
Se para boa parte dos brasileiros a palavra "Oiapoque" � o sin�nimo imediato do ponto mais ao norte do pa�s, para um grupo cada vez maior ela tamb�m significa a entrada para uma vida no exterior.
� ali, naquela cidade do Amap�, que o Brasil encontra a Guiana Francesa, um departamento ultramarino da Fran�a na Am�rica do Sul — uma esp�cie de Estado que n�o faz parte da Fran�a Metropolitana (que fica na Europa), mas que � parte do pa�s.
Segundo estimativas rec�m-divulgadas pelo Minist�rio das Rela��es Exteriores do Brasil, o Itamaraty, 91,5 mil brasileiros viviam na Guiana Francesa em 2022. � a 10ª maior popula��o brasileira em um territ�rio estrangeiro, � frente pela primeira vez, por exemplo, da comunidade brasileira na Argentina (90,3 mil) e da pr�pria Fran�a europeia (90 mil).

� um n�mero que vem aumentando ano ap�s ano — eram 82,5 mil em 2021, e 72,3 mil em 2020, segundo os dados do Itamaraty. O �rg�o n�o faz distin��o de status migrat�rio (legal ou ilegal) nas estat�sticas sobre comunidade brasileira no exterior.
“Voc� ouve portugu�s em todo lugar. De leste a oeste, h� brasileiros aqui”, diz a maranhense Vaneza Ferreira, que mora na Guiana Francesa h� 24 anos e trabalha numa organiza��o humanit�ria com atua��o na fronteira e com povos tradicionais.
Considerando a popula��o total da Guiana Francesa de 301 mil habitantes (equivalente � de Palmas, capital do Tocantins), segundo estimativas do Insee, o �rg�o de estat�sticas demogr�ficas da Fran�a, o n�mero do Itamaraty equivaleria a quase um ter�o (30,3%) dos moradores daquele territ�rio.
Uma fonte do Itamaraty ressaltou � BBC News Brasil que essa propor��o pode ser um pouco menor na realidade, j� que a popula��o total da Guiana Francesa deve ser maior que os 301 mil, caso fossem consideradas as pessoas que vivem ali sem documenta��o.
Segundo a estimativa do Brasil, dos 91,5 mil brasileiros no territ�rio franco-guianense, 89 mil est�o em Caiena, a capital, a cerca de 200 km da fronteira com o Amap�, e 2,5 mil na regi�o da cidade de Saint Georges de L'Oyapock, do outro lado da fronteira com o Oiapoque.
Do lado das estat�sticas oficiais francesas, dados de 2020 do Insee apontavam que cerca 30% dos moradores registrados na Guiana Francesa s�o imigrantes da Am�rica, �sia e Oceania, sem especificar os pa�ses .
Em dados de 2015, em que detalhava os grupos migrat�rios, o Insee j� calculava oficialmente que os brasileiros eram 9,2% da popula��o da Guiana Francesa. Al�m dos brasileiros, os imigrantes mais numerosos no territ�rio s�o os haitianos e os surinameses.
O que torna a Guiana Francesa atrativa?

O que torna a Guiana Francesa especialmente atrativa a brasileiros em primeiro lugar, segundo especialistas e moradores do pa�s, � a moeda. Como � parte da Fran�a, os trabalhos s�o pagos em euro. Na cota��o no in�cio de outubro, 1 euro equivale a aproximadamente 5,30 reais.
“Eles conseguem ganhar valores que nunca ganhariam no Brasil, em fun��es como pedreiros, por exemplo”, diz a soci�loga Rosiane Martins, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) que desenvolveu pesquisas no Par� e Amap� sobre o movimento migrat�rio � Guiana Francesa.
Em termos de compara��o, o �ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Guiana Francesa em 2021 era previsto em 0,794 , o equivalente a pa�ses como Bulg�ria. O Brasil tem IDH de 0,754, e o da Fran�a � 0,903 (quanto mais perto do 1, mais desenvolvido � o lugar).
Al�m da busca pelo sal�rio em euro, que possa patrocinar uma vida melhor da fam�lia por meio de envio de recursos ao Brasil, a migra��o � Guiana Francesa tamb�m tem outras especificidades, segundo a pesquisadora e especialistas no assunto.
A maioria dos brasileiros que vai para o territ�rio � natural de Estados pr�ximos geograficamente, principalmente Amap�, Par� e Maranh�o. S�o, na maior parte, homens, que buscam empregos na �rea da constru��o civil e no garimpo.
Como um ato de esfor�o do governo franc�s de coibir a entrada ilegal de brasileiros no territ�rio, � necess�rio um visto de turismo, que � solicitado nos consulados da Fran�a no Brasil, para acessar temporariamente a Guiana Francesa. Com dinheiro para uma passagem a�rea, � mais f�cil ir como turista � Fran�a, na Europa, onde o brasileiro n�o precisa de visto.
Desde 2020, tamb�m foi suspensa a emiss�o de vistos para Guiana Francesa em Macap�, a capital mais perto da fronteira. Os interessados precisam ir at� Bras�lia para realizar o procedimento.
Segundo um comunicado emitido pelo governo do Amap� em julho, a gest�o estadual tenta fazer acordos com a Fran�a para a retomada da retirada dos vistos e tamb�m da emiss�o da carta transfronteiri�a para moradores de Oiapoque. Esse documento permite que os moradores da fronteira passem at� 72h apenas na cidade de Saint Georges, do outro lado do rio.
Na ponte binacional entre as duas cidades, inaugurada em 2017 ap�s muito atraso, brasileiros precisam mostrar visto e, caso estejam de carro, pagar um seguro de autom�vel de at� 175 euros. A travessia por barco, muitas vezes sem fiscaliza��o, segue sendo a mais utilizada.
Uma fonte do Itamaraty afirma que essas medidas tomadas pela Fran�a acontecem porque, "se n�o, a Guiana Francesa iria virar brasileira, dada a dimens�o da popula��o do Brasil e a press�o demogr�fica que isso iria causar”.

