Quando era presidente da Comiss�o T�cnica Nacional de Biosseguran�a (CTNBio), no fim dos anos 1990, Luiz Antonio Barreto de Castro costumava dizer aos cr�ticos da soja transg�nica que o abordavam em audi�ncias p�blicas e nas reuni�es do colegiado em Bras�lia: "Est� aqui meu RG; se algu�m passar mal comendo essa soja, eu quero ser preso", conta o pesquisador, um dos pioneiros da biotecnologia no Brasil. "Estou solto at� hoje."
A soja transg�nica Roundup Ready (RR), da Monsanto, foi aprovada por unanimidade pela CTNBio em setembro de 1998, sob fortes cr�ticas de entidades ambientalistas e de defesa do consumidor. Vinte anos depois, as pol�micas que cercam os alimentos geneticamente modificados persistem na opini�o p�blica, mas n�o no campo. Quase 100% da produ��o brasileira de soja, milho e algod�o agora � transg�nica, com 53 milh�es de hectares plantados - uma �rea equivalente a duas vezes o Estado de S�o Paulo.
A taxa de ado��o da tecnologia chegou a 92% para a soja, 87% para o milho e 94% para o algod�o, o que rendeu aos produtores um lucro acumulado no per�odo de R$ 35,8 bilh�es, ligado � redu��o de gastos e aumento da produtividade proporcionados pela tecnologia, segundo um levantamento in�dito da consultoria Agroconsult, ao qual o Estado teve acesso com exclusividade.
Considerando os benef�cios para a economia brasileira como um todo - incluindo na conta, por exemplo, o aumento no com�rcio de m�quinas, insumos agr�colas, e cria��o de empregos -, o ganho coletivo � ainda maior: R$ 45,3 bilh�es.
"Os ganhos com a tecnologia extrapolam a fazenda e acabam beneficiando toda a economia", diz a coordenadora do estudo e s�cio-analista da Agroconsult, D�bora Sim�es.
Outro benef�cio � a redu��o no uso de defensivos agr�colas, que representa uma das principais vantagens estrat�gicas da tecnologia. Segundo o estudo, o uso de sementes geneticamente modificadas evitou que 839 mil toneladas de herbicidas e inseticidas fossem aplicadas sobre as lavouras dessas tr�s culturas nos �ltimos 20 anos.
Quase todos os transg�nicos aprovados at� agora para a agricultura no Brasil - 76 produtos no total - s�o plantas geneticamente modificadas para serem resistentes a herbicidas ou insetos. O objetivo com isso � facilitar o manejo e melhorar o controle de pragas, o que acaba beneficiando tamb�m a produtividade das lavouras - apesar de os genes em si n�o aumentarem a produtividade das plantas. Segundo o estudo, os transg�nicos foram respons�veis por um incremento de 55,4 milh�es de toneladas na produ��o brasileira de gr�os desde 1998.
"O produtor n�o vai pagar mais por uma tecnologia que n�o lhe traz benef�cio", diz Adriana Brondani, presidente do Conselho de Informa��es sobre Biotecnologia (CIB), entidade que encomendou o estudo. "Foi uma revolu��o no campo", diz o produtor Almir Rebello, presidente do Clube Amigos da Terra em Tupanciret�, interior do Rio Grande do Sul - regi�o em que a soja transg�nica come�ou a ser plantada no Pa�s, antes mesmo de 1998, usando sementes contrabandeadas da Argentina (onde a soja RR j� estava legalizada havia dois anos). "A facilita��o do manejo foi algo impressionante."
Biosseguran�a
Tudo isso, sem nenhum registro de malef�cio � sa�de humana ou ao meio ambiente, segundo especialistas ouvidos pelo Estado. "No mundo inteiro os transg�nicos s� trouxeram benef�cios", diz Barreto de Castro, ex-chefe da Embrapa Recursos Gen�ticos e Biotecnologia. Ele foi o primeiro presidente da CTNBio, �rg�o respons�vel por regulamentar a avaliar a biosseguran�a de transg�nicos no Brasil, criado em 1995.
