
Enfrentando os efeitos de uma pandemia que j� deixou mais de 10 mil mortos no pa�s, o Brasil assiste, sem comando, a uma s�rie de desentendimentos pol�ticos sem sentido que tiram o foco da tarefa de salvar vidas, na vis�o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Para o soci�logo de 89 anos, o presidente Jair Bolsonaro tem se distra�do das prioridades lutando contra armadilhas criadas por ele mesmo, em um momento em que a oposi��o n�o o amea�a.
"O desentendimento pol�tico j� vinha de antes, mas agora fica sem sentido: briga sem parar, o presidente d� cambalhota e ele mesmo escorrega. � bastante pat�tico o que n�s estamos vivendo", afirma FHC, que vive o isolamento social em seu apartamento em S�o Paulo, onde divide os dias entre a escrita e a conviv�ncia com a mulher, Patr�cia, e a cachorrinha que vive com o casal.
"Eu estive l� [na Presid�ncia] eu sei que � dif�cil. Eu n�o gosto de falar levianamente sobre essas quest�es porque sei que s�o dif�ceis. Mas quando o presidente perde o rumo, o pa�s todo fica at�nito".
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A falta de uma figura que fale � popula��o com clareza e lideran�a em um momento de sofrimento, diz o ex-presidente, torna a crise ainda mais delicada. A decis�o de trocar ministros, como o da Sa�de, Luiz Henrique Mandetta, ["evidentemente o novo ministro tem que se informar"] e o da Justi�a e Seguran�a P�blica, S�rgio Moro, gera ainda mais turbul�ncia e torna o governo mais fraco, na an�lise do ex-presidente.
"Nessas horas de dificuldade, quem est� no governo precisa falar com o povo. Eu me lembro de uma crise no meu governo, naquele tempo era crise de energia el�trica, o apag�o. Quando eu soube levei um susto, mas eu chamei todo mundo: oposi��o, governo, e falava, falava, explicava. Pedia apoio", afirma, referindo-se � crise energ�tica que, em 2001, interrompeu o fornecimento de energia em diversas regi�es do pa�s e exigiu medidas de racionamento.
O an�ncio do fim das medidas foi feito pelo ex-presidente em pronunciamento em cadeia nacional, exaltando o papel do povo em reduzir o consumo de energia.
"Aqui neste momento � preciso de um toque de cora��o, de humanidade. Porque as pessoas est�o sofrendo, n�?", diz FHC sobre a crise atual.
Para o ex-presidente, o caminho escolhido por Bolsonaro de contrariar recomenda��es internacionais e tornar-se cada vez mais isolado vai justamente na contram�o do que o pa�s precisa e precisar� para sair da enorme crise, que exigir� endividamento p�blico e apoio para socorrer grande parte da popula��o.
"As gera��es futuras v�o pagar isso, todos v�o precisar entender isso. N�s vamos precisar tamb�m, n�s aqui do Brasil, de apoio. N�o j�, mas daqui a pouco. Apoio do Fundo Monet�rio Internacional, apoio do Banco Mundial, apoio dos governos mais poderosos da Europa e dos Estados Unidos, da China".
A covid-19 tamb�m exp�s de maneira gritante as mazelas sociais do Brasil, em que grande parte da popula��o n�o tem condi��es de se proteger da doen�a. Dados divulgados na semana passada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estat�stica (IBGE) apontam que, em pleno s�culo XXI, 18,4 milh�es de brasileiros n�o recebem �gua encanada diariamente.
FHC, que ocupou a Presid�ncia por oito anos, de 1995 a 2002, admite que a sociedade brasileira habituou-se a aceitar a desigualdade, e alerta para o risco de que, passada a fase aguda da pandemia, tudo volte a ser como antes.
Relembra que, desde os tempos em que era senador, propostas para redistribuir renda como a de tributar grandes fortunas eram rejeitadas no debate nacional.
"As pessoas ficavam desesperadas com essa quest�o de que a propriedade � sagrada, diz. "N�s falamos mal da desigualdade, mas acabamos aceitando a desigualdade. E isso � muito ruim", afirma. "Crescemos, mas esquecemos a maioria das pessoas, parte importante das pessoas".
"Tem que haver uma preocupa��o que tem que vir n�o s� do governo, mas da sociedade, no sentido da solidariedade. Mesmo que voc� seja ego�sta, eu acho que n�o deve ser, mas se for ego�sta, pense que no futuro esse ego�smo custa caro. Depois ele vai cobrar o pre�o".
