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Estado de Minas ESCRAVID�O SEXUAL

'O homem que me estuprou ainda trabalha como padre'

Uma investiga��o da BBC revelou como a cultura de cumplicidade e nega��o esconde a verdadeira escala do abuso sexual ocorrido na Igreja na It�lia


18/02/2022 16:33 - atualizado 18/02/2022 17:18

Vatican, St Peter's square
(foto: Getty Images)

Esta reportagem cont�m descri��es que alguns leitores podem achar perturbadoras.

Vamos cham�-lo apenas de "Mario". Ele se encolhe um pouco quando apertamos as m�os, ainda claramente desconfort�vel com o contato f�sico. E na minha primeira pergunta — "Como voc� est�?" — o que eu esperava que o ajudasse a iniciar a conversa de uma forma suave, ele imediatamente desaba.




"Esta entrevista est� trazendo tudo de volta", ele gagueja, mal conseguindo falar em meio �s l�grimas.

M�rio nunca falou antes com a imprensa sobre o que ele chama de "escravid�o sexual" nas m�os de um padre na inf�ncia.

Nossa conversa engloba desde o testemunho horr�vel de Mario at� o dia em que confrontou seu agressor cara a cara — para finalmente tentarmos obter respostas daqueles que permitem que o padre continue celebrando missa at� hoje.

Essa � uma das in�meras hist�rias de abuso sexual na Igreja na It�lia, que nunca encarou o problema com a seriedade que ele merece.

Apesar de ter o maior n�mero de padres de qualquer pa�s e a sede da Igreja Cat�lica em seu quintal, a It�lia n�o mant�m estat�sticas oficiais sobre o assunto e nunca realizou qualquer inqu�rito p�blico.

� sombra do Vaticano, os pecados da It�lia est�o escondidos sob um v�u de escurid�o.


Short presentational grey line
(foto: BBC)

"Claro que ele me disse que era tudo um segredo", lembra Mario, "entre ele, eu e Jesus."

O segredo, segundo Mario, s�o 16 anos de abusos horr�veis que ele aguentou desde os oito anos de idade, cometidos por um padre chamado padre Gianni Bekiaris.

Um resumo do caso feito pela advogada de Mario, que inclui detalhes gr�ficos demais para serem relatados, descreve o primeiro estupro em 1996 como "premeditado". Bekiaris reservou um quarto de hotel com uma cama de solteiro para os dois. Depois, segundo os documentos, Mario ficou "com dores e sangramento... chorando em sil�ncio".

Bekiaris mais tarde deu aos pais de Mario "um presente" de um p�ster mostrando onde ficava o hotel — e onde o estupro teria ocorrido — sob o qual ele escreveu a data e a hora daquele momento, bem como as palavras: " Em mem�ria dos dois dias que passamos no frio das montanhas".

A perversa comemora��o do crime era um sinal de como o padre manipulava a crian�a emocionalmente vulner�vel, lucrando com o relacionamento tenso de Mario com seu pai.

Os arquivos do caso alegam que Bekiaris amea�ou Mario para que ele ficasse em sil�ncio, "dizendo a ele que o que tinha acontecido... tamb�m era culpa da crian�a".

"Quando cresci, ele perguntou aos meus pais se eu poderia ir dormir na casa dele", lembra Mario. "Eles concordaram, embora eu rezasse para que n�o aceitassem."

Seus pais, sem saber do horror que se desenrolava, estavam ingenuamente orgulhosos com o fato de um homem importante valorizar seu filho. O trauma levou Mario �s drogas, colapso psicol�gico e repetidas tentativas de suic�dio.

"Ele roubou a alma bondosa que eu costumava ser", diz Mario. "E os pesadelos... meus sonhos s�o sobre guerras com Kalashnikovs e granadas."

Busca por Justi�a

Depois de se abrir com um terapeuta, Mario embarcou em uma busca por Justi�a. Seu primeiro passo foi abordar o superior de Bekiaris, o bispo Ambrogio Spreafico. O bispo Spreafico iniciou um julgamento sob a lei can�nica — a lei que a Igreja Cat�lica usa para lidar com problemas internamente.