Dois tipos de imigra��o
Segundo pesquisadores, o primeiro movimento da imigra��o brasileira ocorreu a partir do fim dos anos 1960 e anos 1970, quando foi constru�da a 50 km de Caiena a Base Espacial de Korou.
A m�o de obra brasileira foi at� incentivada, diante do vazio populacional que existia naquele territ�rio. Em 1974, eram estimados 1,5 mil brasileiros ali, em geral qualificados para constru��o e atua��o.
Esse primeiro grupo � considerado por pesquisadores como parte de uma “migra��o familiar”, que ocorreu com a ida de fam�lias inteiras ou ainda com as pol�ticas de reunifica��o familiar a partir de 1976. Essas pessoas formaram uma comunidade est�vel e permanente, inserida na sociedade local.
Mas, ap�s o t�rmino das obras, os brasileiros seguiram sendo m�o de obra primordial na constru��o da infraestrutura francesa.
Desde aquela �poca at� hoje, h� relatos de brasileiros reunidos “na pra�a das Palmeiras (centro de Caiena) onde aguardavam os empreiteiros chegarem com as pickups anunciando obras”.
As not�cias sobre as oportunidades correram nos Estados vizinhos, atraindo mais e mais imigrantes, grande parte com baixa escolaridade e sem os documentos legais. Tamb�m foram chegando mais moradores � cidade de Oiapoque, atra�dos pelas oportunidades na vida fronteiri�a, como a possibilidade de ganhar em euro e gastar em real. Em 2000, eram 12 mil moradores na cidade; em 2010, j� eram mais de 20 mil; em 2022, a popula��o chegou a 27 mil, segundo o IBGE.
Natural da cidade de Santa Helena, no Maranh�o, Vaneza Ferreira tinha 12 anos, em 1999, quando atravessou com a m�e, que se casou com um franco-guianense, para o lado franc�s da fronteira.
Ela faz parte da gera��o que se estabeleceu permanentemente no territ�rio e se considera parte da “di�spora brasileira, que j� tem pessoas de at� terceira e quarta gera��o”.
“Eu me reivindico franco-guianense-brasileira, porque a Guiana adotou agente”, diz.

Do outro lado dessa moeda, h� milhares de brasileiros que n�o criam v�nculos com o territ�rio e v�o ali muitas vezes para atuar em atividades ilegais, como o garimpo em minas de ouro, explica a pesquisadora Rosiane Martins.
"Se pensar nos migrantes clandestinos, � incont�vel. A cada legalizado que eu encontrava morando l�, havia at� sete morando em subloca��es, de forma irregular". diz Martins.
S�o, em geral, homens que cruzam o rio no Oiapoque para ganhar algum dinheiro e voltar ao Brasil. Muitas vezes s�o detidos e levados pela pol�cia francesa de volta ao Amap�. As mulheres conseguem vagas na faxina, cozinha e muitas vezes s�o exploradas numa rede de prostitui��o.
Segundo um relat�rio de 2016 da ent�o Ag�ncia Francesa de Coes�o Social e Igualdade de Oportunidades, o crescimento da popula��o brasileira na Guiana Francesa est� principalmente relacionado ao ressurgimento da atividade de minera��o de ouro desde meados da d�cada de 1990.
De acordo com Martins, as redes que cooptam esses migrantes atuam principalmente no Maranh�o, Amap� e Par�.
Muitos desses imigrantes vivem no vai e vem na fronteira, mas outros acabam tentando a vida em Caiena, onde vivem em situa��o extremamente vulner�vel, invadindo terrenos e criando ocupa��es e favelas.
"Eles v�o ficando porque � perto, f�cil de voltar ao Brasil, tem o fuso hor�rio igual, clima igual. E acabam convivendo bem numa sociedade multi�tnica", explica Martins. "Alguns v�o querendo voltar, mas n�o conseguem fugir mais dessa realidade".
“A gente que est� dentro da sociedade, temos nossa seguran�a, como se proteger. Mas essas pessoas s�o exploradas, est�o em risco constante. As pessoas precisam tomar cuidado com a ilus�o desse trabalho ilegal. A gente recebe todos os dias not�cias dram�ticas vindas da floresta”, diz Vaneza Ferreira, que v� de perto a realidade no seu trabalho.
Uma fonte do Itamaraty com rela��es na Guiana Francesa disse que “vira e mexe recebe no celular foto de cad�ver".
"Tamb�m presenciei a situa��o de humilha��o de centenas de brasileiros que s�o deportados toda semana para Bel�m e Macap�”, disse a fonte.
O caminho para se legalizar � considerado cada vez mais dif�cil. Mas isso n�o quer dizer que o fluxo diminui. "S�o pessoas que consomem, trabalham por um valor baixo, fazem parte da economia. Ent�o, em momentos de necessidade, a fiscaliza��o diminui, n�o colocam tantas barreiras", diz Rosiane Martins.
A�a� e ‘frantugu�s’

