�s Montesquieu (1689-1755), as definiu como "a cura de uma das mais terr�veis feridas infligidas por homens a outros homens".

E, mais tarde, Paul Lafargue (1842-1911), genro de Karl Marx, as declarou como o primeiro estado socialista de todos os s�culos.

Pode ser, mas com uma origem profundamente arraigada na religi�o.

Op��o menos indigesta

Quando os jesu�tas chegaram �s terras dos guarani, que j� pertenciam � coroa espanhola, havia se passado um s�culo desde aquele "encontro de culturas" promovido pela invas�o colonialista.

Os ind�genas que viviam nessas terras, que hoje fazem parte dos atuais Paraguai, Argentina, Bol�via, Brasil, Chile e Uruguai, ficaram com apenas duas op��es:

1) Trabalhar sob o sistema de encomiendas para propriet�rios de terras espanh�is, que os exploravam em troca de "salv�-los" por meio do cristianismo, "educ�-los" para falar espanhol e "proteg�-los" dos inimigos.

Ou...

2) Correr o risco de serem perseguidos por bandeirantes, ou ca�adores de escravos, tamb�m chamados de paulistas (por estarem baseados em S�o Paulo, a fronteira nessa �poca), que frequentemente organizavam incurs�es para capturar ind�genas e vend�-los como escravos.

Mas os membros da Companhia de Jesus, uma ordem mais nova do que o Novo Mundo em que haviam chegado, traziam consigo outras ideias.


Inácio de Loyola, o fundador da ordem dos jesuítas, recebeu a aprovação do papa Paulo 3º em 1540(foto: Getty Images)
In�cio de Loyola, o fundador da ordem dos jesu�tas, recebeu a aprova��o do papa Paulo 3� em 1540 (foto: Getty Images)

A ordem dos jesu�tas havia recebido a b�n��o formal do papa Paulo 3º em 1540 e seus padres foram enviados aos confins do mundo ent�o conhecido para pregar o evangelho crist�o.

Eles chegaram � Am�rica do Sul em 1549, com a inten��o de implementar a bula pontif�cia de 1537 do mesmo papa, Sublimis Dei, que proibia expressamente a escravid�o dos povos ind�genas e buscava resguardar sua liberdade e direito � propriedade.

Com isso em mente, em 1604 foi formada uma nova prov�ncia jesu�ta chamada Paraquaria para dar in�cio ao trabalho mission�rio entre os �ndios guarani, que viviam em pequenas aldeias sob a autoridade de caciques.

2 jesu�tas, 10 caciques

A primeira incurs�o dos jesu�tas na regi�o de selva do Rio Paran� foi empreendida em dezembro de 1609 por dois padres, Marcelo de Lorenzana (1565-1632), sacerdote superior em Assun��o, e seu jovem assistente, Francisco de San Mart�n.

Um cacique local, Arapizand�, que se mostrou disposto a aprender sobre o evangelho crist�o, convidou os dois jesu�tas para celebrar as missas de Natal em uma cabana r�stica em sua aldeia.

Poucos dias depois, outros nove caciques da regi�o chegaram ao local. Eles souberam que os jesu�tas estavam prestes a fundar uma "redu��o", o que parecia ser uma op��o menos indigesta do que as que eles tinham.

Embora isso n�o signifique que todos os receberam bem.

O padre jesu�ta, mission�rio e escritor peruano Antonio Ru�z de Montoya, autor do livro Conquista espiritual: feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas prov�ncias do Paraguai, Paran�, Uruguai e Tape, relata, por exemplo, que:

"Os xam�s lideraram a resist�ncia contra os jesu�tas. Os dem�nios trouxeram esses homens at� n�s, dizia um desses l�deres ao seu povo, porque eles querem com novas doutrinas nos tirar o bom e velho modo de vida de nossa antepassados, que tiveram muitas mulheres, muitas criadas e liberdade para escolh�-las ao seu gosto e agora querem que nos atemos a uma �nica mulher."

No entanto, em 1610, foi criada a primeira redu��o jesu�ta de San Ignacio Guasu em territ�rio guarani.

