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Estado de Minas entrevista/Baltasar Garz�n, 67 anos, juiz

"No Brasil, a ditadura n�o foi derrotada"

Respons�vel pela pris�o do ditador chileno Augusto Pinochet, magistrado espanhol critica lentid�o do Brasil em punir crimes da �poca do regime militar


12/01/2023 04:00

Baltasar Garzón, juiz
(foto: DANIEL LEAL-OLIVAS/AFP )

Aos 67 anos, o juiz espanhol Baltasar Garz�n se tornou s�mbolo de combate � ditadura. Em 15 de outubro de 1998, ele decretou a pris�o do general chileno Augusto Pinochet, que estava internado em uma cl�nica particular de Londres. O magistrado apenas n�o o julgou porque o repressor morreu em 2006, enquanto cumpria pris�o domiciliar. Doutor Honoris Causa em 30 universidades de todo o mundo e membro de diferentes organiza��es humanit�rias, centros de direitos humanos e de media��o de conflitos, dentro e fora da Espanha, Garz�n  condenou a 640 anos de pris�o o argentino Adolfo Francisco Scilingo por crimes contra a humanidade. O ex-capit�o da Marinha da Argentina participou dos chamados "voos da morte", em que presos pol�ticos foram atirados, ainda vivos, ao mar, dentro da Opera��o Condor, uma alian�a repressiva das ditaduras do Cone Sul, para perseguir e torturar opositores aos regimes. Em entrevista exclusiva aos Di�rios Associados, Garz�n criticou o fato de o Brasil ainda n�o ter punido os crimes do regime militar (1964-1985) .

"No Brasil, houve um indulto a presos pol�ticos e repara��o �s v�timas, a cria��o de uma Comiss�o de Mortos e Desaparecidos, e uma Comiss�o da Verdade. No entanto, at� hoje n�o houve justi�a penal"



O senhor teve papel fundamental na pris�o do general chileno Augusto Pinochet. A Justi�a tem sido efetiva em punir repressores e reparar as v�timas pelos crimes cometidos pelo regime militar na Am�rica do Sul?
Depende do ponto de vista, de como se olha a situa��o. Se observarmos o que foi feito na Argentina, no Chile, no Brasil e no Peru, ou recentemente na Col�mbia, e compararmos, por exemplo, com o pouco feito na Espanha ou o quase nada em pa�ses que enfrentaram fen�menos similares, devemos concluir que na Am�rica do Sul fez-se bastante. Houve comiss�es da verdade e mecanismos de repara��o. Recentemente, se elaboraram planos nacionais de busca de desaparecidos etc. Tamb�m temos visto julgamentos, a come�ar pelos tribunais nas juntas militares da Argentina, at� os mais recentes processos contra os executores diretos e pessoas com cargos de menor hierarquia. No Chile, n�o pude julgar Pinochet porque ele faleceu antes. No momento de sua morte, ele estava sob cust�dia do Estado e em pris�o domiciliar. Anedoticamente, ele morreu em 10 de dezembro de 2006, o Dia dos Direitos Humanos. Um paradoxo bastante curioso... Apesar de ele n�o ter sido julgado, sua pol�cia secreta foi submetida aos tribunais e condenada em numerosos processos que seguem seu curso at� o dia de hoje, ainda que as penas possam ser desproporcionalmente baixas, pois aplica-se uma norma que permite reduzir, consideravelmente, a san��o devido ao tempo transcorrido.