A presen�a massiva de brasileiros na Guiana Francesa pode ser percebida no dia a dia no territ�rio, segundo moradores.
H� restaurantes do tipo self service com churrasco espalhados por Caiena, festas onde se ouve m�sica pop brasileira e igrejas evang�licas nos bairros.
“Quando cheguei aqui, o a�a� por exemplo s� era consumido por brasileiros. Hoje � universal e todo mundo aqui come, como o paraense, acompanhado de um peixe frito, uma carne”, diz Pierre Cupidon, 35 anos, que trabalha como DJ e na constru��o civil, instalando redes de �gua e internet.
Como o pai dele era da Guiana Francesa, ele se mudou com a m�e de Bel�m para a regi�o de Caiena em 2002.
"H� festas que eu s� toco m�sica brasileira. Claro, h� influ�ncias de outros pa�ses tamb�m, mas o Brasil � muito presente".
Outro exemplo � no vocabul�rio, que muitas vezes mistura o franc�s com o portugu�s e at� com o creole (a l�ngua local). “Tem gente que chama 'amiga' aqui de ‘copina’. � como se fosse uma aportuguesada de ‘copine’, que � 'amiga' em franc�s”, exemplifica Vaneza Ferreira.
Diante de um territ�rio diverso em origens, os brasileiros sentem que h� uma intensa troca cultural.
“� engra�ado porque a gente ainda � bem pequenininho comparado a outras cidades do Brasil, mas a diversidade cultural � enorme, enriquece o territ�rio”, diz Ferreira.
“O povo em si aqui se sente mais parte da Am�rica Latina do que da Fran�a”, opina Cupidon.
As Guianas

A chamada regi�o das Guianas (que inclui Guiana Francesa, Suriname, Guiana e ainda o Estado brasileiro do Amap� e a regi�o venezuelana de Guayana) foi alvo de disputa entre os colonizadores europeus desde o s�culo 16, com a presen�a de espanh�is, portugueses, ingleses, holandeses e franceses.
A Guiana (antes chamada de Guiana Inglesa) conseguiu independ�ncia do Reino Unido e se tornou um pa�s em 1966. O Suriname (antes Guiana Holandesa) passou pelo mesmo processo em 1975, separando-se do Reino dos Pa�ses Baixos. A ocasionalmente chamada "Guiana Portuguesa" virou Estado do Amap� no Brasil, e a parte da Guiana Espanhola somou-se � Venezuela.
A Guiana Francesa, por sua vez, nunca se separou da Fran�a. Oficialmente, o territ�rio faz parte da Uni�o Europeia, sua moeda oficial � o euro e sua popula��o tem cidadania francesa.
Economicamente, a Guiana Francesa segue dependente da Fran�a.
Como boa parte da Am�rica do Sul, o territ�rio foi colonizado como uma sociedade escravista, onde plantadores importavam escravizados da �frica.
Ap�s o fim da escravid�o, a Fran�a estabeleceu ali uma col�nia penal, com uma rede de campos e penitenci�rias onde prisioneiros do pa�s eram enviados a trabalhos for�ados.
A primeira onda de imigra��o � regi�o aconteceu com os chineses ainda no s�culo 19, para trabalhar nas planta��es de a��car, e de pessoas vindas da ilha caribenha de Santa L�cia.
A partir dos anos 1960, por�m, tr�s grupos se sobressa�ram nesse movimento migrat�rio: os haitianos (tamb�m colonizados por franceses), os vizinhos surinameses e os brasileiros. Em 2016, essas tr�s nacionalidades representavam 90% de todos os imigrantes do pa�s, segundo o �rg�o de estat�sticas da Fran�a.