O esfor�o teve tanto sucesso que os mission�rios jesu�tas fundaram muitas outras redu��es entre 1610 e 1707.

Destas, um total de 30 acabaram sobrevivendo � extensa destrui��o causada pelas repetidas incurs�es de bandeirantes, que obrigaram algumas redu��es a ter que mudar de lugar v�rias vezes.

Sistema colaborativo

Uma redu��o geralmente compreendia dois jesu�tas e at� 5 mil homens, mulheres e crian�as guaranis; quando uma delas crescia muito, se formava um novo assentamento.

Embora a maioria dos guarani que viviam nas redu��es buscasse o batismo crist�o, nenhum deles era obrigado a ser batizado.


Sem o conhecimento dos guarani, os jesuítas pouco teriam feito (Ilustração do padre jesuíta Florian Baucke sobre a vida dos guarani)(foto: Getty Images)
Sem o conhecimento dos guarani, os jesu�tas pouco teriam feito (Ilustra��o do padre jesu�ta Florian Baucke sobre a vida dos guarani) (foto: Getty Images)

A genialidade das redu��es estava no desenvolvimento de um empreendimento jesu�ta-guarani genuinamente colaborativo.

Os jesu�tas nunca teriam tido sucesso em seus esfor�os sem o conhecimento dos guarani, que eram capazes de identificar locais adequados para novos assentamentos com fornecimento de �gua, pedras para constru��o e terras f�rteis para cultivo abundantes; e os guarani n�o poderiam ter prosperado materialmente sem a per�cia t�cnica dos jesu�tas, que inclu�a o trabalho de ferreiro.

Apenas os jesu�tas mais capazes foram selecionados para esse trabalho mission�rio, e as candidaturas para cargos em Paraquaria excederam em muito as vagas dispon�veis.

Os que eram enviados � Am�rica do Sul aprendiam rapidamente a l�ngua guarani e, liderados por homens como o padre Ru�z de Montoya, publicaram os primeiros dicion�rios guaranis, ensinando os ind�genas a ler e escrever seu idioma, que at� ent�o s� era oral.

Al�m dos altos �ndices de alfabetiza��o em guarani, segundo alguns historiadores, os moradores das redu��es tinham bons conhecimentos de latim, espanhol, alem�o, aritm�tica e m�sica.

Em volta da pra�a

Embora cada redu��o tivesse um desenho diferente, todas seguiam um padr�o comum: o assentamento era sempre baseado em uma pra�a central principal, que tinha em uma das extremidades uma igreja enorme capaz de abrigar toda a comunidade, um cemit�rio comunit�rio adjacente e uma escola ao lado da qual os jesu�tas viviam.


Todas as reduções seguiam o mesmo padrão (Ilustração do padre jesuíta Florian Baucke, de 1749-1767)(foto: Getty Images)
Todas as redu��es seguiam o mesmo padr�o (Ilustra��o do padre jesu�ta Florian Baucke, de 1749-1767) (foto: Getty Images)

Nas oficinas perto da igreja, cada redu��o desenvolvia suas pr�prias �reas de especializa��o, incluindo trabalhos em ferro e prata, carpintaria, tecelagem e fabrica��o de instrumentos musicais.

Em tr�s lados da pra�a havia moradias individuais para fam�lias de guarani. Cada redu��o tinha um koty guasu ou abrigo separado para vi�vas, �rf�os e mulheres solteiras.

Tudo isso era constru�do no estilo barroco guarani, �nico barroco nativo da Am�rica.

�gua encanada e saneamento b�sico estavam dispon�veis para toda a comunidade, e todas contavam com um hospital.

Prosperidade e inveja

A justi�a estava nas m�os do cacique, que ocupava o cargo de parokaitara ou poro puaitara, ou 'aquele que d� as ordens' em guarani.

Notavelmente, n�o havia pena de morte, ent�o � prov�vel que tenha sido a primeira sociedade ocidental a aboli-la, considerando que a primeira a fazer isso na Europa foi o Ducado da Toscana em 1786.

