A ditadura j� acabou, mas a repress�o continua sendo praticada por militares – no caso, pela Pol�cia Militar – e atinge as camadas mais pobres da sociedade. De forma quase consensual, esta � a opini�o dos profissionais do Servi�o Social que participaram, em Bras�lia, do 43º encontro nacional da categoria.
“Nossa profiss�o sempre nos colocou na linha de frente das conquistas sociais. Por esse motivo, conhecemos de perto as v�rias agress�es cometidas no passado, durante o per�odo da ditadura, e no presente, principalmente nas periferias”, diz o presidente do Conselho Federal de Servi�o Social (CFESS), Maur�lio Matos.
Com o encontro deste ano, o conselho resgatar as experi�ncias de confronto com �rg�os repressores enfrentadas pelos assistentes sociais e, ao mesmo tempo, trazer para a atualidade a luta contra a repress�o, que ainda hoje alcan�a os jovens, principalmente negros e pobres no Brasil. “Estamos recuperando a mem�ria de luta dos assistentes sociais contra os repressores e buscamos dar visibilidade aos que lutam pela liberdade e pela democracia”, resume Matos.
“O Brasil � dividido em classes. H� um verdadeiro apartheid {segrega��o] em nosso pa�s, com cidades constru�das para separar classes. Essa divis�o � a origem de diversos problemas abordados apenas superficialmente pelos ve�culos de comunica��o. Nossa m�dia informa o ato, mas deforma a origem dele. Fala dos problemas no tr�nsito e da m� situa��o da sa�de, mas n�o aponta a verdadeira origem desses problemas, que � a desigualdade social”, argumenta o presidente do CFESS.
Diminuir tais desigualdades foi um dos est�mulos para Joaquina Barata, atualmente com 78 anos, enfrentar a ditadura militar na juventude. “O problema � que a luta de classes continua. E alcan�ou inclusive f�rmulas que enganam at� segmentos da ci�ncia social contempor�neas", ressalta a assistente social. Joaquina lembra que, na �poca em que era estudante, “ensinavam-se teorias conservadoras que expressavam, sem a menor d�vida, o pensamento das classes dominantes: pobres e desvalidos eram tidos como 'desajustados'”.
Ao falar sobre a ditadura militar, ela avalia que os grupos de esquerda “subestimaram o poder e a crueldade da direita”. “A ditadura tornou-se cada vez mais assassina, violenta e destrutiva. Durou 20 anos, criando a cultura do sil�ncio e do medo, e estragando carreiras, vidas e a evolu��o do pa�s”, resume Joaquina.
Entre os resultados desse embate, ela destaca a transforma��o ocorrida na Amaz�nia, que, na �poca, era “espa�o de abund�ncia”, e que, a partir de ent�o, se tornou “territ�rio de escassez, com latif�ndios e um mar de miser�veis”. De acordo com a assistente social, outros resultados, "bem vis�veis", s�o a viol�ncia na periferia das cidades, a dissemina��o das drogas, o trabalho escravo e a dissolu��o de valores.
Lutar pelos sonhos que tinha para o Brasil custou um pre�o alto para Joaquina e o filho, que foi preso no final da d�cada de 70 quando, a pedido de um amigo, distribuia panfletos em frente a uma escola cuja diretora pertencia a um grupo pol�tico ligado � ditadura. “N�o sei at� que ponto h� liga��o, mas meu filho, que terminou o curso de engenharia, tornou-se, mais tarde, um paciente psiqui�trico em cujos del�rios as lembran�as da ditadura sempre aparecem.”
Os participantes do encontro de assistentes sociais afirmam que n�o s�o poucos os casos de filhos de militantes pol�ticos traumatizados pela viol�ncia praticada contra os pa�s na �poca da ditadura. Inspirada em situa��es como a vivida pela fam�lia de Joaquina, Rosalina Santa Cruz escreveu um livro – ainda n�o publicado e previamente intitulado Inf�ncia Roubada – que falar� sobre tais hist�rias. Rosalina diz que s�o muito comuns os casos de crian�as que apresentaram sequelas ap�s testemunharem os absurdos praticados por militares.
“Meu filho mesmo � um exemplo. Quando era rec�m-nascido, foi usado pelos militares para me amea�ar. Eles invadiram minha casa e, al�m de n�o me deixarem amament�-lo, ficaram dizendo que iam jog�-lo do quinto andar do pr�dio. Na adolesc�ncia, ele teve s�rios problemas de depend�ncia qu�mica e se tornou um rapaz extremamente t�mido. Acho que tem a ver com o trauma passado na inf�ncia, principalmente por ter sido afastado da gente”, conta Rosalina.
Ela ficou afastada do filho no per�odo que passou na pris�o, onde foi torturada. “Passei por todos os tipos de tortura pelos quais passavam os presos pol�ticos. Cheguei a perder 36 quilos em 50 dias. Lembro de torturas psicol�gicas, que eram piores do que o pau de arara. Eu pedia que me matassem, mas eles negavam, dizendo que, antes, iriam me cortar [viva] em pedacinhos. Era colocada nua em uma geladeira com tudo escuro. Ouvia ru�dos assustadores. Era uma sensa��o de impot�ncia; de solid�o.”
Ap�s dez meses de pris�o, Rosalina conta que foi depor em uma auditoria. Antes do depoimeto, um dos torturadores retirou seu capuz e, deixando claro que se tratava de uma amea�a, disse a ela que iria aguard�-la ap�s a audi�ncia. “Quando o juiz me perguntou se eu tinha algo a declarar, disse que tinha levado choque na vagina, que tinha abortado ap�s ser espancada, que tinha sido colocada no pau de arara. Quando ele encerrou a sess�o e todos sa�ram, continuei no local, dizendo que n�o podia voltar e que estava com medo”. N�o adiantou e ela foi colocada em um cambur�o, “que corria que nem louco”, at� chegar ao DOI-Codi. Ao descer, a primeira voz que ouviu disse: “Rosinha voc� voltou...”.
Depois de solta, j� na fase final da ditadura, Rosalina soube do desaparecimento de um irm�o. Ao tentar localiz�-lo, as autoridades militares sugeriam que ela perguntasse aos companheiros que, segundo eles, tinham por h�bito "matar os frouxos”. Suspeita-se que o irm�o dela tenha sidouma das 14 pessoas incineradas em uma usina. “Meu irm�o foi levado para um dos centros de exterm�nio que existiam no pa�s, similares aos da Alemanha nazista. Cheguei a ouvir deles [dos militares] que, desses incinerados, nem cinza h�.”
Para Rosalina, o mais lament�vel � que “esse tipo de tortura aconte�a at� hoje”. No encontro, os assistentes sociais pediram o fim da Pol�cia Militar. A assistente social cearense C�ndida Moreira Magalh�es conta que decidiu se tornar militante politica porque se incomodava com situa��es como a invas�o de favelas, sob o pretexto de se fazer uma “higieniza��o” na cidade. “Naquela �poca, viv�amos um momento de discuss�o e debate dentro da universidade e acredit�vamos que pod�amos mudar a sociedade.” Presa duas vezes por suspeita de envolvimento com organiza��es de esquerda, C�ndida diz que chegou a ser sequestrada pela Pol�cia do Ex�rcito. “Foram 90 dias sem qualquer tipo de comunica��o [externa]. Fui torturada todos os dias, com choques el�tricos, afogamentos, pau de arara... Sa�a todos os dias inconsciente e toda urinada”, lembra C�ndida.