O presidente Jair Bolsonaro � conhecido uma s�rie de falas pol�micas e controversas, admiradas por parte de seu eleitorado, que v� nelas um sinal de autenticidade.
Algumas dessas declara��es do presidente, no entanto, marcaram bastante a trajet�ria de Bolsonaro durante a campanha eleitoral � reelei��o: desde o uso da express�o "pintou um clima", em que o presidente referia-se � intera��o com adolescentes venezuelanas, at� a frase "n�o sou coveiro" ou a imita��o de pacientes com falta de ar por causa da covid-19, em lives realizadas pelo presidente no auge da pandemia.
Mas como essas falas impactaram o eleitorado em geral?
A BBC News Brasil consultou pesquisadores que se dedicaram a destrinchar a vis�o pol�tica de eleitores de Bolsonaro em 2018, e a avalia��o acad�mica v� dois tipos de impacto: uma parcela do eleitorado se manteve fiel e encontrou formas de racionalizar ou justificar as frases do presidente, mesmo sem necessariamente concordar com elas.

E uma outra parcela de eleitores para quem as frases contribu�ram para uma sensa��o de arrependimento do voto no presidente - embora isso n�o tenha se revertido, no primeiro turno, em ampla migra��o de votos para o principal advers�rio, Luiz In�cio Lula da Silva, que tamb�m enfrentava uma rejei��o alta.
Neste domingo (30/10), Luiz In�cio Lula da Silva (PT) foi eleito presidente do Brasil, com 50,83% dos votos v�lidos.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) teve 49,17%. Os votos nulos somavam 3,16% e os brancos, 1,43%. O TSE confirmou a vit�ria de Lula com 98,86% das urnas apuradas.
Falas relacionadas � pandemia
O Instituto de Estudos Sociais e Pol�ticos (Iesp) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) tem coproduzido desde o ano passado alguns estudos qualitativos observando as conversas de eleitores de diferentes perfis, cidades, classes sociais e faixas et�rias.
Para os estudos, os acad�micos registram em detalhe opini�es e argumentos usados por grupos variados. Algumas falas foram mencionadas espontaneamente pelos participantes durante as conversas - por exemplo, as men��es � covid-19 como "gripezinha", as falas "n�o sou coveiro", ditas por Bolsonaro em mais de uma ocasi�o quando questionado por jornalistas a respeito dos mortos por covid-19, ou quando, no in�cio da pandemia, ele afirmou, questionando os poss�veis efeitos colaterais das vacinas contra o coronav�rus, "que se voc� virar jacar� (ao tomar a vacina), problema seu".
Podem ser inclu�dos nesse conjunto de pol�micas, tamb�m, os momentos em que Bolsonaro imitou pacientes de covid-19 com falta de ar - ele fez isso em duas lives, em 18 de mar�o de 2021 e em 6 de maio de 2021.
Na primeira dessas lives, ele fez uma defesa de medicamentos como a cloroquina, que j� teve sua inefic�cia comprovada contra a covid-19 - sem mencionar a droga diretamente - e acrescentou: "Quem � contra, sem problemas, tu come�a a sentir um neg�cio l�, tu segue a receita do ministro Mandetta (em refer�ncia ao ex-ministro da Sa�de Luiz Henrique Mandetta), voc� vai pra casa. Quando voc� tiver l� (imita pessoa ofegante), da� voc� vai pro hospital".

Carolina de Paula, doutora em Ci�ncia Pol�tica e diretora-executiva do DataIESP, explica a metodologia da pesquisa. "Entrevistamos pessoas que votaram em Bolsonaro e se arrependeram do voto em pesquisa qualitativa justamente para testar essas coisas, o que levou (a um poss�vel arrependimento) e quais falas espec�ficas. E a gente percebeu que o mais grave mesmo, a gota d'�gua para esse grupo de eleitores arrependidos, foram as falas relacionadas � pandemia".
