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Estado de Minas MORADA FINAL

Funeral de Elizabeth 2�: as homenagens, humor e absurdos da fila quilom�trica no adeus � rainha

A cada hora, cerca de 2 mil pessoas entram em uma fila que dura horas para poder se despedir em menos de cinco minutos da rainha brit�nica mais longeva da hist�ria.


18/09/2022 18:55 - atualizado 19/09/2022 01:34


Pessoas na fila em Southwark Park
(foto: Mat�as Zibell - BBC)

Duas coisas que os brit�nicos sabem fazer bem se tornaram especialmente relevantes nos dias de hoje: honrar seus mortos e respeitar uma fila.

E essa fila que se move como um organismo vivo - noite e dia - entre o Southwark Park - no sul de Londres - e Westminster Hall - no centro da capital- � t�o respeitada quanto a mulher que espera por todas estas pessoas no final.

Desde quarta-feira (14/9), o caix�o de Elizabeth 2ª permanece envolto com o estandarte real na parte mais antiga do Parlamento brit�nico, que data do s�culo 11, antes do funeral que ser� realizado na segunda-feira (19/9) na Abadia de Westminster.

A imagem correu o mundo. Deve ser uma das filas mais longas que j� se viu na hist�ria deste pa�s. Cerca de 2 mil pessoas se juntam a cada hora para se despedir de sua chefe de Estado, l�der de sua Igreja e a �nica constante que tiveram em suas vidas entre eventos t�o hist�ricos como o fim da Segunda Guerra Mundial e o recente Brexit.

Nos anos em que morei aqui, vi brit�nicos usarem uma papoula vermelha todo m�s de novembro para homenagear aqueles que morreram na guerra. Eu os vi em 2005 parados como est�tuas por um minuto para lembrar os mortos nos ataques de 7 de julho. Mas isso � outra coisa, isso � uma peregrina��o.

A fila

Curiosamente, a fila para homenagear uma rainha come�a em um parque que abriga o primeiro monumento p�blico de Londres dedicado a um homem da classe trabalhadora: Jabez West, que no s�culo 19 lutou tanto pelos direitos trabalhistas quanto contra o consumo de �lcool.

A maioria dos que se juntam � longa caminhada, que �s vezes dura mais de um dia, o faz por amor e respeito � monarca que reinou por 70 anos, o reinado mais longo que a Coroa brit�nica j� teve.

Mas h� outros que v�o porque sabem que este � um momento que raramente se repetir�.

"N�o tem nada a ver com a rainha, � basicamente nosso amor pelas filas", diz Phil, que veio de trem com sua esposa Carolyn de Newcastle, no norte da Inglaterra, naquela manh�. Sua piada me lembra outra coisa que as pessoas desta ilha fazem bem: rir de si mesmas.

No Twitter, a fila tem at� uma hashtag pr�pria: #TheQueue. Um usu�rio, @curiousiguana, chamou essa fila de triunfo do britanismo: "� a m�e das filas. � arte. � poesia. � a fila para acabar com todas as filas", escreveu ele em seu tu�te, parafraseando a forma como a Primeira Guerra Mundial foi descrita.

Outro site chamado Very British Problems diz no Instagram e no Facebook que "s� um brit�nico pode entrar silenciosamente em uma fila de 8 km sem se preocupar em ver at� onde ele vai... mostrando ao resto do mundo como fazer uma fila".


Carolyn e Phil
Carolyn e Phil viajaram de Newcastle para se juntar � fila (foto: Mat�as Zibell - BBC)

Mas Phil e Carolyn sabem at� onde a fila vai. J� fizeram algo semelhante em Edimburgo, dias atr�s, quando se despediram de Elizabeth 2ª pela primeira vez na Catedral de St. Giles. Eles ficaram l� por sete horas e meia. Agora, o dobro os espera.

"O site do YouTube dedicado � fila prev� que levar� cerca de 14 horas", ele me diz. "Mas a boa not�cia � que, no meio do caminho, ficaremos sem bateria do telefone, n�o poderemos nos conectar � internet e n�o saberemos quanto tempo estamos perdendo."