Apesar das muitas cr�ticas ao presidente Jair Bolsonaro, FHC, que apoiou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, se diz contr�rio a um eventual impedimento do atual presidente, porque ele ainda governa e n�o h� demanda social pelo seu afastamento. "Todos impeachments deixam marcas que s�o negativas".

Leia os principais trechos da entrevista, concedida � BBC News Brasil por meio de confer�ncia virtual.
BBC News Brasil - Quando o senhor para hoje e pensa no Brasil, o que o preocupa mais neste momento?
Fernando Henrique Cardoso - De forma imediata � a pandemia. Que ela est� matando muita gente e veio de avi�o, veio pegando os mais ricos. Agora n�o, est� chegando l� nas pra�as populares e a� vai ser bastante pesado e desagrad�vel. Agora, a pandemia n�o vai resolver, vai agravar os problemas. N�s j� t�nhamos dificuldades, a taxa de desemprego j� era elevada, vai ser mais elevada ainda com essa pandemia. Porque est� desorganizando os mercados pelo mundo afora.
E al�m do mais o desentendimento pol�tico, que j� vinha de antes, mas agora fica sem sentido: briga sem parar, o presidente d� cambalhota e ele mesmo escorrega. � bastante pat�tico o que n�s estamos vivendo. Eu pensava o seguinte: j� vou fazer 90 anos no ano que vem. Nessa altura da vida, meu Deus, de novo? Cansa, n�. Mas � assim mesmo, a vida � assim. Eu tamb�m sei que passa.
BBC News Brasil - Um dos exemplos, come�ando pela quest�o da pandemia. O senhor vinha falando que seria um erro muito grande a gente trocar, por exemplo, o [Luiz Henrique] Mandetta, no meio da pandemia. Parecia uma coisa que n�o ia acontecer e aconteceu, j� vai fazer quase um m�s que tem um ministro novo a�. Seu medo se confirmou? Que peso essa mudan�a teve?
FHC - Eu n�o sei se teve peso j� real, mas evidentemente o novo ministro tem que se informar. Dizem que � um bom m�dico, eu n�o conhe�o, eu tamb�m n�o conhecia o Mandetta. Mas o Mandetta tinha pelo menos uma virtude: ele falava, explicava � popula��o, todo dia. Nessas horas de dificuldade, quem est� no governo precisa falar com o povo. Eu me lembro de uma crise no meu governo, naquele tempo era crise de energia el�trica, o apag�o. Quando eu soube levei um susto, mas eu chamei todo mundo: oposi��o, governo, e falava, falava, explicava. Pedia apoio. Aqui neste momento � preciso de um toque de cora��o, de humanidade. Porque as pessoas est�o sofrendo, n�? Vai mudar o ministro que est� na linha de frente? Eu acho uma coisa insensata, realmente, n�o passa pela minha cabe�a tirar quem est� na linha de frente. Mas cada um faz l� o que acha que deve fazer quando est� na Presid�ncia. E agora tiraram outro ministro, o (Sergio) Moro. Que simbolizava uma luta contra a corrup��o, essa coisa toda. Enfim, n�o � o momento para fazer isso. O momento n�o � de dispers�o, � de coes�o. Precisamos de mais coes�o, mais uni�o para sair do buraco.
BBC News Brasil - Qu�o grave � a sa�da de Sergio Moro para o governo Bolsonaro?
FHC - A gravidade � que o apoio para o presidente diminui. Est� diminuindo, pelas pesquisas. Ainda tem bastante, mas as pesquisas mostram que houve uma desilus�o. Setores que votaram nele, que o apoiaram. Eu acho que mesmo os que n�o o apoiaram, eu nunca apoiei, mas devemos ficar pensando na pandemia. Pensando na volta ao trabalho quando for poss�vel, na economia, no crescimento da economia, emprego para as pessoas. N�o, n�s estamos vendo que as pessoas est�o mais acirradas no �dio pol�tico uns aos outros do que nas quest�es gerais, que preocupam. Eu acho que tudo o que est� acontecendo est� diminuindo a for�a do governo. E nesse momento, veja o ministro da Economia nosso. Ele vem com a vis�o de fazer ajuste, que � compreens�vel. Mas ajuste como? Agora � hora de gastar, n�o vai fazer ajuste, n�o h� possibilidade de fazer ajuste.