O veredicto que obtivemos desse julgamento de direito can�nico mostra que os ju�zes consideraram Bekiaris "claramente culpado das acusa��es feitas contra ele" e que, embora contestasse alguns detalhes do abuso, ele "admitiu ter cometido o crime". Ele at� fez um pagamento de 112 mil euros (R$ 654 mil) para Mario.

Mas o painel n�o destituiu o padre, como Mario pedia, preferindo proibi-lo por toda a vida de "administrar seus deveres com menores".

Desiludido, Mario e sua advogada apresentaram uma queixa criminal � pol�cia italiana.

Os documentos que vimos deste segundo julgamento revelam que os ju�zes "n�o tinham d�vidas sobre a veracidade das alega��es", n�o deixando "nenhuma margem para a absolvi��o do r�u".

Mas sob o complicado sistema legal da It�lia, o caso havia ultrapassado o prazo de prescri��o, o que significava que Bekiaris n�o poderia mais ser condenado. O caso ilustra a mir�ade de obst�culos legais que atravancam os casos de abuso sexual na It�lia, impedindo os sobreviventes — um termo que a maioria prefere, em vez "v�timas" — de obter justi�a.

A prescri��o de crimes da It�lia — cujo prazo come�a a contar quando um crime � cometido, e n�o quando ele � denunciado — est� sendo reformada para impedir que esse artif�cio seja usado para obstruir ou prolongar um processo legal. Mas a reforma n�o � retrospectiva, e n�o afetar� casos passados.


Advogada Carla Corsetti
Carla Corsetti, a advogada de Mario (foto: BBC)

A advogada de Mario, Carla Corsetti, nos disse que a prescri��o impediu in�meros processos de abuso sexual devido aos anos que podem levar para os sobreviventes processarem mentalmente o crime.

Mas, ela acrescenta, o problema � ainda mais profundo — e passa pela Constitui��o da It�lia e pelo Tratado de Latr�o de 1929, assinado pelo ent�o ditador Benito Mussolini, que deu ao Vaticano autonomia legal da It�lia.

Isso d� ao clero recurso � lei do Vaticano sobre a da It�lia, com efeito, protegendo-os da Justi�a italiana.

"Ao preservar o Tratado de Latr�o, somos um pa�s com soberania limitada", diz Corsetti. "Pagamos por esse fato todos os dias e quem paga primeiro s�o as v�timas de abuso sexual."

O Vaticano sob o Papa Francisco intensificou lentamente suas tentativas de combater o crime, proibindo, por exemplo, o uso de um c�digo de sil�ncio chamado "sigilo pontif�cio". Recentemente, a Confer�ncia Episcopal Italiana estabeleceu o primeiro dia nacional de ora��o da It�lia pelos sobreviventes de abuso.

Mas para os cr�ticos, esses movimentos s�o, na melhor das hip�teses, tardios e, na pior das hip�teses, lamentavelmente inadequados.

Em 2019, as Na��es Unidas pediram � It�lia que implementasse uma investiga��o independente e imparcial sobre abuso sexual de padres e bispos. Mas nada foi feito at� agora.

Em outras partes do mundo, progressos est�o sendo feitos. Um relat�rio da Fran�a no ano passado descobriu que, desde 1950, pelo menos 216 mil crian�as foram abusadas por cerca de 3,2 mil padres. A It�lia tem mais que o dobro de padres do que a Fran�a — mas nenhuma contagem oficial de casos de abuso.

Mesmo dentro do Vaticano, alguns expressaram consterna��o com a falta de a��o na It�lia.

O padre Hans Zollner, diretor do Instituto de Salvaguarda da Pontif�cia Universidade de Roma e membro da Comiss�o do Vaticano para a Prote��o de Menores, exortou a It�lia a seguir o exemplo da Fran�a e de outros pa�ses que investigaram esses crimes.


Father Hans Zollner, the Director of the Safeguarding Institute at Rome%u2019s Pontifical University and a member of the Vatican%u2019s Commission for the Protection of Minors
Padre Hans Zollner, diretor do Instituto de Salvaguarda da Pontif�cia Universidade de Roma (foto: BBC)

"No Reino Unido, na Austr�lia, nos Estados Unidos, na Alemanha, a sociedade chegou a um ponto de enfrentar essa quest�o e depois a Igreja tamb�m teve que enfrent�-la — mas essa consci�ncia e urg�ncia em lidar com isso n�o aconteceu neste pa�s ainda", diz.