O Anjo e Harry Potter

Das 14 horas previstas, as tr�s primeiras foram passadas com Phil, Carolyn e os milhares � frente e atr�s de n�s dentro do Southwark Park, ziguezagueando entre barras de metal, enquanto equipes de TV de todo o mundo sobrevoam procurando quem � a pessoa mais brit�nica ali para entrevistar.

H� m�es empurrando carrinhos de beb�, padres, av�s elegantes, veteranos de guerra com medalhas na lapela, homens de terno usando sorrateiramente seus guarda-chuvas como bengalas e pessoas segurando seus livros como �nicos companheiros de viagem.

Do nosso grupo mais pr�ximo, um jornalista de uma rede australiana escolhe uma das cinco mulheres galesas que chegaram dirigindo naquela manh� de uma cidade localizada a 50 quil�metros de Cardiff.

"� um momento muito emocionante", ela responde muito s�ria, e ent�o cai na gargalhada com suas amigas com a possibilidade de algu�m v�-la na televis�o na Austr�lia.


Veterano do Exército britânico nascido no Nepal exibe suas medalhas com o rosto da rainha
Veterano do Ex�rcito brit�nico nascido no Nepal exibe suas medalhas com o rosto da rainha, que conheceu em 1976 (foto: Mat�as Zibell - BBC)

Quando finalmente sa�mos do parque para as margens do rio T�misa, passamos por um dos pubs mais antigos -outra institui��o t�o brit�nica quanto a monarquia, a fila e a ironia - do sul da cidade.

O Anjo remonta aos dias de outra rainha - Victoria - embora, como diz na placa de entrada, a taverna estivesse no local desde que Edward 3º brincava no bairro com falc�es no s�culo 14.

Converso com Gina e Lewis, que chegaram de York naquela manh�, tamb�m de trem. Gina mentiu para o filho e disse a ele que a fila demoraria apenas cinco horas (entre sexta e s�bado, demorava at� 25 horas).

Mas isso n�o � o pior que vai acontecer com o jovem Lewis: os �culos redondos, os olhos claros e sua franja indom�vel o condenam a um apelido dado pelas mulheres do Pa�s de Gales que o acompanhar�o durante toda a caminhada: Harry Potter.

"Estava vendo tudo na televis�o e disse a mim mesma 'tenho que estar l�'. Os �ltimos dois anos de covid fizeram com que nada nos importasse muito, e eu queria fazer parte disto", explica-me Gina.

Ela n�o foi a �nica a fazer refer�ncia � pandemia. Mais de uma pessoa entrevistada disse que, ap�s o isolamento da quarentena, esta � uma oportunidade de voltar a ter um senso de comunidade.

Ao longo do caminho, h� pessoas que abrem suas casas para quem est� na fila usar o banheiro ou nos oferece ch� e caf� gr�tis.


Cartas e flores deixadas no Green Park
Milhares de cartas e flores foram deixadas no Green Park (foto: Mat�as Zibell - BBC)

De vez em quando, a fila para, depois volta a acelerar; esse ritmo significa que leva mais tr�s horas para caminhar de Southwark at� a Tower Bridge, o que normalmente leva meia hora a p�.

� l� que eles colocam uma pulseira que, quando chegarmos ao nosso destino, nos permitir� entrar em Westminster.

As cinco galesas compram latas de cidra e torradas com uma frase que os brit�nicos n�o ouvem desde 1952 e que agora ouvem novamente h� uma semana e meia: "Deus salve o rei".

A constante

"Na noite de 8 de setembro, liguei para meu pai na Jamaica e disse: 'Lizzie est� morta'", me diz Omar, que tem 44 anos e nasceu em Londres, mas suas origens s�o jamaicanas.

Sua av� fazia parte da Gera��o Windrush, como s�o conhecidos os imigrantes caribenhos que chegaram entre 1948 e 1971, e que foram amea�ados de deporta��o muitos anos depois em um esc�ndalo de racismo e maus-tratos que abalou o governo em 2018.

Sua fam�lia viu Elizabeth 2ª como uma presen�a constante todos esses anos: "Vimos seus filhos nascerem, depois os filhos de seus filhos e depois os filhos dos filhos de seus filhos. Toda a minha vida ela esteve l�", ele me diz enquanto atravessamos a London Bridge .