Ainda antes do primeiro turno, Bolsonaro afirmou ao podcast Collab ter se arrependido de ter dito "n�o sou coveiro". "Dei uma aloprada, aloprei, perdi a linha. A� eu me arrependo. Eu sou ser humano tamb�m, lamento o que falei. N�o falaria de novo. Pode ver que de um ano para c� o meu comportamento mudou", afirmou em 12 de setembro. Em sabatina no Jornal Nacional, em agosto, ele tamb�m afirmou que a fala do jacar� foi apenas uma "figura de linguagem".
Mas tais frases relacionadas � pandemia tiveram grande impacto porque foram acompanhadas de a��es concretas de desrespeito �s medidas sanit�rias, na vis�o de Camila Rocha, cientista pol�tica, pesquisadora da nova direita no Brasil e autora de Menos Marx, Mais Mises - O liberalismo e a nova direita no Brasil (ed Todavia).
"N�o � que ele (Bolsonaro) s� falou uma coisa absurda ou odiosa, ele de fato agiu de acordo com o que ele estava falando. E n�o eram uma ou duas frases, foi realmente uma sequ�ncia de comportamentos dele - ele falava e agia", diz Rocha � BBC News Brasil.
"Por exemplo, 'm�scara � coisa de viado' (frase atribu�da a Bolsonaro em conversas com auxiliares em 2020) - ele mesmo n�o usou (m�scara) em v�rios momentos. Ou por exemplo, algo que chocou particularmente as pessoas foi uma fotografia dele tirando a m�scara de uma crian�a (em evento no Rio Grande do Norte em julho de 2021). Acho que mostra uma atitude mesmo", agrega.
Nas pesquisas qualitativas observadas pelo Iesp, essas declara��es impactaram parcela do seu eleitorado de 2018, mais at� do que falas pol�micas sobre outros temas - por exemplo, de ter alegado ter acabado com a corrup��o no Brasil ou mesmo as acusa��es sem provas contra a lisura das elei��es e das urnas eletr�nicas.
"As falas de corrup��o n�o repercutem (tanto) - � claro, algumas pessoas se incomodam, mas elas n�o s�o t�o decisivas assim", afirma Carolina de Paula.
"Mesmo as falas contra as institui��es, contra o STF, n�o foram definitivas como as falas da 'gripezinha', 'que n�o � coveiro', e as 'falas anti-vacina'", ela agrega.
"Eu n�o consigo mensurar estatisticamente 'esta fala teve um impacto x', mas o que a gente percebe � que (o impacto negativo) vem das falas relacionadas muito ao in�cio da pandemia, e tamb�m em momentos mais avan�ados, como no caso da vacina, quando as pessoas estavam aguardando (a vacina��o) como estava acontecendo em outros pa�ses. A fala que 'vai virar jacar�' tamb�m aparece muito nas pesquisas, e de modo muito espont�neo, de pessoas que votaram nele e se arrependeram."
Mas a pesquisadora ressalta que a insatisfa��o dessa parcela do eleitorado n�o vem exclusivamente das declara��es p�blicas do presidente. Esse grupo de insatisfeitos, diz De Paula, "j� vinha num crescente de insatisfa��o" com a condu��o do pa�s na pandemia ou com a crise econ�mica, por exemplo.
"N�o quer dizer que 'ah, agora que ele falou isso parei de apoiar ele'. Mas digamos que foi a gota d'�gua para pessoas que j� viam o governo como distante da popula��o."

'Efeito teflon' no eleitorado fiel
Ao mesmo tempo, � importante destacar que o amplo eleitorado fiel mantido por Bolsonaro, ao longo do seu mandato e durante esta campanha eleitoral, n�o se abala por frases pol�micas da mesma forma que outros grupos de eleitores.
Camila Rocha explica esse fen�meno detalhando como eleitores participantes das suas pesquisas reagiram a v�deos que repercutiram na reta final da campanha, como um v�deo antigo, de data incerta, em que Bolsonaro (ainda se declarando deputado) aparece em um evento de ma�onaria, ou a entrevista de 2016 dada ao The New York Times em que o presidente diz que quase comeu carne ind�gena durante uma visita a uma tribo em Surucucu (Roraima).
