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Estado de Minas

Sem destino, andarilhos percorrem o pa�s pelas rodovias

Estado de Minas recolheu relatos dessa vida errante


postado em 14/07/2013 07:00 / atualizado em 14/07/2013 07:58

A medida que o tempo passa e os andarilhos avançam pela estrada, fica cada vez mais difícil retomar a vida normal(foto: Daniel Camargos / E.M / D.A Press)
A medida que o tempo passa e os andarilhos avan�am pela estrada, fica cada vez mais dif�cil retomar a vida normal (foto: Daniel Camargos / E.M / D.A Press)

Marcelo Souza, de 42 anos, est� h� mais de tr�s anos vagando por estradas brasileiras. Formado em ci�ncias cont�beis, ele tinha um escrit�rio em Pindamonhangaba, no Vale do Para�ba, interior de S�o Paulo, e vivia com a esposa e dois filhos. “Me separei da minha mulher porque arrumei outra, mas a outra me traiu. Fiquei com vergonha e sa� para o trecho”, conta Marcelo � beira da Via Dutra, em Aparecida (SP). Marcelo aguarda a chegada do papa Francisco � cidade, no dia 24, na primeira visita do novo pont�fice ao Brasil. “Quero pedir uma ajuda para ter minha vida de volta”, afirma.


A reportagem do Estado de Minas acompanhou por uma semana a trajet�ria de andarilhos – ou trecheiros, como eles preferem ser chamados – em estradas brasileiras para tentar compreender o que se passa com aqueles, que como Marcelo, seguem sem destino definido, o m�nimo conforto e contato com a sociedade.

“Os andarilhos vivem o espa�o. O tempo praticamente n�o existe: ontem, hoje e amanh� est�o fundidos na sua percep��o. � como se eles n�o tivessem hist�ria: seu passado n�o est� no seu presente (n�o h� uma linearidade na sua hist�ria de vida, o antes n�o se conecta com o agora), n�o h� um prolongamento, mas uma ruptura que o lan�a no v�cuo temporal”, explica o professor de psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Jos� Sterza Justo, um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, no livro Andarilhos e trecheiros – Err�ncia e nomadismo na contemporaneidade (Eduem).

Mem�ria Marcelo v� aos poucos sua hist�ria se apagando. N�o sabe o que se passou com os dois filhos, um de 18 e outro de 12, nos �ltimos tr�s anos. Tem consci�ncia de estar seguindo um caminho e, � medida que o tempo passa, a estrada de volta se torna cada vez mais tortuosa e dif�cil. “Nunca fui de deixar a barba crescer. Sempre andei alinhado”, compara Marcelo, mostrando como sua vida se modificou observando apenas a sua apar�ncia com a barba espessa e roupas maltrapilhas.

Ele sente falta da antiga rotina, mas entende que n�o est� preparado “f�sica e psicologicamente” para retornar � vida do passado. No in�cio da conversa Marcelo n�o revela que completou um curso superior, mas com a insist�ncia do rep�rter – impressionado com a corre��o da pron�ncia dele –, diz com os olhos marejados ter tido a oportunidade de estudar e que, at� concluir o curso, trabalhava como marceneiro, sua primeira profiss�o.

O que mais envergonha Marcelo, entretanto, � n�o ter resistido �s ofertas e experimentado o crack. “Eu n�o procurei a droga. No principio eu recusei, mas comecei a usar essa porcaria”, lamenta. Ele pede ajuda aos representantes de entidades religiosas da cidade para conseguir tratamento em alguma institui��o. Enquanto n�o consegue, espera o papa Francisco e segue pelas ruas de Aparecida e pela marginal da Via Dutra catando latinhas, juntando papel e materiais que possa vender para reciclagem. Dorme nas ruas, embaixo de �rvores, marquises e at� ao relento.

“Quando vi que deu tudo errado eu pensei: vou sair andando e cair no mundo”, lembra. Para ele, a liberdade � algo “muito bom”. Marcelo diz j� ter caminhado at� Belo Horizonte, circulado pelo Centro da capital e depois retornado para o interior paulista. Foi tamb�m ao Rio de Janeiro e segue para onde tem vontade, mas quando lembra da �poca em que levava uma vida tradicional e chegava a receber cerca de R$ 3 mil por m�s sente saudade.