Abaixo do cacique ou corregedor, estavam os prefeitos ou v�rayucu — que significa 'o primeiro entre aqueles que carregam o bast�o' —, que zelavam pelos bons costumes, punindo os pregui�osos e os vagabundos.

� que se mantinha um equil�brio cuidadoso entre trabalho e lazer, com jornadas de trabalho comunit�rias de 6 horas, metade da prevista no sistema de encomiendas, mas muito mais produtivas.


O sucesso da experiência jesuíta, em particular a sua alta produtividade, começou a ser visto como uma ameaça aos interesses da economia colonial... até as ruínas desta redução jesuíta no Paraguai são magníficas!(foto: Getty Images)
O sucesso da experi�ncia jesu�ta, em particular a sua alta produtividade, come�ou a ser visto como uma amea�a aos interesses da economia colonial... at� as ru�nas desta redu��o jesu�ta no Paraguai s�o magn�ficas! (foto: Getty Images)

Para isso, os ind�genas deviam marchar ao ritmo de um dispositivo trazido da Europa, o rel�gio mec�nico, que ditava o que antes apenas seus costumes e a natureza indicavam, desde quando acordar at� quando voltar a descansar.

Cada redu��o operava uma economia de troca e, com muitos bens em comum, era uma comunidade aut�noma e autossuficiente.

Havia a propriedade privada — lotes que pertenciam aos ind�genas e proporcionavam a eles sustento familiar — e a terra de Deus — comunal, em que todos trabalhavam em turnos e cujos lucros eram investidos em encargos, benfeitorias ou no fomento da economia da redu��o.

Por meio de m�todos de cultivo eficientes, a variedade e o volume dos produtos cultivados em uma redu��o, incluindo a erva-mate, e o n�mero de gados e cavalos criados nelas frequentemente excedia a norma padr�o.

Em tamanho e escala, as constru��es de muitas das 30 redu��es, que juntas chegaram a abrigar mais de 120 mil guaranis, se equiparavam aos grandes mosteiros da Europa medieval.


Para se ter uma ideia, estas são as ruínas da missão jesuíta guarani de San Ignacio Mini, em Misiones, na Argentina(foto: Getty Images)
Para se ter uma ideia, estas s�o as ru�nas da miss�o jesu�ta guarani de San Ignacio Mini, em Misiones, na Argentina (foto: Getty Images)


Veja as pinturas religiosas no teto e na nave da igreja da redução jesuíta em San Miguel, na Bolívia(foto: Getty Images)
Veja as pinturas religiosas no teto e na nave da igreja da redu��o jesu�ta em San Miguel, na Bol�via (foto: Getty Images)


Que tal esta escultura das missões jesuítas de Santísima Trinidad de Paraná e Jesús de Tavarangue, no Paraguai?(foto: Getty Images)
Que tal esta escultura das miss�es jesu�tas de Sant�sima Trinidad de Paran� e Jes�s de Tavarangue, no Paraguai? (foto: Getty Images)


Ou esta imagem de Cristo ressuscitado em estilo barroco mestiço no altar principal da missão jesuíta de Concepción, no departamento de Santa Cruz, na Bolívia?(foto: Getty Images)
Ou esta imagem de Cristo ressuscitado em estilo barroco mesti�o no altar principal da miss�o jesu�ta de Concepci�n, no departamento de Santa Cruz, na Bol�via? (foto: Getty Images)

Tantas conquistas, que inclu�am a produ��o de magn�ficas esculturas, arte e m�sica barrocas guaranis, despertaram a inveja de certos colonizadores que queriam a expuls�o dos jesu�tas e a imposi��o do controle colonial.

O come�o do fim

Mas por mais obedientes e bem-sucedidos que fossem, o destino dos guarani que viviam nas redu��es nunca esteve em suas m�os. Estava ligado ao dos jesu�tas e � merc� da pol�tica internacional.

A coroa espanhola se beneficiou durante v�rias d�cadas da exist�ncia de miss�es que serviam de barreira � expans�o portuguesa, e contribuiu inclusive para armar e treinar uma mil�cia guarani para se proteger das incurs�es de seus vizinhos do norte.