Essa presen�a permanente ao longo dos anos � expressa nas cartas que milhares de pessoas deixaram para a rainha junto com os arranjos de flores no Green Park, o parque ao lado do Pal�cio de Buckingham, principal resid�ncia da monarquia em Londres.

Uma das palavras mais repetidas � justamente "constante". �s vezes, como adjetivo ("voc� foi um apoio constante"), mas outras vezes como um substantivo ("voc� foi a constante em nossas vidas").

"Imagine passar 70 anos fazendo o que mandam voc� fazer todos os dias, quando voc� nem escolheu ser rainha", diz Omar.

N�o � que ele seja necessariamente um monarquista, ele me diz. Na verdade, ele diz que n�o se importaria se a Jamaica, como Barbados fez em novembro de 2021, se tornasse uma rep�blica.

Perto dele caminha sua irm�, que veio deixar-lhe comida, mas n�o mostra o mesmo entusiasmo por Elizabeth 2ª ou pela Coroa. Quando lhe pergunto por que n�o o acompanha at� o fim, ele me diz que est� trabalhando, e depois reclama que Londres � t�o cara "que at� respirar custa dinheiro".

A infla��o, em geral, e o pre�o da energia, em particular, s�o quest�es que circulam pela fila, assim como a recente mudan�a de primeiro-ministro, do conservador Boris Johnson para a conservadora Liz Truss.


Aviso sobre a pulseira de papel exigida para entrar no Parlamento
Sem uma pulseira de papel, era imposs�vel entrar no Parlamento (foto: Mat�as Zibell - BBC)

Carolyn e Philip s�o altamente cr�ticos da atual situa��o pol�tica e econ�mica no Reino Unido, mas isso n�o afeta sua percep��o da monarquia.

Quando pergunto como tra�am essa linha entre o governo e a Coroa, sem conceber ambos como parte da mesma estrutura de poder, ela responde que acredita, ou "quer acreditar", que Elizabeth 2ª melhorou seus primeiros-ministros, ou seja, que eles se comportaram melhor por causa dela.

"Mas sou uma contradi��o, porque apesar das minhas tend�ncias socialistas, da minha ideia de redistribui��o da riqueza, ainda amo a monarquia como quando era crian�a", conclui.

Shakespeare e o frio

Outro brit�nico que era fascinado pela realeza e trabalhou para dois monarcas - Elizabeth 1ª e James 1º - foi William Shakespeare, que escreveu dramas sobre as vidas de Henrique 4º, Henrique 5º, Henrique 6º, Ricardo 2º, Ricardo 3º, bem como o rei Jo�o e do Rei Lear.

"� evidente que Shakespeare era fascinado pela realeza. O melhor � que seus monarcas, que v�o de santos a vil�es, de impr�prios a her�icos, s�o seres humanos compreens�veis e fal�veis", disse dele - h� alguns anos - o ent�o pr�ncipe de Gales e presidente da Royal Shakespearean Company, e atual rei Charles 3º.

Cumprindo este legado entre reis e mesas, o teatro de Shakespeare situado na margem sul do rio Tamisa oferece-nos a possibilidade de utilizar a casa de banho a todos os peregrinos que passarem pela sua fachada.

� tarde e est� frio. Na loja do The Globe - como � chamado o teatro - compro um casaco com capuz que diz "Capuz n�o faz monges" da pe�a Henrique 8º e come�o a conversar na fila com um homem moreno de terno elegante.


The Globe
The Globe, o teatro que mant�m vivas as obras de William Shakespeare em Londres (foto: Mat�as Zibell - BBC)

Ele se apresenta como Tayo e me diz que, para ele, � preciso separar a rainha, a monarquia e o imp�rio brit�nico.

Em sua opini�o, embora a Coroa brit�nica estivesse originalmente envolvida na expans�o do imp�rio a todos os continentes, incluindo seu pa�s, com a chegada de Elizabeth 2ª, a monarquia j� havia perdido essa capacidade de influenciar a pol�tica externa brit�nica e era, em troca, um fonte de estabilidade dentro e fora do Reino Unido.