 

Alma de cigano 

 

Tr�s Cora��es e Varginha – Ronnie Von Xavier de Oliveira, de 34 anos, pensa diferente. Ele n�o tem saudade da rotina. Nascido em Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte, deixou a cidade natal em 1988, quando tinha 10 anos. O pai era cigano e al�m da m�e de Ronnie Von – f� do cantor da Jovem Guarda – com quem teve seis filhos, teve outras mulheres e deixou 34 rebentos espalhados pelo pa�s.
“N�o � que eu goste desta vida de andarilho. A gente diz que gosta, mas � porque se acostuma. N�o tem onde dormir, n�o tem onde tomar banho e tem lugar em que passa e n�o tem onde comer”, explica Bitelo, como � conhecido Ronnie Von, em um posto de combust�vel na BR-381, pr�ximo a uma f�brica de ra��o, entre Tr�s Cora��es e Varginha, no Sul de Minas, onde faz bicos como chapa ajudando caminhoneiros a carregarem e descarregarem.
Bitelo segue o caminho do pai e, aos 34 anos, tem 11 filhos, com tr�s mulheres diferentes. Quatro deles est�o em S�o Paulo, quatro na Bahia e tr�s em Pernambuco, sendo que o mais velho tem 22 anos, nascido quando ele tinha apenas 12 anos. Bitelo chegou a ser casado, em S�o Paulo, quando trabalhava em uma f�brica de geladeira e teve um p� esmagado em uma m�quina. Com o acidente, se aposentou por invalidez, mas n�o v� o dinheiro, que � dividido para pagamento da pens�o da prole.
“Quando fico de saco cheio saio andando. Vou at� a Bahia, Para�ba e j� cheguei at� Fortaleza”, afirma Bitelo. O lugar preferido dele no Brasil � a est�ncia hidromineral Caldas do Jorro, em Tucano, na Bahia, com fontes de �gua quente jorrando na pra�a e banho liberado para a popula��o. O lugar, inclusive, � famoso por ter recebido v�rias vezes o bando do cangaceiro Lampi�o. “N�o gosto de ficar parado. Gosto de ir e voltar. S� neste posto eu j� passei umas 150 vezes”, calcula o filho de cigano.
 
Sem marcas O doutor em psicologia social Jos� Sterza Justo destaca em seu livro que diferentemente do que pontificou Sigmund Freud, o pai da psican�lise, sobre o homem moderno ou civilizado, os andarilhos n�o trocam qualquer quinh�o de suas possibilidades de liberdade e felicidade por prote��o e seguran�a social.
“O andarilho � um viajante contumaz. Ele apenas est� de passagem pelos lugares e n�o se exp�e a marcas de espa�o algum. N�o cria v�nculos e n�o se det�m nas coisas ou pessoas com as quais estabelece algum contato. O m�ximo que faz � carregar na mem�ria algum registro de algo que possa ter deixado uma impress�o mais forte. Quando os andarilhos se referem a algum lugar como sendo melhor para sobreviver, sabem que se trata de algo passageiro. T�m consci�ncia de que alguma assist�ncia mais diferenciada, prestada em alguma cidade, � provis�ria porque depende da pol�tica local, que muda frequentemente. Isso � que � viver sem projeto, lidar com referenciais m�veis, vol�teis e ef�meros”, escreve Justo. (DC)

 

Solid�o � regra na estrada

 

Tr�s Cora��es e Varginha – Nelson Aparecido Batista da Silva, de 43 anos, � um andarilho diferente dos demais. Em vez de andar, ele prefere pedalar uma bicicleta paramentada, com a imagem de Jesus Cristo no paralamas e uma caixa com seus pertences na garupa. Por�m, quando reencontrou Roberto Resende, tamb�m de 43 anos, pr�ximo a Carmo da Cachoeira, no Sul de Minas, desceu do selim e seguiu caminhando at� chegarem a Lambari, distante 50 quil�metros do posto de combust�vel onde estavam, na BR-381, entre Tr�s Cora��es e Varginha. “Eu nasci em um povoado perto de Lambari. L� eu conhe�o lugar bom para dormir e comer”, explicou Roberto.
A amizade entre Nelson e Roberto surgida na estrada � uma exce��o � regra, pois a vida “no trecho” � essencialmente solit�ria. “A solid�o des�rtica da estrada � a experi�ncia mais cruel e desafiadora para o andarilho porque representa o contraste maior com a vida anterior e porque consiste no principal ponto de ruptura e deser��o psicossocial”, explica o professor de psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Jos� Sterza Justo
� a segunda vez, na �ltima d�cada, que eles se encontram na estrada. Da primeira, conversaram e nasceu a amizade. O tempo passou e cada um seguiu seu rumo. Agora, voltaram a se encontrar. As raz�es de cada um adotar o estilo de vida errante s�o distintas, mas eles – e a maioria dos trecheiros – compartilham um vocabul�rio pr�prio. Assim como esquim�s percebem tons diferentes de branco na neve, os andarilhos captam aspectos na estrada que aqueles que n�o est�o imersos na poeira do asfalto s�o incapazes de notar.
Para conseguir comida, o segredo � chegar a um restaurante na beira da estrada e pedir. Os trecheiros carregam a sua pr�pria vasilha, chamada de cascuda, e tamb�m uma colher, a p�. O ritual entre eles e os comerciantes ao longo das rodovias n�o � escrito, mas � como se fosse. “A exig�ncia da cascuda, segundo reconhecem, � para evitar o uso de algum utens�lio do dono do restaurante, que poderia sentir-se enojado de reutilizar um prato ou um talher usados por um andarilho”, explica Justo.
“J� passei fome, fiquei mais de um dia sem comer, mas geralmente o pessoal ajuda”, garante Nelson. Al�m da p� e da cascuda, ele carrega um guarda-chuva em sua bicicleta, comprada por R$ 40, dinheiro conseguido com a venda de material para reciclagem. Ele n�o segue com um saco nas costas, como faz Roberto. Nelson leva seus pertences em uma caixa disposta na garupa da bicicleta.
 
