Renata Mariz, Julia Chaib e Ana Pompeu

Bras�lia – O caso de duas moradoras do Rio de Janeiro que, na �ltima semana, apareceram mortas depois de atendidas em cl�nicas clandestinas de aborto, exp�e a trag�dia nacional da gravidez interrompida de maneira insegura. A despeito de ser crime no Brasil, 205 mil mulheres foram internadas no ano passado na rede p�blica por complica��es decorrentes do fim de uma gesta��o. J� um estudo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) estima o total aproximado de at� 865 mil procedimentos ilegais em 2013 no pa�s. As trag�dias alavancaram o coro de entidades pr�-descriminaliza��o da pr�tica. Hoje, Dia Latino-americano da Legaliza��o do Aborto, h� protestos marcados em pelo menos quatro capitais.
Jandira Magdalena dos Santos Cruz, 27, e Eliz�ngela Barbosa, 32, que integraram as estat�sticas recentemente, ser�o lembradas nos atos previstos para ocorrer em S�o Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Como elas, muitas outras mulheres buscam cl�nicas clandestinas ou medicamentos proibidos para interromper uma gravidez indesejada. Com base em par�metros referendados em levantamentos anteriores, o estudo da Uerj estima que, para cada interna��o, h� quatro ou cinco outros casos de abortos induzidos. Os dados ajudam a fomentar um debate a respeito da descriminaliza��o da pr�tica, sob o qual o pa�s se v� mais uma vez.
“Tragicamente, a morte dessas duas mulheres no Rio de Janeiro virou not�cia, mas n�o s�o as �nicas. H� mortes cotidianas, o que mostra a urg�ncia do debate. A criminaliza��o coloca a mulher em situa��o de risco”, afirma Maria Jos� Rosado, soci�loga e uma das coordenadoras da organiza��o Cat�licas pelo Direito de Decidir. Por outro lado, o desembargador do Tribunal de Justi�a do Distrito Federal Roberval Belinati defende a manuten��o do aborto no C�digo Penal, argumentando que o Estado precisa cumprir outros deveres. “O governo tem obriga��o de oferecer condi��es para a gestante ter o filho sadio e para que o filho desenvolva-se dignamente.”
Belinati destaca ainda o conflito entre os direitos do feto e da mulher que se v� na situa��o de uma gravidez indesejada. “N�o concordo com a libera��o do aborto, por defender a vida de pessoas inocentes e indefesas”, diz. Para o especialista em medicina fetal, o ginecologista Thomaz Gollop, o debate est� pautado em uma falsa quest�o. “As pessoas dizem se s�o contra ou a favor do aborto. Ora, ningu�m � a favor do aborto. O que precisamos pensar � se a mulher que o praticar deve ser penalizada, inclusive com cadeia. Sobre isso, n�o tenho d�vidas: a penaliza��o � ineficaz. E ainda faz com que ela se submeta a p�ssimas condi��es de higiene, como vimos nessa situa��o do Rio”, argumenta.
Para Maria Jos�, a discuss�o sobre os direitos do feto e da m�e � fundamental. “Ningu�m em s� consci�ncia dir� que n�o h� uma possibilidade de vida humana quando se tem uma gravidez em est�gio inicial. Nossa considera��o �tica � de que o direito da mulher adulta se sobrep�e ao direito do embri�o ou do feto. Mas s� com o debate p�blico a sociedade pode chegar a um consenso sobre a quest�o, que deve ser tratada sob a �tica da sa�de p�blica”, afirma a soci�loga. Ela lembra que o aborto � a quinta causa de mortalidade materna no pa�s: 2,8 a cada mil nascidos vivos. Para Belinati, a legaliza��o n�o diminuiria as mortes de mulheres, s� serviria para fomentar o que chama de “ind�stria do aborto”.