"O que mais chocou as pessoas foi o v�deo da carne humana. Acho que certamente essa frase do 'pintou um clima', se referindo �s adolescentes venezuelanas, tamb�m causaria mal-estar entre as pessoas. (...) Mas, ao mesmo tempo, o que acontece � que pessoas que j� est�o mais inclinadas a votar no Bolsonaro, o que elas fazem � racionalizar: 'de fato ele fala bobagem mesmo, e foi um deslize' ou 'estava fora de contexto', ou ent�o 'ele falou, mas isso n�o quer dizer que ele fez algo de fato ali, que ele � ped�filo'", diz Rocha.
Carolina de Paula observou algo semelhante nas suas pesquisas.
"Com os eleitores que s�o apoiadores mais fi�is, a gente fala que existe um efeito teflon - qualquer coisa que ele (Bolsonaro) fala n�o repercute nas pessoas. Agora, para o p�blico moderado, que votou no Bolsonaro esperando uma mudan�a e focado na ideia de renova��o, aquele sentimento de decep��o com a pol�tica que a gente viu em 2018, n�o era um p�blico, digamos, 100% conservador, mas que queria uma mudan�a no pa�s - esse p�blico sim ficou muito incomodado com essas falas."
Mas ser� que esse inc�modo foi suficiente para mudar votos? Para Camila Rocha, a alta vota��o de Bolsonaro no primeiro turno, acima do que indicavam as pesquisas de opini�o, indica que n�o houve uma grande migra��o de votos de arrependidos.
No primeiro turno das elei��es, Lula teve 57.256.053 votos, ou 48,43% dos votos v�lidos (quando s�o descontados os brancos e nulos), enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) recebeu 51.070.958 votos, ou 43,20%. J� no segundo turno, Bolsonaro (PL) teve 49,17%. Os votos nulos somavam 3,16% e os brancos, 1,43%. O TSE confirmou a vit�ria de Lula com 98,86% das urnas apuradas.
Possivelmente porque esse grupo que n�o abandonou o presidente ainda � fortemente mobilizado pelo sentimento antipetista e se viu sem op��es diante de candidaturas que n�o decolaram na chamada terceira via.
"Claro que teve uma parcela que foi para o Lula: o eleitorado que era menos comprometido com os valores que ele defende, que votou em 2018 pelo Bolsonaro mais porque esperava uma mudan�a, com o desgaste do PT - esse eleitorado mais distante do Bolsonaro foi para o Lula", avalia Rocha.
"Mas uma boa parte ficou esperando uma alternativa que n�o vinha, e tamb�m n�o queria votar mais no PT. As pessoas falavam isso j� dois anos atr�s: 'se n�o tiver uma alternativa ao Bolsonaro, vou ter que acabar votando nele de novo, mesmo sabendo que n�o � o que eu gostaria'. Inclusive, recentemente a gente fez algumas entrevistas com o eleitorado evang�lico, e achei interessante que as pessoas falaram: 'eu nem acho Bolsonaro crist�o, mas n�o � com isso que estou preocupado, e vou votar nele mesmo assim'."
Ao mesmo tempo, Camila Rocha observa um cansa�o do eleitorado com a exposi��o a esse lado mais agressivo da pol�tica, o que impacta tamb�m a repercuss�o de falas pol�micas.
"Uma coisa importante, que a gente vem ouvindo h� alguns anos, � que as pessoas t�m uma fadiga muito grande da disputa com base nesse tipo de agress�o, de exposi��o do comportamento do outro, uma coisa vista como mais violenta mesmo - pol�tica do f�gado, sabe? Isso afasta muito as pessoas."
Na vis�o dela, o efeito principal disso n�o � a migra��o de votos, mas sim o distanciamento do eleitor comum.
"As pessoas falam 'eu n�o quero fazer parte disso, chega, n�o aguento mais'. Acho que tem um grupo de pessoas para quem, de fato, frases do tipo 'pintou um clima' ou 'comer carne humana' fazem um efeito, no sentido de fazer com que essa pessoa n�o vote no Bolsonaro. Agora se ela vota no Lula, s�o outros quinhentos. Essas coisas mais afastaram o voto do Bolsonaro do que as jogaram necessariamente para votar no Lula", avalia a cientista pol�tica.