� o momento em que precisamos ter vis�o mais clara, a esperan�a de que vamos atravessar e unidade para atravessar. Falta � comando. N�o no sentido de dar ordem, mas de fazer apelo, no sentido de incluir as pessoas. Estamos vivendo no mundo um momento de populismo. O populismo no Brasil era inclusivo. Esse atual � excludente, quer tirar. N�o quer migrante, n�o quer n�o sei o qu�. Bom, � um mau momento do mundo. Agora ficou um mau momento aqui na pol�tica brasileira tamb�m. � a pandemia e a dificuldade econ�mica, � muita coisa. Vamos superar, a gente sabe, historicamente, que todas as crises t�m come�o, meio e fim. �s vezes leva muitos anos. Isso me chateia muito. Na minha idade, sei l� se eu vou ver o futuro mais radioso. Mas enfim, � preciso ter esperan�a de que vamos ver um futuro mais radioso.
BBC News Brasil - O senhor mesmo citou que a nossa quarentena � muito desigual, exp�e de maneira muito gr�fica a desigualdade. Hoje saiu um dado do IBGE mostrando que 18 milh�es de pessoas ainda n�o t�m �gua encanada. Considerando que o pa�s chegou em um momento de uma trag�dia mundial t�o exposto, t�o vulner�vel, onde foi que falhamos nas prioridades nos �ltimos anos?
FHC - Falhamos at� certo ponto, porque eu me lembro no passado n�o era melhor, era muito prec�rio. O servi�o p�blico de sa�de, por exemplo, o SUS, houve um avan�o enorme. Porque no passado n�o tinha, quem n�o tinha recursos ia para a Santa Casa de Miseric�rdia, era isso. Agora tem o Servi�o Universal de Sa�de p�blica e gratuita. � bom, � mau, � o que tem. Podia melhorar. Poder�amos dar, com mais previs�o, or�amento para eles melhorarem. Mas � positivo. Eu nasci em 1931. No meu tempo, isso aqui era considerado um pa�s rural. Porque era rural.
Eu nasci no Rio, e l� o pessoal andava de tamanco na rua. O principal problema do qual se falava em sa�de p�blica - Monteiro Lobato escrevia para as crian�as - era o bicho do p�. Porque ningu�m usava cal�ado. Acabou isso. Eu n�o sou pessimista quanto ao que o Brasil j� fez. Mas � indiscut�vel tamb�m que a desigualdade que aceitamos implicitamente � muito elevada, e essa desigualdade cobra seu custo na hora em que tem um problema como essa pandemia. A pandemia pega a todos, eu sei. Mas vai pegar mais os mais pobres. J� vi hoje um dado dizendo que pega mais os que s�o negros. � complicado. E a gente fala de desigualdade na hora da crise, depois esquece.

Uma vez, quando eu era senador, resolvi regulamentar todos os artigos da Constitui��o. E a Constitui��o manda que houvesse um imposto das grandes fortunas. Para que. Eu fiz, botei l�, pedi apoio do Roberto Campos, que era meu colega no Senado, que apoiou. N�o adiantou. Eu levei paulada de todo lado, inclusive da minha fam�lia. As pessoas ficavam desesperadas com essa quest�o de que a propriedade � sagrada. Eu sei que o nosso sistema est� baseado na livre iniciativa, n�o � isso. Tem que haver solidariedade, recursos p�blicos � disposi��o do governo para atender os que mais precisam.
N�s falamos mal da desigualdade, mas acabamos aceitando a desigualdade. Isso � muito ruim. Agora mesmo n�s estamos come�ando a ver essa situa��o de desigualdade, o efeito negativo que tem a desigualdade. Eu me lembro que quando tomei posse da Presid�ncia pela primeira vez, h� muitos anos, eu fiz um discurso em que dizia: o Brasil n�o � um pa�s pobre, o Brasil � um pa�s injusto. � verdade, � uma das dez maiores economias do mundo. Por que tem tanto pobre?
E desigualdade n�o � uma coisa que se resolva do dia para a noite. S� se fizer uma revolu��o e ainda assim leva anos, e o pre�o � a liberdade geral, n�o vale a pena. Enfim, aqui tem que tomar medidas cont�nuas. A quest�o agr�ria, por exemplo. Eu apoiei o que pude. A reforma agr�ria v�rios governos tinham come�ado, eu continuei, depois foi continuado.
Mas essas quest�es de senso comum n�o aparecem no dia a dia como senso comum. As pessoas ficam cegas pelo seu interesse, sem ver o futuro. Eu espero que pelo menos a gente saia desta crise com essa li��o. Qual seja: de que � preciso ter pol�ticas mais igualit�rias que levam tempo, mas � preciso que sejam tomadas, � preciso que exista um esfor�o nesse sentido. A pandemia � um fato natural. N�o creio nessa coisa de que puseram, n�o, n�o. Acontece. J� houve v�rias. A gripe espanhola, de que meus pais falavam muito, matou muita gente. Ent�o n�o � esperar que aconte�a a pandemia para depois sair correndo e dizer: ah, n�o tem nem m�scara. Tem que fazer m�scara improvisada, n�o tem respirador.