Embora sejam usados como sin�nimos, descriminaliza��o e legaliza��o t�m significados diferentes. O primeiro representa apenas retirar o aborto como crime do C�digo Penal. Quando se fala em legalizar, a ideia � criar regras para o procedimento, inclusive para que mulheres sejam atendidas no Sistema �nico de Sa�de (SUS). Nos pa�ses que liberaram a pr�tica, h� requisitos, como o limite m�ximo de tempo de gesta��o para se fazer o aborto, geralmente 12 semanas, e o atendimento posterior, de preven��o de uma nova gravidez.
Um mapa de 2014 sobre o tema, elaborado pelo Centro de Direitos Reprodutivos (Center for Reproductive Rights), mostra que o Brasil faz parte dos 66 pa�ses (25,5% da popula��o mundial) que t�m as leis mais r�gidas em rela��o ao aborto e s� permitem a pr�tica para salvar a vida da mulher. A maior parte dessas na��es fica na �sia e na Am�rica do Sul. J� a fatia onde o aborto � legalizado soma 61 pa�ses, 39,5% da popula��o mundial, incluindo boa parte da Europa, os Estados Unidos, o Canad� e a Austr�lia, entre outros.
Ponto cr�tico
Descriminalizar � a solu��o para reduzir as
mortes e complica��es decorrentes de aborto?
SIM
Ana Maria Costa,
m�dica sanitarista e presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Sa�de (Cebes)
A criminaliza��o remete as mulheres a condi��es clandestinas, p�ssimo atendimento e risco elevados. E � essa situa��o que mata e leva as mulheres a sequelas f�sicas, comprometimento do futuro reprodutivo. � essencial no sentido de sa�de p�blica. A mulher que se submete a um procedimento em uma cl�nica clandestina pode ter infec��es, levando-a � esterilidade permanente, pode ter les�es de �rg�os, problemas relacionados a outras doen�as ginecol�gicas. � um assunto bastante penoso para as mulheres. Sem falar nos aspectos psicol�gicos, de natureza psicossocial.
A descriminaliza��o traria a responsabilidade para o Sistema �nico de Sa�de (SUS) de fazer a interrup��o da gravidez de forma aberta e com qualidade. Quando feito em boas condi��es, � procedimento simples e sem risco. Al�m disso, o direito das mulheres de realizar uma interrup��o de gravidez � uma pauta para a democracia. A democracia brasileira deve �s mulheres esse avan�o. No sentido de que as mulheres s�o impedidas de exercitar um direito b�sico de sa�de, a autodetermina��o de sua condi��o reprodutiva. Ademais, n�o � justo que mulheres sejam presas por ter feito um aborto. Isso, mais uma vez, as leva �s p�ssimas condi��es e aos riscos de morte e sequelas.
N�O
Eliane Oliveira,
neonatologista, professora da Universidade Federal do Cear� e integrante do Movimento Nacional da Cidadania pela Vida (Brasil sem Aborto)
N�o, porque nunca existir� aborto seguro. O abortamento � um procedimento invasivo e, como tal, tem riscos de insucesso. Os riscos do abortamento para a sa�de da mulher, mesmo em um bom hospital, s�o muitos, como risco de perfura��o uterina, com retirada do �tero e consequente esterilidade, ou risco de infec��o, podendo levar � morte.
Al�m disso, o aborto afeta tamb�m a sa�de mental da mulher. A maioria das que abortam o faz por falta de apoio da fam�lia e imposi��o do parceiro. � uma situa��o em que a mulher se sente sem escolha. Somos contra a descriminaliza��o do aborto por n�o ser solu��o; al�m de impedir o desenvolvimento do beb�, � uma viol�ncia para a mulher, que necessita de orienta��o, acolhimento e cuidado integral.
A realiza��o clandestina de aborto n�o tem como ser contabilizada. Os n�meros divulgados s�o distorcidos, englobam v�rias outras situa��es patol�gicas. Utiliza-se o n�mero total de interna��es decorrentes de outras raz�es, levando � conclus�o estat�stica equivocada acerca da mortalidade materna. Cabe ao Estado coibir as cl�nicas clandestinas de aborto, na forma da lei, uma vez que, em nosso pa�s, o aborto � crime e defendemos que assim
continue sendo.