Em lugares que enfrentaram abusos, o padre Zollner diz que uma m�dia de 4-5% dos padres foram acusados ou condenados, acrescentando que "com toda a probabilidade, haveria um n�mero semelhante esperado na It�lia". Mas, na aus�ncia de uma contagem oficial e com quase nenhum envolvimento do Estado italiano, a tarefa foi relegada para o �nico grupo de ativismo do pa�s que tenta compilar o que consegue.

Francesco Zanardi — ele pr�prio um sobrevivente — dirige uma associa��o chamada Rete L'Abuso (Rede Abuso) em seu pequeno apartamento no norte da It�lia. "Quando come�amos a procurar apoio e respaldo legal", diz ele, "encontramos um muro de tijolos".

Combinando den�ncias confidenciais e reportagens da imprensa, ele mapeou os padres do pa�s que foram suspeitos, investigados ou condenados por abuso. E ele estabeleceu um grupo de advogados prontos para trabalhar com sobreviventes.

Zanardi calcula que houve 163 condena��es de padres na It�lia nos �ltimos 15 anos — mas acredita que esse n�mero � muito subestimado.

"A It�lia � como se fosse um planeta longe da Europa", diz ele. "H� uma clara falta de vontade do Estado de interferir na Igreja, �s custas das crian�as."

Falta de a��o

Parte do problema � cultural. A It�lia costuma ser mais conservadora em algumas quest�es sociais em compara��o com outros pa�ses da Europa Ocidental.

Em um pa�s em que mais de 80% das pessoas se identificam como cat�licas, a Igreja �, para muitos italianos, t�o central para sua identidade quanto a fam�lia — e muitas vezes pode parecer uma autoridade incontest�vel.


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(foto: BBC)

Essa no��o de sil�ncio e de ser intoc�vel da Igreja na It�lia, como retrata o padre Zollner, permitiu que alguns padres acusados de abuso fossem colocados em uma rede de centros de reabilita��o administrados pela Igreja.

V�rios desses centros existem em todo o pa�s, mas pouco se sabe sobre eles. Um perto de Roma, ao qual tivemos acesso raro, fica isolado em uma estrada n�o sinalizada, atr�s de arame farpado. Atrav�s do port�o est� uma est�tua branca de Cristo.

No interior encontram-se os quartos dos padres residentes, uma sala de estar e uma pequena capela. Na parede est�o fotos de uma recente visita do Papa Francisco, que permaneceu por uma hora e meia e teria elogiado a institui��o.


Church-run rehabilitation centre
Centro de reabilita��o administrado pela igreja (foto: BBC)

Os padres enviados para os centros t�m uma s�rie de problemas, incluindo v�cio em jogos de azar e depend�ncia de drogas. Mas alguns tamb�m est�o sob investiga��o ou foram acusados de abuso sexual.

Marco Ermes Luparia, o fundador, nega veementemente que sua comunidade seja "um ref�gio para fugitivos", insistindo que � um local de tratamento de padres para evitar reincid�ncias. Os abusadores seguem o que ele chama de "um curso individual e muito intenso de duas ou tr�s sess�es de psicoterapia por semana, seguido de uma restri��o total de movimento. Eles n�o podem nem almo�ar fora".

Para os sobreviventes, as estruturas obscuras que mant�m os agressores longe de olhares indiscretos ilustram mais uma vez uma cadeia de cumplicidade que enterra o crime.


Marco Ermes Luparia
Marco Ermes Luparia (foto: BBC)

Luparia rejeita categoricamente essa acusa��o. "Os bispos t�m que avisar as autoridades relevantes de que um padre est� chegando para ficar conosco", diz ele, descartando as alega��es de que a comunidade permite que a Igreja proteja os abusadores. "Hoje um bispo que faz isso — seria o fim dele", diz ele.

N�o existe cuidado semelhante com os in�meros sobreviventes de abuso, incluindo Mario, para quem o acobertamento continua.

Seu agressor, Gianni Bekiaris, continua sendo um padre ativo ainda na mesma diocese onde os crimes teriam come�ado — e ainda sob a lideran�a do bispo Ambrogio Spreafico.