Durante a �poca de bonan�a tem que pensar que ela n�o vai ser para sempre. Como n�o vai ser para sempre esse mau momento em que n�s estamos. Mas � preciso no come�o do bom momento entender que poder� haver um mau momento de novo. E que, �s vezes, como esse, � pand�mico, ou seja, pegou o mundo inteiro.
� preciso que haja no futuro condi��es sanit�rias, �gua, �gua encanada, esgoto. Essas quest�es que s�o dif�ceis, s�o caras, mas � preciso que haja. E habita��o. Tudo isso � caro. Voc� n�o vai ter nada disso se n�o tiver crescimento da economia, eu sei disso. Tem que haver investimento, tem que haver crescimento. Mas tem que haver ao mesmo tempo uma preocupa��o, que tem que vir n�o s� do governo, mas da sociedade, no sentido da solidariedade. Mesmo que voc� seja ego�sta, eu acho que n�o deve ser, mas se for ego�sta, pense que no futuro esse ego�smo custa caro. Depois ele vai cobrar o pre�o.
BBC News Brasil - Falando com economistas nos �ltimos dez anos e - concordo com o senhor que a gente avan�ou muito nas �ltimas d�cadas - mas os debates nos �ltimos anos estavam todos muito voltados para um outro problema grav�ssimo, que � o das contas p�blicas. Mas agora nessa emerg�ncia est�o se discutindo at� propostas que antes n�o protagonizavam o debate econ�mico, como renda b�sica universal, tributa��o de fortunas. Deveria ter se invertido a prioridade das coisas?
FHC - Eu acho que � poss�vel. N�o h� d�vida nenhuma. Crescemos, mas esquecemos a maioria das pessoas, parte importante das pessoas. E, portanto, � preciso prestar aten��o no que eu mencionei, de sa�de p�blica, habita��o, emprego, essa coisa toda. Mas voc� sabe como � o ser humano. Ele tem mem�ria, mas esquece. Ent�o � preciso evitar que haja esquecimento. Porque daqui a pouco quando come�a de novo a haver crescimento e as pessoas passam de novo a pensar de maneira desabrida sobre o interesse pr�prio. E os governos, quando existem e se justificam, � porque eles t�m que estar o tempo todo chamando a aten��o para o que � o bem comum.
Para a pol�tica p�blica, como dar acesso a escolaridade, como melhorar o n�vel da educa��o. Tem muita gente que n�o tem acesso. Nosso problema de desigualdade educacional � grande tamb�m. Eu espero que se possa pelo menos ter uma no��o mais n�tida do que � interesse p�blico. E vamos falar o portugu�s claro. � preciso que a gente transforme em ato o que hoje s�o palavras. Boa inten��o � muito bom, mas tem que ser ato.
E do jeito que as coisas v�o na nossa pol�tica, houve um fragiliza��o enorme da capacidade de discutir os temas relevantes do pa�s. Passou a haver uma preocupa��o simplesmente com o 'eu vou ganhar, eu vou ser nomeado, eu vou nomear meus parentes, meus amigos'. Cresce o Estado, incha o Estado e voc� n�o enfrenta os problemas.
Como � que funciona a vida pol�tica de um pa�s como o Brasil? Ela funciona n�o � pelos partidos. O presidente pensa �s vezes que os partidos � que t�m a capacidade. At� certo ponto. Porque na verdade as corpora��es se organizam e os temas se organizam em frentes. Frentes da sa�de p�blica, frente da terra. E houve uma fragmenta��o muito grande dos interesses pol�ticos. Hoje algu�m se identificar com o nome de um partido n�o diz nada, aquele partido tem v�rias correntes.

E a popula��o olha todos os pol�ticos como se fossem maus. H� uma separa��o entre o povo e a pol�tica. Isso � ruim, porque tamb�m sem pol�tica n�o se faz nada. Tem que ter capacidade de orientar a popula��o. Se fala muito em populismo. Hoje em dia, populismo � o poder unipessoal, e que na verdade, como n�o tem defini��o clara, acaba quem tendo poder sendo levado pelos interesses cegos, que s�o os do mercado, que s�o as classes dominantes, que t�m mais capacidade de saberem o que desejam, v�o e imprimem sua marca a�. Ser� que � isso que n�s queremos no futuro?