Isso n�o parece frustrante, na medida em que os crimes n�o sejam punidos no m�ximo rigor da lei?
Gera uma certa sensa��o de impunidade, a respeito de crimes imprescrit�veis. No Peru, Alberto Fujimori foi julgado e condenado pelas viola��es dos direitos humanos cometidas em casos como Barrios Altos e La Cantuta, ainda que atualmente se encontre em liberdade, depois de ter sido r�u. Novamente, isso causa uma sensa��o de impunidade. No Brasil, houve um indulto a presos pol�ticos e repara��o �s v�timas, a cria��o de uma Comiss�o de Mortos e Desaparecidos, e uma Comiss�o da Verdade. No entanto, at� hoje n�o houve justi�a penal. A impunidade segue reinando, apesar de v�rios pronunciamentos da Comiss�o e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ent�o, sei que fizeram avan�os. Mas, em alguns casos, eles s�o insuficientes. Existe uma verdade geral sobre os sucedidos, com indica��o das v�timas. Existem repara��es, adotaram-se medidas de n�o repeti��o, mas a Justi�a n�o tem sido t�o diligente como deveria.

"No Brasil, a ditadura n�o foi derrotada, como tampouco o foi a da Espanha. Ela mesma negociou com a oposi��o uma transi��o sob sua medida"



E em rela��o ao Brasil? A lentid�o em acertar as contas com o passado coloca a Justi�a em xeque?
Como eu afirmei, o processo no Brasil est� incompleto. Al�m disso, tem sido muito lento. A ditadura acabou formalmente em 1985. A nova Constitui��o foi redigida em 1988. Mas foi preciso esperar at� 2012 para que se constitu�sse a Comiss�o da Verdade do Brasil, que entregou o relat�rio � ent�o presidente Dilma Rousseff em 7 de dezembro de 2014. Antes disso, houve algumas medidas de repara��o, mas nada em termos da verdade at� 2014. Isso quer dizer 26 anos de atraso. No �mbito da justi�a n�o se avan�ou at� o dia de hoje. Isso tem uma explica��o, sob meu ponto de vista: no Brasil, a ditadura n�o foi derrotada, como tampouco o foi a da Espanha. Ela mesma negociou com a oposi��o uma transi��o sob sua medida. A Constitui��o de 1988 formalmente p�s fim a um breve per�odo de transi��o de tr�s anos. No entanto, omitiram-se reformas necess�rias, que, na pr�tica, deram uma continuidade, em certas mat�rias, ao regime anterior. N�o houve modifica��es nas For�as Armadas. Sua heran�a institucional prolongou-se em democracia. Isso possibilitou um temor latente de um novo golpe de Estado. O mesmo se passou com o Supremo Tribunal Federal (STF), que n�o se renovou, mantendo todos os ju�zes designados durante a ditadura. De certa forma, isso garantiu a impunidade, ratificando, uma e outra vez, a vig�ncia e a aplica��o da Lei de Anistia. O STF chegou a afirmar que n�o teria autoridade para julgar a compatibilidade das leis pr�-constitucionais com a Constitui��o de 1988. Somente em 1999, quando se promulgou a Lei 9.882, que facultou expressamente ao Supremo Tribunal a revis�o da legisla��o pr�-constitucional, se p�de corrigir essa situa��o. O Caso Gomes Lund, tamb�m conhecido como Guerrilha do Araguaia, sentenciado pela Corte Interamericana para impedir a anistia de agentes do Estado que cometeram crimes de lesa-humanidade, imprescrit�veis, aguarda julgamento h� anos perante o STF para sua efetiva��o. Enquanto isso, os criminosos v�o morrendo impunes, e as fam�lias das v�timas t�m a sensa��o de injusti�a e de impunidade. 