No entanto, quando chegou a hora de colocar as coisas em ordem e regularizar as fronteiras, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Madri de 1750.


Soldados hispano-americanos prontos para lutar contra os indígenas, desenhados pelo jesuíta Florian Baucke(foto: Getty Images)
Soldados hispano-americanos prontos para lutar contra os ind�genas, desenhados pelo jesu�ta Florian Baucke (foto: Getty Images)

Sete redu��es a leste do rio Uruguai foram transferidas para o territ�rio portugu�s; seus 29 mil habitantes e os jesu�tas receberam ordem para se mudar para a costa oeste.

Os jesu�tas obedeceram, mas os guarani se revoltaram. E aquela mil�cia que a coroa espanhola havia patrocinado teve que enfrentar os ex�rcitos de ambos poderes coloniais.

A guerra sangrenta culminou em 1756 com a Batalha de Caiboat�, na qual foram mortos mais de 1,5 mil guaranis, incluindo seu carism�tico l�der, Sepe Tiaraju.

As redu��es em territ�rio espanhol sobreviveram. Mas, novamente, seu destino foi interrompido por acontecimentos alheios � sua vontade.

Ao longo dos anos, a Companhia de Jesus foi desde o bra�o direito dos papas na luta da Igreja contra o protestantismo at� fonte de eruditos e te�logos brilhantes, assim como de mission�rios que difundiram a f� na �sia e nas Am�ricas do Norte e do Sul.

Em meados do s�culo 18, os jesu�tas eram um ex�rcito espiritual formid�vel, que contava com cerca de 23 mil membros, tinha 800 resid�ncias, 700 col�gios e universidades e supervisionava 300 miss�es. Al�m disso, eles eram os confessores dos governantes cat�licos de toda a Europa e educavam tanto os filhos dos nobres e da crescente classe m�dia, como das massas.

Dado seu sucesso, eles tinham muitos (e poderosos) inimigos, que os acusavam — justa e injustamente — de todos os tipos de delitos.


O Marquês de Pombal, neste retrato mostrando os jesuítas sendo expulsos de Portugal, marcou o destino das reduções guaranis(foto: BBC)
O Marqu�s de Pombal, neste retrato mostrando os jesu�tas sendo expulsos de Portugal, marcou o destino das redu��es guaranis (foto: BBC)

Um dos seus principais inimigos foi Sebasti�o Jos� de Carvalho e Melo, o Marqu�s de Pombal em Portugal, que culpou os jesu�tas pela rebeli�o dos guarani no novo territ�rio portugu�s e iniciou uma campanha para acabar com eles.

Ele os acusou de estarem por tr�s de uma conspira��o para assassinar o rei em 1758; os expulsou de Portugal; os acusou de terem estabelecido um reino independente na Am�rica do Sul, onde, segundo ele, haviam escravizado os �ndios e enriquecido com seu trabalho. O pr�prio Voltaire repetiu essas hist�rias em seu romance C�ndido.

As acusa��es n�o foram ignoradas. Outros, incluindo colonizadores das cidades vizinhas �s redu��es, amargurados ao v�-los prosperar mais, inventaram rumores semelhantes.

V�rios governos come�aram a tomar medidas ativas contra a Companhia de Jesus, incluindo o rei Carlos 3º, que a baniu da Espanha e de suas col�nias no exterior em 1767.

A partir da�, sem o �mpeto dos jesu�tas, as redu��es foram gradualmente abandonadas, e alguns guarani come�aram a se deslocar para �reas urbanas.

Ep�logo

Em 21 de julho de 1773, o papa Clemente 14 suprimiu a Companhia de Jesus.

As fabulosas constru��es e obras de arte que os guarani haviam criado nessas terras pareciam destinadas a ser nada mais do que um mero resqu�cio at� ter in�cio um esfor�o de recupera��o e conserva��o no s�culo 20.

Hoje, as impressionantes ru�nas das redu��es s�o uma recorda��o perene de algo que, apesar de seus defeitos, foi um "triunfo da humanidade".

Um triunfo que a Unesco declarou Patrim�nio da Humanidade.

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