Eu pelo menos preferia que n�o fosse assim. � bom que tenha mercado. Mas essa oposi��o que foi criada, e aqui � forte, entre ter equil�brio entre Estado porque tem que dar mais espa�o para o mercado, n�o � mais espa�o para o mercado e nem diminuir o Estado. � o Estado mais competente, n�o � maior nem menor. E o mercado mais regulado. Porque quando chega na hora da on�a beber �gua, como agora, todo mundo vira intervencionista. Todo mundo pede apoio de quem? Do governo. Banco Central.
BBC News Brasil - Vira keynesiano [Em refer�ncia a John Maynard Keynes, economista associado a uma corrente te�rica que defende o est�mulo do Estado � economia].
FHC - Vira keynesiano. Somos todos keynesianos nesse momento. Ent�o � preciso que haja um certo equil�brio. Mas qual � o partido que tem um pensamento consistente sobre essas quest�es fora do per�odo de crise, como agora? N�o tem, todo mundo vai querer s� o poder pelo poder. Eu sei que o poder � fascinante, em toda parte do mundo � assim. Mas � preciso que haja al�m de voca��o pelo poder, de servir tamb�m, tem que servir alguma coisa. E isso � que faz diferen�a entre algu�m que tem no��o de Estado e de pa�s, e algu�m que � um reles pol�tico. Mas se falar francamente eu acho que o maior problema que n�s temos hoje na pol�tica � que o nosso presidente � um uomo qualunque, um homem simples, simpl�rio. N�o � que ele seja mau, n�o o conhe�o, n�o acho que queira o mal, ele n�o sabe o que � o bem e o que � o mal do ponto de vista pol�tico. Ent�o ele vai erraticamente e isso tem consequ�ncias. Todo dia a gente tem uma trombada nova.
BBC News Brasil - E na pandemia essa falta de rumo fica mais clara?
FHC - Acho que sim, voc� mudou o ministro da sa�de agora. Mudou o ministro da Justi�a. O presidente est� at�nito. Eu entendo que � dif�cil o momento. Eu estive l�, sei que � dif�cil, eu n�o gosto de falar levianamente sobre essas quest�es porque sei que s�o dif�ceis. Mas quando o presidente perde o rumo, o pa�s todo fica at�nito. Isso aqui � presidencialismo, o presidente tem que ter modera��o no exerc�cio do poder. Ele tem que entender que as adversidades s�o muitas e t�m que ser respeitadas. H� conflitos reais de interesse, h� divis�es das pessoas. � preciso que o presidente diga, olha, vamos juntos. Se voc� n�o vai junto, n�o vai.
Se fosse uma ditadura, voc� n�o precisa ir junto, voc� imp�e. Mas aqui n�o adianta o fuzil, tem que ter a palavra. A B�blia diz o come�o era o Verbo. O come�o tem que ser o Verbo, o tempo todo. Quando o presidente que simboliza esse verbo n�o � capaz de dizer coisas convincentes ao pa�s, o pa�s vai mal. O problema n�mero um � a pandemia. Mas logo em seguida vem a renda, o emprego, o trabalho. sen�o voc� n�o sai desse neg�cio. E no meio tem a pol�tica. Se al�m de tudo, tem crise pol�tica, voc� vai sair aos trancos e barrancos. Eu espero que n�o, eu espero que haja uma certa condu��o do processo.
BBC News Brasil - O senhor que j� esteve l� acha que essa figura, esse papel at� psicol�gico, de ter uma mensagem �nica, faz diferen�a para que haja mais ou menos v�timas na pandemia? � importante a figura de um l�der nesse tipo de situa��o?
FHC - Eu acho, acho at� uma coisa curiosa. Porque a sociedade moderna � uma sociedade em que as pessoas t�m peso, a internet d� peso �s pessoas. V�o para a rua, se manifestam. � quando mais se precisa de lideran�a. Porque se voc� tem a sociedade mais estruturada, partidos, Estado, Igreja, que controla o comportamento, essas institui��es t�m l� sua tradi��o. Quando elas perdem essa vig�ncia e as pessoas, cada um �, na palavra da moda, empoderado, ganha poder, � quando mais � necess�rio que algu�m diga �, t� bem. Voc� tem um poderzinho, mas o caminho � comum, vamos juntos. Precisa de lideran�a. E isso n�o � que voc� nas�a com lideran�a, ningu�m nasce com lideran�a. A situa��o cria. No caso do Brasil, eu acho que a minha gera��o tem que entender que j� era, tem que dar para a nova gera��o. Mas novo n�o quer dizer que seja bom, tem que ser novo e bom, porque tamb�m pode ser velho e bom, e velho e ruim. Tem compreens�o, e tem capacidade de absorver o que est� no ar e transformar aquilo em apoio. Sem isso n�o se vai adiante.