O senhor tamb�m condenou torturadores da Argentina. A Opera��o Condor recebeu a resposta necess�ria da Justi�a?
A deten��o de Pinochet, em Londres; a condena��o do argentino Adolfo Scilingo, na Espanha; e a extradi��o de Ricardo Miguel Cavallo, do M�xico para a Espanha, e depois da Espanha para a Argentina, foram poss�veis gra�as ao princ�pio da jurisdi��o universal. O comum � que os delitos sejam julgados pelo tribunal do local onde ocorreram os fatos. Se o crime foi cometido no Brasil, o julgamento caberia a um tribunal brasileiro. O princ�pio da territorialidade tem exce��es. Uma delas, e talvez a mais not�vel, � o princ�pio da jurisdi��o universal, segundo o qual se o delito � um crime internacional da maior gravidade, como genoc�dio, crimes de lesa-humanidade e crimes de guerra, qualquer tribunal, de qualquer pa�s do mundo, tem jurisdi��o sobre esses fatos, que s�o imprescrit�veis. Isso porque eles interessam � comunidade internacional e a toda a humanidade. Porque esses crimes atrozes n�o podem ficar impunes e porque as v�timas s�o universais. Isso significa que os tribunais chilenos e argentinos n�o queriam, ou n�o podiam, fazer justi�a. Ent�o, os tribunais espanh�is poderiam atuar, como o fizeram, gra�as a esse princ�pio da jurisdi��o universal. Isso foi o que ocorreu nesses casos. 

Qual o legado da ditadura na sociedade brasileira e por que ainda se flerta com o autoritarismo?
Sempre h� quem se sinta muito confort�vel com as ditaduras. Os militares t�m o poder, a for�a, imp�em uma certa forma de enxergar e de entender a sociedade, e reprimem qualquer dissid�ncia. Se voc� comunga com essa forma de ver e de entender o mundo, tender� a dar import�ncia a esse evento repressivo, ou mesmo o justificar� como um mal necess�rio para que se mantenha a mesma situa��o de comodidade. Isso ocorre sempre. H� aqueles que se beneficiam diretamente da ditadura, como os grandes empres�rios, que se enriquecem por estar pr�ximos ao poder e que sustentam esse regime. Tamb�m h� pessoas enganadas, que creem nas mentiras do regime, apoiadas por toda uma campanha de propaganda e desinforma��o. O legado da ditadura, pelo menos na Espanha, � algo que se d� gratuitamente, que se afeta como um presente, como algo positivo: tem uma conota��o altru�sta, de mudan�a, de heran�a. A ditadura do Brasil, creio, adotou, de forma totalmente obrigat�ria, uma imposi��o militar. Ela deixou como heran�a e uma forma de ver e de entender o pa�s que n�o � inteiramente democr�tica. Pelo menos, durante muito tempo n�o tem sido. H� pouco tempo, esquadr�es da morte assassinavam crian�as sem-teto, e isso � visto como algo lament�vel, mas n�o como a aberra��o que �. A cada vez que h� um menino pedindo esmola nas ruas, que rouba para comer, ou que n�o est� na escola, o respons�vel � a sociedade, o pa�s inteiro. Se os pais n�o podem ou n�o querem educar, h� diferentes mecanismos articulados pela sociedade, pelo Estado, para atender a essa crian�a. Os garotos de rua devem ser vistos n�o como delinquentes, mas como v�timas. Eles t�m direito a brincar, a frequentar a escola, a ter comida e direitos assegurados. A transi��o pactuada fez com que, at� recentemente, se podiam encontrar vest�gios autorit�rios no Estado. As ditaduras deixam uma heran�a terr�vel em toda a sociedade onde elas se produziram. Os principais flagelos desses regimes totalit�rios s�o a desigualdade social, a pobreza, a aus�ncia de liberdades, a imposi��o dos que t�m mais sobre sobre a generalidade das pessoas, o retrocesso dos direitos das mulheres e dos coletivos (LGBTQIA+), o perigo de extin��o para os povos origin�rios. Al�m disso, no Brasil, uma a��o que afeta o mundo inteiro: o desmatamento da Amaz�nia e a destrui��o do meio ambiente. Tudo isso para favorecer os interesses de umas poucas empresas multinacionais que se autorizam dessas ditaduras para conseguir seus benef�cios. Ainda que n�o tenha sido uma ditadura, o governo de Jair Bolsonaro, de fato, praticou todos ou quase todos esses t�picos. Esses flagelos grav�ssimos de uma sociedade sem ditadura, que deveriam estar erradicadas em uma democracia.

