Santa Maria (RS) – “Estamos todos mortos tamb�m.” A frase foi dita por uma enfermeira de 32 anos na entrada do Cemit�rio Ecum�nico de Santa Maria. � o resumo da cidade que chora baixinho pelos cantos desde a madrugada de domingo, quando um inc�ndio provocou a morte de 231 pessoas na Rua dos Andradas, n�mero 1.925, o endere�o do absurdo. Uma m�e sozinha no meio da rua repete in�meras vezes o nome do filho. D�i ouvir. � como se uma cidade inteira tivesse morrido junto, como se nada mais fizesse o menor sentido. O tio de uma das v�timas olha calado durante 10 minutos para a estreita porta de sa�da da boate como quem diz que ali jaz o evit�vel. Para onde se olha, h� um rosto resignado � procura de uma explica��o. � sofrimento at� onde a vista alcan�a. M�dicos, com estetosc�pios ainda pendurados no pesco�o, enxugam as l�grimas antes de entrar no restaurante. Gar�ons confortam os clientes e soldados do Ex�rcito compram flores para colocar nos caix�es. Flores que tamb�m foram depositadas pela popula��o na cal�ada da casa noturna.
A cidade se abra�a nas ruas. O mendigo encostado no banco da pra�a diz que tamb�m morreu um pouco. “Nada faz mais sentido”, repete, cheio de raz�o. At� ontem, cerca de 150 corpos foram sepultados. A repeti��o machuca mais. Em apenas um dos cemit�rios, o maior da cidade, os coveiros repetiram o gesto 52 vezes em apenas sete horas. Faltou caix�o. Donos de funer�rias precisaram comprar em outras cidades. Os cortejos se misturavam. O choro tamb�m.
AMPARO Uma senhora de 54 anos enterrou dois filhos, de 20 e 17, e depois foi abra�ar uma desconhecida que chorava ao lado. Era a m�e de Roger Barcelos Farias, de 22. Ele era seguran�a da Boate Kiss. Trabalha l� havia apenas tr�s meses. Depois que o inc�ndio come�ou, entrou e saiu v�rias vezes. Salvou algumas vidas. Menos a sua. Inconformada, a m�e gritava para a cidade inteira ouvir. “Por que, meu filho? Por que voc� voltou? Para cada enterro, uma equipe m�dica. Vez por outra, familiares n�o suportavam a emo��o e precisavam ser amparados.
No Centro Esportivo de Santa Maria, onde ocorreu um vel�rio coletivo desde o dia da trag�dia, fotos das v�timas eram colocadas no caix�o. Devido ao grande n�mero de enterros, era preciso obedecer a uma fila. Os cemit�rios n�o tinham estrutura para realizar diversos sepultamentos simult�neos. “Estamos acostumados com sofrimento, mas feito esse aqui nunca vamos esquecer. O senhor j� viu uma multid�o chorando? Pois bem. Como uma pessoa pode n�o carregar essa lembran�a para o resto da vida? Imposs�vel”, disse um dos funcion�rios. A espera prolongava o sofrimento. “Eu posso explicar 10 vezes a voc�, mas nunca entender� o que estou sentindo. S� eu posso sentir essa dor. Mais ningu�m. Eu morri junto com o meu filho. S� quem passa por isso pode saber”, respondeu Amara Pereira, de 53, com uma voz firme, quase como um desabafo, a uma rep�rter de televis�o que lhe perguntou tr�s vezes seguidas o que ela estava sentindo.
CONFORTO No gin�sio, a dor aproximava desconhecidos. Vez por outra, parentes iriam confortar aqueles que velavam um corpo ao lado. Dif�cil ouvir os di�logos de dois pais que perderam dois filhos de 20 anos. “Eles s�o m�rtires. Morreram. Deixaram a li��o de que � preciso cuidar melhor dos jovens”, dizia o enfermeiro Eduardo Penna e Souza, de 54. Perdeu o filho David Santiago e Souza, que cursava odontologia na Universidade Federal de Santa Maria. “Meu filho morava s�. Veio apenas para estudar. Vivia bem e feliz.” Eduardo estava falando para Walter Souza. “Meu menino tinha 20 anos. � s� isso que tenho a dizer”, expressou Walter.
Um pouco depois, o governador Tarso Genro chegou ao local e conversou durante cinco minutos com ele. Antes de chegar at� Walter, que era o �ltimo do gin�sio, abra�ou todas as m�es que encontrou pelo caminho encostadas nos caix�es. Algumas choraram. Outras seguraram as l�grimas para escutar do governador que a Pol�cia Civil estava trabalhando duro para realizar um inqu�rito benfeito. “Vamos encontrar todos os respons�veis. Eu garanto.” Tarso Genro j� tinha virado as costas e nem ouviu quando uma delas disse baixinho. “Governador, s� queria o meu filho de volta. Nada mais.”
A dor sem fim ainda pode se multiplicar: s�o 129 jovens feridos, dos quais 76 corriam risco de morte, segundo afirmou o ministro da Sa�de, Alexandre Padilha, que visitou 39 v�timas internadas na capital ga�cha.