Vou te dizer uma coisa que � aberrante. Conheci o Putin. O [Vladmir] Putin � um homem de a��o. Voc� pode concordar ou discordar, mas ele simboliza um certo comportamento. Uma pessoa que eu tamb�m n�o gosto, o [Donald] Trump. "America first". Isso � complicado. Eu entendo do ponto de vista de Am�rica, mas diminuir a capacidade que t�m os Estados Unidos de exercer poder no mundo. Porque os chineses n�o v�o dizer 'China first', eles v�o dizer que s�o bonzinhos, que v�o ajudar. Est�o ajudando, est�o ocupando o vazio deixado pela lideran�a arrogante dos Estados Unidos.
Ningu�m vai sair da confus�o dessa pandemia atual isoladamente. Eu vejo com preocupa��o atacar a Organiza��o Mundial de Sa�de. Eu sei que tem defeitos, mas e sem ela? � pior. Por sorte a �frica n�o foi muito atingida por essa pandemia. Ainda, tomara que nunca. Porque a pobreza � grande l�. Ent�o vai precisar do qu�. De apoio! Os pa�ses v�o sair muito arrebentados da crise. Voc� me disse uma coisa que � verdadeira. O or�amento vai ser deficit�rio, vai ter que gastar.
Gastar o que n�o tem. As gera��es futuras v�o pagar isso, todos v�o precisar entender isso. N�s vamos precisar tamb�m, n�s aqui do Brasil, de apoio. N�o j�, mas daqui a pouco. Apoio do Fundo Monet�rio Internacional, apoio do Banco Mundial, apoio dos governos mais poderosos da Europa e dos Estados Unidos, da China. Ent�o tem que se criar um ambiente para isso. O mundo, infelizmente, est� em um momento de acirramento tamb�m. N�o � s� no Brasil, � no mundo. Ent�o eu vejo muitas dificuldades para os pr�ximos anos. Quando eu digo muitas dificuldades, eu nunca deixei de ser otimista. Dificuldade tem, tem que superar, mas tem que falar. Tem que juntar for�as, tem que ver quem � que se disp�e a entender que sozinho n�o d�. Mesmo que seja um pa�s muito poderoso, sejam os Estados Unidos, ou seja a China, ou a Alemanha. N�o vai sozinho.
BBC News Brasil - Presidente, mas tirando as cr�ticas � condu��o do presidente Bolsonaro na pandemia, o senhor v� outras lideran�as nascendo, fora da sua gera��o? Quem vai reconstruir o Brasil, lideran�as pol�ticas, empresariais...?
FHC - Empresariais pode ser, � preciso que elas existam tamb�m. E nesse momento eles t�m que come�ar a se posicionar tamb�m.
BBC News Brasil - Estou pensando em quem vai liderar a reconstru��o.
FHC - Eu acho que precisa de lideran�a pol�tica. Eu acho que existem. Deixa eu dar alguns exemplos. Voc� tem o governador do Rio Grande do Sul (Eduardo Leite - PSDB), que � um rapaz jovem e parece que a coisa funciona. O governador de S�o Paulo (Jo�o Doria - PSDB), que � ativo, n�o � s� fala��o. Tem v�rios governadores do PT no Nordeste que me parecem que s�o ativos tamb�m. O presidente da C�mara, o Rodrigo (Maia), tem mostrado capacidade tamb�m. Tem gente nova surgindo nesses movimentos que n�o s�o dentro dos partidos, o Luciano Huck representa alguns movimentos desses. Enfim, voc� v� que existem possibilidades de que novos l�deres surjam. Quem vai decidir quem � realmente capaz depois da crise, n�o sou eu. Eu vou apoiar quem eu sentir que � capaz, mas ele vai ter que mostra que � capaz. Mostrar desde j�, agir, n�o basta falar. Tem gente que tem a manivela na m�o, � mais f�cil. Tem uns que n�o t�m manivela mas t�m capacidade de agrupar.
Outro tema que eu acho que � delicado, mas que eu gosto de falar sobre ele porque � importante, � o seguinte. Houve uma mudan�a grande na concep��o de democracia no Brasil. Por um lado esse sistema que n�s fomos montando n�o foi planejado, eu era membro da Constituinte. N�o houve a decis�o de fazer uma presid�ncia de coaliz�o, ele foi sendo feito porque era necess�rio, porque precisa de uma maioria no Congresso. Continua precisando, mas como n�o tem partido se juntam partidos. Houve algum avan�o.