Passamos semanas rastreando Bekiaris online e descobrimos que ele celebra missa como padre substituto em v�rias igrejas de diversas cidades, e depois costuma desaparecer por um tempo. Ele ainda est� listado como padre na diocese onde o abuso ocorreu. A BBC descobriu at� mesmo fotografias dele celebrando a missa com crian�as presentes.

Finalmente, em um local perto de Roma, encontrei o padre e o abordei. Mostrei-lhe os pap�is do julgamento que obtivemos e as fotos das crian�as presentes � sua missa.

"Eu trabalho aqui", ele respondeu, indicando o pr�dio onde mora, "e n�o h� crian�as".

Eu mostro ent�o as fotografias dele na igreja com menores.

"S�o pessoas, n�o menores", insiste.

Ele come�a a entrar dentro de casa.

"Voc� � um ped�filo?", eu pergunto.

"Isso � o que voc� est� dizendo", ele responde.

"N�o, � o que sua v�tima est� dizendo", eu afirmo, antes que ele feche a porta, se despedindo com um simples "tchau".


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(foto: BBC)

Eu pergunto ao padre Hans Zollner, do Instituto de Salvaguarda, o que, em teoria, deveria acontecer a um padre cuja culpa foi reconhecida em um julgamento de direito can�nico, que admitiu o abuso e pagou uma indeniza��o.

Ele responde, embora n�o conhe�a o caso espec�fico: "Se o processo estabelecer que ele cometeu o crime, ele deve ser demitido, claro. E se houver algum tipo de atividade que o coloque em contato com menores, isso vai obviamente contra o veredicto".

E, no entanto, quando desafiamos o superior de Bekiaris, o bispo Ambrogio Spreafico, sobre por que ele n�o destituiu o padre, apesar de um apelo direto de Mario para faz�-lo, ele nega qualquer irregularidade.

O bispo Spreafico insiste que foi a Congrega��o para a Doutrina da F� — o poderoso departamento do Vaticano que lida com essas quest�es e liderou o julgamento do direito can�nico — que tomou a decis�o.

"Eu segui os procedimentos", diz ele, "e eles decidiram assim. N�o dependia de mim."

Mas por que, eu pergunto, ele n�o aconselhou o Vaticano a tomar um curso de a��o diferente, dado seu conhecimento de todos os detalhes, o fato de que Mario havia confiado nele e que o julgamento de direito can�nico considerou Bekiaris culpado?

"A culpa pode ser baseada em diferentes fatos", ele responde. "Eles podem vir a ser de uma escala diferente, um prazo diferente, uma realidade diferente."

Quando lhe mostro as fotos de Bekiaris na igreja com menores, ele inicialmente sugere que havia verificado com o Vaticano e que a celebra��o ocasional de missa n�o era contra a senten�a, antes de me assegurar: "Vou pedir � Congrega��o [a Doutrina da Faith] se isso est� inclu�do na proibi��o. Mas, por si s�, n�o est� especificado no decreto."

Mesmo que, como ele sustenta, n�o seja contra a lei, eu pergunto se n�o � contra a moral b�sica que um homem com tal passado continue como padre?

"Vou levar em considera��o sua observa��o", diz ele, "e vou investigar, n�o se preocupe."

N�s pedimos uma resposta � Congrega��o para a Doutrina da F�.

Eles nos disseram que a proibi��o vital�cia de administrar deveres com menores imposta a Gianni Bekiaris visa "curar e reparar" e que ela permite que um padre celebrasse missa p�blica com menores, "desde que nunca sejam deixados sozinhos".

Min�cias legais, brechas processuais e interpreta��es pessoais de julgamentos — foram essas coisas que permitiram a Gianni Bekiaris continuar pregando a palavra de Deus; que impediram M�rio de obter justi�a — e poderia lev�-lo um dia a potencialmente entrar em uma igreja em sua diocese com seu filho e assistir � missa celebrada pelo homem acusado de estupr�-lo repetidamente.

Esse � o custo do fracasso da It�lia em enfrentar a maldi��o do abuso — e de sua falta de responsabilidade pelos sobreviventes cuja f� e inf�ncia foram t�o cruelmente roubadas.

"O impacto � devastador", diz Mario, claramente uma pessoa com a vida arrasada. "Para toda a Igreja, desde o Papa at� o �ltimo padre, sinto-me enojado por eles. Um nojo mortal."

Colaborou Julian Miglierini.

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