C�digo O saco, em que se carregam a cascuda, a p�, cobertor, roupa e um ou outro pertence estimado � chamado de galo de briga ou gog� da ema. Galo de briga remete � maneira que os animais eram transportados para as rinhas, dentro de um saco. J� gog� da ema se deve � semelhan�a entre o formato do saco e o papo do animal, pois ambos est�o sempre sujos por estarem rentes ao ch�o.
Roberto caminha desde os 24 anos. At� cair na estrada teve uma companheira e uma filha. “Perdi minha m�e e meu pai e minha filha fala que eu sou atrapalhado”, conta ele. J� Nelson, nascido em Salmour�o, no interior de S�o Paulo, n�o foi criado pelos pais, pois quando ele ainda era crian�a eles morreram afogados ap�s um acidente com uma canoa. Antes de ir para a estrada, Nelson foi casado e teve dois filhos, um de 32 anos e uma de 26, que moram em Oswaldo Cruz, no interior de S�o Paulo.“Fui morar com um tio e trabalhava em uma padaria, mas ele ficava com o meu dinheiro. Com 16 anos sa� e fui para o trecho”, recorda Nelson.
Ir para trecho, segundo Jos� Sterza Justo �: “Rumar para lugar algum e por tempo indefinido. Uma jornada sem fim, sem ponto de partida e de chegada. O trecheiro, portanto, � o ser que habita esse tempo e espa�o indefinido. Ora percorre trechos mais longos, ora mais curtos. Pode tomar qualquer rumo ou permanecer, como alguns, indo e voltando, percorrendo um mesmo trecho”.

Pardal Entre os trecheiros tamb�m h� diferen�as de como s�o conhecidos. Um dos tipos � o pardal, como s�o chamados aqueles que circulam de cidade em cidade, pedindo ajuda e ficando um tempo em cada lugar. Uma refer�ncia ao p�ssaro, que se alimenta de restos de comida e voa em bandos de at� 500 aves. Muitos abusam de bebidas alco�licas. De acordo com as pesquisas de Justo, muitos pardais citam com frequencia o uso abusivo de �lcool.“Eles apontam, inclusive, o alcoolismo como potencializador dos conflitos que culminaram com abandono da vida sedent�ria e a deser��o para o nomadismo”, afirma o pesquisador.
Hist�ria semelhante � de Roni C�sar de Oliveira, de 41 anos, que conversou com a reportagem enquanto pedia dinheiro na rodovi�ria de Tr�s Cora��es. Ele entende que o �lcool foi o motivo principal para que ele sa�sse de casa. “Recebia o pagamento e em vez de chamar minha esposa para passear eu ia zoar com os colegas”, recorda. Roni estudou at� a sexta s�rie do ensino fundamental e trabalhou como frentista, separador de mercadorias e em um lava a jato.
Roni tenta voltar � capital mineira depois de passar sete meses em S�o Paulo, onde dormia em um abrigo, no Bairro da Mooca, na capital paulista. “Estava bebendo muito. Uma, duas, tr�s garrafas de cacha�a. Decidi vir embora e vou parando de cidade em cidade”, explica. A estrat�gia de Roni ao chegar aos munic�pios � buscar os servi�os de assist�ncia social das prefeituras, para conseguir, em poucos dias, uma passagem para a cidade mais pr�xima. Foi usando esse artif�cio que ele passou por S�o Jos� dos Campos, Aparecida, Cachoeira Paulista e Cruzeiro, todas em S�o Paulo. Em Minas, ele segue a mesma rotina: em Passa Quatro, Caxambu, Varginha e Tr�s Cora��es, ganhou passagens de �nibus para seguir at� a pr�xima cidade.
“J� tem mais de duas semanas que estou tentando voltar para Belo Horizonte. Eles (funcion�rios de servi�os de assist�ncia social) me enxergam como um problema e passam para o munic�pio vizinho”, lamenta Roni. Quando voltar para a capital mineira,ele quer achar a fam�lia, no Bairro S�o Crist�v�o. “Vou procurar tratamento. Acho que estou com problema no f�gado, por causa do �lcool. Vou bebendo e chega um momento que eu apago. J� me jogaram �gua uma vez para acordar e nada”. (DC)

 


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