Servi�o p�blico melhorou no Brasil, n�o piorou. E as For�as Armadas tamb�m. Em 1964, a esta altura, n�s j� estar�amos com medo de golpe militar.
BBC News Brasil - O senhor est� com medo?
FHC - N�o. Eu n�o acho que venha da�, eles compreenderam a necessidade da Constitui��o, a defesa da Constitui��o. Eu acho que hoje a reconstru��o tem que partir de aceitar a Constitui��o. E, portanto, que h� v�rios poderes, mas a conviv�ncia tem que ser, o tanto quanto poss�vel, harm�nica. E quem decide � o povo, que elege. � por isso que eu acho que o presidente atual foi eleito. Eu n�o votei nele, mas ele foi eleito, ele tem legitimidade. Quanto mais for poss�vel preservar essa legitimidade, melhor. Qualquer processo que seja violento de impeachment, deixa marcas.
BBC News Brasil - O senhor v� risco de impeachment agora?
FHC - N�o.
BBC News Brasil - Por qu�?
FHC - Porque eu acho que o governo n�o parou de governar, a despeito de tudo. E porque n�o h� press�o militar, que eu saiba, e cad� a oposi��o no Brasil? N�o se v�. Vou repetir o que disse h� pouco. O presidente est� escorregando nele mesmo. Quem cria dificuldade n�o s�o os partidos, n�o s�o os militares. � ele mesmo. N�o � quest�o de ser conservador, ser de direita. N�o, � n�o ver a realidade. V� inimigos que n�o existem, fantasmag�ricos. A� n�o consegue, fica mal. Mas foi eleito.
Eu respeito ter sido eleito, acho que seria acrescentar um problema voc� criar agora um processo de impeachment. N�o acho que seja o melhor caminho para o Brasil. Acho que a gente tem que aprender com a li��o do passado, reconstruir as for�as, apostar nas novas lideran�as que ser�o capazes, espero, de ter uma vis�o mais equilibrada do jogo do poder. Que entendam que tem que se respeitar a diversidade e tem que dar rumo. Tem que dar rumo.
Por exemplo, o ministro da Fazenda, que eu n�o conhe�o e nem gosto do estilo, para ser franco. Fala muito e � muito "Chicago Boy", ortodoxo. Aquela vis�o fiscalista, n�o � a minha. Mas eu acho que � preciso haver equil�brio fiscal. Esse ministro, pelo menos, tem rumo. Ele n�o vai conseguir porque vai bater na realidade, a realidade vai dificultar. Mas tinha um rumo. Eu espero que as novas gera��es reconstituam. N�o adianta ficar pensando no que foi. J� era. Tem que ver daqui para frente o que � que n�s vamos fazer. E olhar qual � o interesse do pa�s, do Estado brasileiro, e do povo.
BBC News Brasil - O senhor acha que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff deixou a nossa democracia mais fraca?
FHC - Veja. Todos impeachments deixam marcas que s�o negativas. Tem momentos que n�o t�m jeito. Quando o governo para, voc�...
BBC News Brasil - O da presidente Dilma o senhor foi favor�vel, na �poca, n�?

FHC - Fui no final. Eu custei bastante a apoiar. Porque ela parou. Quando perde a for�a e a capacidade de governar, incide em uma coisa legal, mas principalmente perde a capacidade de governar e tem povo contra. Agora, na pandemia, n�o tem povo na rua, o povo tem medo da pandemia. O governo, bem ou mal, est� governando. O impeachment, agora, seria uma constru��o pol�tica s�, n�o tem uma demanda social. Ter um impeachment sem demanda social eu acho que � negativo. Para qu�? Pode acontecer. Pode ser que o presidente fa�a tantas coisas equivocadas que leve a popula��o a quer�-lo. Ele tem uma certa base de apoio e consegue governar, acabou de apoiar a reforma. Eu n�o acho que seja conveniente para o pa�s voc� insistir. Pedido de impeachment tem sempre, o PT pedia meu impeachment o tempo todo. Nunca tive preocupa��o com impeachment, governei oito anos. Um pouco mais, porque no tempo do Itamar eu tinha muita for�a. Eu n�o tinha essa preocupa��o porque eu tinha apoios. O presidente come�a a se preocupar quando perde os apoios. � preocupante a perda de apoio. As pesquisas de opini�o a gente tem que olhar com aten��o, come�am a mostrar uma certa eros�o do prest�gio popular do presidente, e ele ent�o fica com o apoio daqueles que lhe s�o pr�ximos. Isso � ruim para a democracia, porque sempre ter� apoio dos que lhes s�o pr�ximos, mas isso n�o � suficiente para, na democracia, ser convincente. Mas eu n�o acho que seja �til para o Brasil ir por esse caminho. Voc� diz que a nossa democracia � jovem, at� certo ponto. O parlamento brasileiro � um dos mais antigos do mundo. Se voc� contar os anos em que o parlamento esteve fechado no Brasil desde o Imp�rio, n�o foram tantos.