N�o � toa, diz Camila Rocha, pouco depois de a frase "pintou um clima" ter viralizado, Bolsonaro tentou humanizar sua imagem ao fazer uma live para justificar seu coment�rio sobre as adolescentes venezuelanas e depois pedir desculpas, em um v�deo ao lado da mulher Michelle Bolsonaro e de uma representante venezuelana no Brasil.
"Se as minhas palavras, que, por m�-f�, foram tiradas de contexto e que, de alguma forma foram mal entendidas ou provocaram algum constrangimento �s nossas irm�s venezuelanas, pe�o desculpas", ele afirmou.
"Isso � uma coisa in�dita, e foi uma estrat�gia, sim, de humanizar a figura dele porque quem faz o marketing percebeu que tem um impacto importante no sentido de afastar as pessoas do voto no Bolsonaro", diz Rocha. Ao se humanizar, Bolsonaro d� margem, na avalia��o da pesquisadora, � racionaliza��o do eleitor: "(alcan�a) algu�m que at� gostaria de votar no Bolsonaro, a� viu o 'pintou um clima', ficou assustado, mas ent�o pode falar 'tudo bem, ele pediu desculpa, ou fez algo a respeito'."
Impacto maior sobre mulheres e jovens
De qualquer modo, as duas especialistas consultadas pela BBC News Brasil acham que o grupo mais impactado negativamente pelas frases pol�micas do presidente � o eleitorado feminino. Segundo as pesquisas de opini�o, esse foi um dos p�blicos que Bolsonaro teve dificuldade em conquistar ao longo da campanha.
"O p�blico das mulheres foi justamente o mais afetado no auge da pandemia - as que mais reclamavam dessa atitude dele de desprezar o risco que a pandemia apresentava. E era muito latente a diferen�a entre homens e mulheres", diz Camila Rocha.
"Por um lado, as mulheres falavam, 'olha como ele � desumano, como ele despreza a vida e os riscos'. E os homens eram o oposto: '� isso mesmo, tem que ser macho para enfrentar a pandemia, tem que fazer que nem ele (Bolsonaro), sair para trabalhar e ganhar o nosso p�o'. Tem uma coisa associada � masculinidade", ela prossegue.
Em uma pesquisa qualitativa feita com mulheres pelo Datafolha e noticiada pela Folha de S. Paulo, a gest�o do pa�s durante a covid foi um dos temas mais citados pelas entrevistadas.
"O eleitor feminino tem esse cuidado maior de prote��o com sua fam�lia, e as pesquisas quantitativas mostravam que as mulheres eram as que mais tinham medo da pandemia. Ent�o acredito que tenha tido uma influ�ncia maior (no p�blico feminino), sim, esse espanto maior de ele (Bolsonaro) falar coisas num momento em que as pessoas estavam sentindo tanto medo e ansiedade", avalia Carolina de Paula.
Nas pesquisas de Camila Rocha, a popula��o mais jovem tamb�m tendeu a se sensibilizar mais com frases pol�micas do que os eleitores mais velhos.
"Mesmo jovens que n�o disseram que iam votar no Lula ou mesmo que nem s�o necessariamente progressistas falaram 'o Bolsonaro � machista, � homof�bico, fala coisas odiosas', e isso meio que afasta os jovens do voto nele. Os jovens s�o muito mais sens�veis a quest�es relacionadas a mulheres, negros, LGBT", conclui.
E quanto �s falas relacionadas ao chamado "tratamento precoce" - medicamentos que incluem a hidroxicloroquina e que estudos cient�ficos j� demonstraram n�o ter efeito no tratamento contra a covid? As pesquisas de Carolina de Paula mostram que o impacto sobre o eleitor n�o � t�o significativo.
"At� nos grupos (de eleitores) mais moderados, muita gente tomou, por entender que esses rem�dios eram contra uma doen�a que ningu�m sabia exatamente como se tratar. Era mais uma tentativa de dar certo. Ent�o (o tema) n�o tem o mesmo efeito que essas outras falas. (...) Foi algo mais generalizado, n�o t�o focado no que o presidente falou", avalia De Paula.