"Deve-se castigar, com dureza, as pessoas que, no �ltimo domingo, invadiram o Pal�cio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal"



A puni��o aos ditadores no fim da vida deve levar em conta a dosifica��o da pena? Ou o senhor defende uma senten�a exemplar?
A pena deve ser exemplar. Trata-se dos delitos mais graves, que merecem uma pena grave. Obviamente, sou absolutamente contr�rio � pena de morte. Mas uma coisa � a extens�o da pena, que deve ser sempre proporcional � gravidade do delito. Outra � sua forma de execu��o: a pena deve ser sempre executada com dignidade, com respeito ao condenado. Ainda que tenha sido um ditador, n�o deixa de ser pessoa. Como toda pessoa, devem-se respeitar os seus direitos humanos. A pena nunca pode ser equivalente a um ato de vingan�a.

A extrema-direita vem ganhando espa�o no Brasil e na Europa. Qual a sua an�lise sobre esse fen�meno?
Explico isso em meu mais recente livro, "Os disfarces do fascismo". Infelizmente, o fascismo regressou em todo o mundo. Est� presente no Brasil, mas tamb�m nos EUA e na Europa. O fascismo usa armas bem conhecidas, que s�o tremendamente eficazes, mas destruidoras da quest�o social. Os discursos de medo e de �dio s�o muito eficientes. Mas, na mesma medida, s�o falsos. Trata-se de buscar um povo vulner�vel e culp�-lo de todo o mal que se sucede. Assim fizeram os nazistas com os judeus. Assim fizeram as ditaduras da Am�rica Latina com os opositores pol�ticos. Assim fazem os EUA com os imigrantes que entram ilegalmente no pa�s, ao menos durante a Era Trump. O fascismo regressou porque levamos muito tempo acorrentando uma crise econ�mica ap�s a outra. A guerra voltou � Europa, o planeta d� sinais de esgotamento, os recursos minerais come�am a escassear. O que produz uma crise de suprimentos. Vivemos em um tempo de incertezas. N�o h� nada mais angustiante para o ser humano do que a incerteza. As pessoas querem certezas. Se n�o as encontram, tornam-se presas f�ceis de falsos profetas que oferecem solu��es simples, por�m falsas. Os problemas que enfrentamos s�o complexos, e as solu��es tamb�m ser�o. Creio que os progressistas n�o devem minimizar o crescimento da ultradireita, pois, ao faz�-lo, podemos nos deparar com acontecimentos como o de 8 de janeiro, em Bras�lia. Colocaremos em risco a democracia se permanecermos indiferentes a esse fen�meno. At� a chegada de Luiz In�cio Lula da Silva, o Brasil viveu uma longa noite de restri��o de direitos fundamentais, repress�o e armadilhas de todo tipo para impor a ideologia de ultradireita por parte de Bolsonaro. Preocupa-me a curta diferen�a de votos entre as duas op��es.

De que modo o senhor v� os incidentes do �ltimo domingo na Pra�a dos Tr�s Poderes?
Em primeiro lugar, gostaria de brindar todo o meu apoio ao governo eleito democraticamente do presidente Luiz In�cio Lula da Silva. Algumas pessoas acreditam que est�o sobre a maioria e se autoatribuem o direito de impor a pr�pria vontade. Eles se creem superiores e supremacistas. Acreditam no direito de utilizar a viol�ncia e atacar as institui��es. Por isso, deve-se castigar, com dureza, as pessoas que, no �ltimo domingo, invadiram o Pal�cio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Milhares de simpatizantes do ex-presidente Jair Bolsonaro irromperam, massivamente, nessas institui��es p�blicas. N�o foi algo casual, nem espont�neo. � preciso chegar at� o fim nas investiga��es e sancionar os autores intelectuais, assim como aqueles que financiaram esses atos violentos, de terrorismo e de graves atentados. Foi um verdadeiro atentado � democracia, um golpe de Estado que deve ser severamente sancionado como tal.


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