O que est� acontecendo agora, tem uns autores a� chamando aten��o para isso, � que as democracias v�o se erodindo internamente. N�o � golpe militar. Elas v�o perdendo condi��es de ser democr�ticas. Vai se passando progressivamente a um sistema mais autorit�rio, precisa impedir isso.
BBC News Brasil - O senhor acha que est� acontecendo isso com o Brasil?
FHC - Pode acontecer. Por enquanto n�o, mas pode acontecer. Por enquanto tem muita liberdade de imprensa, partidos dizem o que querem. Mas pode, no mundo moderno, a forma pela qual os governos saem da democracia n�o � mais pelo golpe. Ou n�o � s� pelo golpe. Pode sair da democracia progressivamente. Veja o que aconteceu na pr�pria Venezuela, que eu conheci razoavelmente e at� ajudei, em certa altura o Ch�vez. Progressivamente foi mudando. Fechou o Congresso? N�o fechou o Congresso. Mas vai tomando medidas de tal natureza que vai restringindo a liberdade. E sempre quem est� no poder encontra alguns que aderem. Hitler n�o tinha ades�o? Teve muita.
Eu n�o creio que nesse momento exista cerceamento de liberdade porque a imprensa est� muito, a m�dia, e � muito importante que a m�dia mantenha a sua liberdade. Quando a m�dia perde a liberdade, n�s todos perdemos a liberdade. Ent�o � importante que a m�dia no Brasil mantenha o facho aceso. Eu nunca fiz nada para coibir. Nunca peguei um telefone para dizer para um dono de empresa que n�o pode. Ou para um jornalista. Ou para deixar de receber um jornalista. Inventaram uma coisa chamada Dossi� Cayman, que era uma roubalheira que teria eu, tr�s ou quatro ministros, um dinheir�o que n�s t�nhamos nas ilhas Cayman. Levaram anos, meses. At� que um dia eu liguei para um dono de jornal que era meu amigo e disse eu n�o aguento mais, isso � mentira, n�o tem nada. Eu sei que �s vezes a imprensa irrita. Mas voc� n�o pode, sendo presidente, transformar sua irrita��o em palavra. E muito menos em a��o. Voc� n�o pode transformar aquilo que � a sua irrita��o em uma atitude cont�nua de conten��o da m�dia.
BBC News Brasil - Isso est� acontecendo mais, n�? Agrediram, por exemplo, os colegas jornalistas do Estad�o.
FHC - Isso � ruim. Isso � ruim e acho que o gesto presidencial � grave. Qualquer gesto do presidente � grave, ent�o o presidente tem que se autoconter. Tem que evitar que no Brasil haja perda de controle da democracia. N�o � que esteja em uma situa��o n�o democr�tica, se estivesse eu n�o estava nem falando o que eu estou falando, sei bem como � isso. Estava ou preso no ou ex�lio, ou morto. Voc� percebe que n�o � s� no Brasil. No mundo todo existe a tend�ncia de uma eros�o da democracia, eros�o interna dos valores que sustentam a democracia. A liberdade, respeito � opini�o, o Supremo Tribunal que tem a �ltima palavra, o respeito m�tuo. � medida que as pessoas v�o sentindo a falta de comando elas v�o querendo comandar. N�o � vazio de poder. Mesmo pela fal�ncia de condu��o do Executivo pode acontecer que o Supremo Tribunal ou o Congresso se excedam nos seus limites. � preciso tomar cuidado o tempo todo. Mesmo que voc� ache que eles fizeram bem porque fizeram uma coisa com a qual eu concordo. Mas tem que olhar o jogo do poder.
BBC News Brasil - O senhor acha que isso j� tem acontecido, algu�m se excedendo?
FHC - N�o, eu n�o posso dizer que tem acontecido porque os contrapoderes est�o soltos. Mesmo que um possa come�ar, o outro vem l� e recupera. N�o acho que estamos na v�spera de um... n�o, n�o. Tem um antigo l�der, Ot�vio Mangabeira, que dizia o seguinte. A democracia � uma planta tenra, que tem que ser regada com �gua todos os dias. � isso. O pior � calar. Tem que, com jeito, externar seu ponto de vista.
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