Os quatro sertanejos andam espremidos em cima da moto. Pel�, espinha�o vergado para frente, guia em marcha lenta na estrada. V�m da zona rural, margeando cap�es cobertos de mato e fazendas despovoadas pela seca, a caminho do centro. Usa um bon� laranja, em vez de capacete.
Morno, o sol �s 10 horas n�o � de fustigar a vis�o. O sertanejo parece confort�vel de camisa do Corinthians e bermuda tipo surfista. Na garupa, Branca apoia o menino mais novo sobre a coxa, enla�ando-o com o bra�o. Entre os pais, a mais velha gargalha alto e feliz. "Eita, menina lesa", Pel� repele. "Hum!"
Passam um jumento, amarrado � cerca, sem ligar. Desde 2017 n�o h� not�cia de bicho morrendo em Minador do Negr�o, sert�o de Alagoas, localidade que abrigou o set de filmagens do filme Vidas Secas. Aquele inverno foi de chuvas � vontade, as campinas cobriram-se de verde. Folhagens de algarobas e angicos criaram manchas na paisagem, apagando a vermelhid�o. Com �gua nos a�udes, os urubus t�m poucos olhos para ambicionar.
Seguindo trajeto, a fam�lia nota um carro dar meia volta na porteira de um s�tio, ganhar estrada e ficar em seu encal�o. A placa era de fora, com certeza gente desconhecida. � Branca quem percebe primeiro. "Ai, meu Deus, acho que t�o seguindo a gente", diz, virando, de quando em quando, a cabe�a para tr�s. Ressabiada, a mulher aperta o ca�ula contra o corpo. A menina mais velha arregala os olhos. Para de sorrir.
Pior hora para estranhos. No amanhecer, um agricultor fora baleado. O crime correu de Whatsapp em Whatsapp, at� o sindicato dos trabalhadores rurais trancou as portas. Tr�s tiros, espantaram-se os moradores. O corpo ficou ca�do perto das muletas que o homem usava. O coment�rio acabou se espalhando: "Ou transa��o pol�tica ou tirou liberdade com mulher errada". Era aleijado mas gostava de ousadia, o traste.
Lembrando do infeliz, Pel� desacelera a moto e v� o carro fazer o mesmo. Sem d�vida, persegui��o. "A gente vai morrer?", pergunta a mais velha. Em sil�ncio, o pai embica no posto de gasolina. Os forasteiros dobram junto.
Nada de pistoleiros, s� queriam informa��o. "Ave Maria, mo�o, desse jeito tu me mata de susto", Branca protesta, aliviada. A filha, com o rosto virado para o c�u, solta uma gargalhada.
No meio da ro�a
Minador do Negr�o � um munic�pio min�sculo, com 5,4 mil habitantes: menos de 3% da popula��o de Itaquera, bairro da zona leste de S�o Paulo. Moradores sobrevivem, via de regra, do ro�ado. Isso quando n�o s�o expulsos pelas estiagens.
Aos 34 anos, Pel�, a pele branca, os olhos claros, n�o quis trocar o sert�o nem quando a seca apertou antes do aguaceiro de 2017. Pior at� que a de 1970, avaliam alguns. A cisterna de 16 mil litros, oca, era abastecida uma vez por semana por caminh�o-pipa, a custo da prefeitura. Chegava carregado de �gua salobra. � noite, Branca lembrava das palavras do padre e pedia que Deus, no controle, mandasse chuva.
O pasto ressecou, barragens viraram barro. O casal criava quatro r�s na �poca. Os bichos foram ficando magros, a l�ngua estirada, arquejando. E entre ra��o do gado ou comida dos filhos n�o havia o que escolher. "A necessidade falou mais alto", relata a mulher. "Ou vendia tudo ou perdia para o mundo." Conseguiram metade do pre�o.
Com pouca idade, Pel� j� sabia cultivar feij�o de corda, silar o milho, tanger boi. Fez at� a antiga 4.� s�rie (atual 5.� ano do ensino fundamental), mas s� escreve o pr�prio nome: Edvaldo Moura da Silva. Fora da escola, aprendeu a ler os sinais da seca. "Quando a palha vai enrolando assim, �i, tem de ficar esperto", ensina. Mas o que vier a gente aguenta. Tem de aguentar, n�?"
Ex-bab� da filha do atual prefeito, Branca (ou Joseilda Domingos Moura, de 28 anos, no registro) d� raz�o ao marido. "Eu tenho minha m�e ve�nha, meu pai ve�nho. Saio nunca", diz. A primeira barriga veio na 8.� s�rie. Estava atrasada, tinha 17 anos. Adulta, at� conseguiu retomar os estudos mas n�o pode descuidar dos afazeres dom�sticos e das crian�as: Laisa Milena, de 10 anos, e �caro Bernardo, de 3.
Morando na propriedade do patr�o, a fam�lia n�o tem de se preocupar com luz ou aluguel. A casa - sem pintura, com teto desforrado e antena parab�lica - � vizinha do chiqueiro. O sujeito teria prometido repassar aos sertanejos tr�s tarefas de terra, o equivalente a pouco mais de um campo de futebol. Falta arranjarem o dinheiro da escritura. "� um homem bom", o casal defende.
Respons�vel pelo curral, Pel� levanta �s 2h30 para ordenhar vaca em troca de R$ 270 por semana. Benefici�ria do Bolsa Fam�lia, Branca recebe R$ 170. Tira um extra revendendo produtos da Hinode, franquia de cosm�ticos voltada para classes C e D, que busca de moto em Arapiraca, a uma hora de dist�ncia. "Dif�cil � o povo pagar, mas, �s vistas de outras cidades, aqui � uma ben�a."
Cotidiano
A fazenda fica a poucos metros da pista, por um caminho vicinal. Na porteira, tr�s vira-latas, aos saltos, recepcionam os sertanejos balan�ando rabo. S�o Billie, Spike e Puff - tudo em ingl�s, porque nome de bicho do mar est� fora de moda. Branca chega da casa da m�e, derrama �gua da cisterna no balde e vai fazer o almo�o.
O pai de Pel�, gerente da fazenda, tamb�m vive nas terras e � quem paga o Wi-Fi. As crian�as aproveitam o sinal para estragar os olhos em clipes de batid�o no celular. "Olha aonde eu vim parar / Mais uma vez, o cora��o se apaixonou pela pessoa errada", canta MC Bruninho, de 11 anos. Laisa quer ser youtuber, antes de ser veterin�ria. "O mo�o vai postar as fotos na internet, �?! Eba, vou ficar famosa", diz. "Eita, menina enxerida", Pel� reprime. "Hum!"
Feito � lenha - o g�s est� caro -, o almo�o demora. O mais novo reclama de fome. "Quem mandou dar toda bolacha para as cabras?" Ovos de capoeira, carne e feij�o v�m da fazenda. O arroz, farinha e cominho foram comprados. A mais velha, de p�, se lambuza com um p� de galinha. O mais novo quer sem gema. Comendo de colher, os sertanejos usam a m�o livre para abanar a mesa. Zunindo, surgem uma, duas, tr�s, quatro, h� muitas delas atacando restos, esfregando patinha no suco de acerola. N�o d�o sossego. "Faz vergonha � as moscas", reclama a maior.
Na sala, a tev� ligada para ningu�m informa que o filho de uma ex-BBB acabava de ser preso, suspeito de matar um homem no Distrito Federal. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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