"Al�m de todas as loucuras e bobagens dos pol�ticos, ingleses ou n�o, ela foi um pilar de calma e um chamado � raz�o no mundo; n�o � toa ela respeitou Nelson Mandela, um respeito que (Margaret) Thatcher - por exemplo - n�o tinha."


Maricela Núñez
Maricela N��ez viajou do M�xico para representar sua av� (foto: Laura Garc�a - BBC)

Mas n�o � necess�rio que a Coroa ou o Imp�rio Brit�nico tenham feito parte da hist�ria de um pa�s ou continente para que as pessoas se sintam atra�das pela figura de Elizabeth 2ª.

Maricela Nu�ez � uma mexicana cuja av� "era a f� n�mero um" da monarca. "Alguns dias antes de ela falecer, ela me fez prometer que voltaria a Londres e conheceria a rainha, porque ela n�o podia. Se minha av� estivesse viva, ela ficaria na fila de 12 horas, ent�o, estou aqui por ela."

Assim como a av� de Maricela, nem todos tiveram a chance de se despedir da rainha.

Em Green Park, algu�m deixou um cart�o com o seguinte texto: "Deixo estas flores aqui em nome da minha amiga Maureen, porque ela mesma teria estado aqui se o amor n�o a tivesse levado para a Fl�rida".

Mitos e rituais

Quando a fila passa pelo Big Ben, tudo o que resta � atravessar a Lambeth Bridge para chegar ao Westminster Hall, onde o caix�o aguarda. Mas j� � noite e a visibilidade � reduzida.

Uma mulher desmaia quando trope�a em um degrau. Outras tr�s pessoas, que caminharam por 12 horas, t�m que sair da fila, porque j� � tarde e perdem o trem que os levar� de volta ao seu local de origem.


A fila em frente ao Parlamento britânico
A fila em frente ao Parlamento brit�nico (foto: Mat�as Zibell - BBC)

O Big Ben est� l�, quase d� para toc�-lo, mas as barreiras de metal que dividem a fila em dezenas de linhas fazem com que se demore mais duas horas at� chegar � meta final.

Depois de passar o controle policial, voc� entra no Parlamento pela porta de (Oliver) Cromwell, o homem que liderou a �nica d�cada em que este pa�s foi uma Rep�blica e que enviou o primeiro rei Charles para a forca.

No sal�o, h� uma atmosfera pr�xima ao sagrado, seja ele mon�rquico ou republicano; brit�nico, imigrante ou turista.O telhado de madeira sobre as paredes do penhasco. O sil�ncio. A guarda real com suas cabe�as abaixadas. Os poucos minutos que as pessoas t�m diante do caix�o depois de tantas horas andando. O cetro. A coroa. O som oco de passos na pedra.

Minha impress�o � que � como entrar em um livro de hist�ria por um momento. � entrar no verbete de uma enciclop�dia. Como se quando crian�a pudesse ter colocado a cabe�a dentro das p�ginas de Os Cavaleiros da T�vola Redonda. � assustador e absurdo ao mesmo tempo.

"Isso � apenas parte de um momento hist�rico", diz Carolyn para minha perplexidade. Ent�o ela me diz que vai anotar tudo o que sentiu naquele dia para que sua neta de 6 anos, ao ver as imagens desta fila daqui a algumas d�cadas, entenda o que aconteceu em setembro deste ano no Reino Unido.


Parlamento britânico
O Big Ben � um dos monumentos mais emblem�ticos de Londres (foto: Mat�as Zibell - BBC)

Quando olho para o rel�gio, fico surpreso ao ver que toda a jornada levou 14 horas, exatamente como o site havia previsto quando come�amos em Southwark.

Quem j� esperou um �nibus ou metr� em Londres sabe que a famosa "pontualidade inglesa" � mais um mito do que uma realidade.

Mas essas pessoas, al�m de honrar seus mortos e respeitar as filas, tamb�m sabem bem sobre mitologias.

- Texto originalmente publicado em http://bbc.co.uk/portuguese/internacional-62950877


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