"At� o momento, n�o existem evid�ncias concretas de que estes produtos possam causar malef�cio aos seres humanos, animais, vegetais ou ao meio ambiente", diz a atual presidente da CTNBio e professora da Universidade Cat�lica de Bras�lia, Maria Sueli Felipe. "O processo de an�lise da biosseguran�a de organismos geneticamente modificados � rigoroso e absolutamente transparente."
O principal desafio no campo � o manejo das pragas resistentes, que surgem com o uso cont�nuo de qualquer pesticida - um desafio que, segundo especialistas, n�o � exclusivo dos transg�nicos, mas � potencializado pelo modelo de produ��o ao qual eles est�o associados, que envolve grandes �reas plantadas com uma mesma cultura e tratadas com o mesmo produto.
No caso do milho ou algod�o transg�nicos resistentes a lagartas, a orienta��o � para os produtores sempre plantarem uma parte da sua �rea com variedades convencionais (chamada de ref�gio), para reduzir a popula��o de insetos resistentes. Mas isso nem sempre � feito, por diversas raz�es.
No caso da soja resistente ao glifosato, h� poucas alternativas, como fazer rota��o de culturas e usar outros produtos para eliminar as ervas daninhas resistentes - tomando o cuidado de n�o prejudicar a soja. As empresas de biotecnologia, por sua vez, investem no desenvolvimento de plantas resistentes a outros herbicidas. J� h� variedades de soja resistentes a at� tr�s produtos, al�m de resist�ncia a insetos. "Solu��o existe, mas n�o � algo trivial, que voc� vai na prateleira e compra. � algo que exige planejamento", afirma o coordenador de Tecnologia e Inova��o da Confedera��o da Agricultura e Pecu�ria do Brasil (CNA), Reginaldo Minar�.
Inseguran�a
Entidades que j� questionavam a seguran�a dos transg�nicos na d�cada de 1990, por�m, continuam c�ticas com rela��o � tecnologia. "� tudo ainda muito obscuro", diz a nutricionista Ana Paula Bortoletto, pesquisadora em alimentos no Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). "H� muitos interesses comerciais se sobrepondo aos reais fatores de seguran�a."
"Nossa posi��o se mant�m; somos contr�rios � maneira como esse tema � tratado no Brasil", diz Marina Lac�rte, especialista do Greenpeace em Agricultura e Alimenta��o. Segundo ela, h� muitos conflitos de interesse envolvidos - inclusive dentro da CTNBio - e as libera��es "ainda s�o feitas sem a devida responsabilidade".
Rubens Nodari, da Universidade Federal de Santa Catarina, diz que o uso de agrot�xicos aumentou no Pa�s nesses 20 anos, e n�o h� certeza sobre a seguran�a alimentar dos transg�nicos, pois nem tudo � rotulado ou monitorado para isso.
'Card�pio' mais variado
Soja, milho e algod�o. A receita transg�nica � basicamente a mesma h� duas d�cadas; com algumas varia��es regionais - uma alfafa aqui, uma canola acol� -, mas nada muito al�m disso, fora do mundo das commodities. Novas tecnologias, por�m, prometem ampliar o card�pio de plantas geneticamente modificadas dispon�veis para o consumidor nos pr�ximos anos.
Todos os transg�nicos colocados no mercado at� agora foram desenvolvidos pela t�cnica de DNA recombinante, na qual genes de uma esp�cie s�o transferidos para outra em laborat�rio, usando diversas ferramentas de engenharia gen�tica. Uma tecnologia eficiente, mas trabalhosa, que exige a gera��o de milhares de plantas experimentais (chamadas eventos) para se chegar ao produto desejado.
Some a isso o peso de uma regulamenta��o rigorosa, e o resultado s�o anos de pesquisa e milh�es de d�lares em investimento, que s� grandes empresas costumam ter f�lego para encarar. Por isso o mercado de transg�nicos � dominado por um pequeno grupo de multinacionais.
Com a entrada em campo das novas t�cnicas de edi��o gen�tica, as regras do jogo come�am a mudar. Coletivamente chamadas de T�cnicas Inovadoras de Melhoramento de Precis�o (Timps), elas permitem fazer modifica��es pontuais no genoma de um organismo, com o objetivo de desligar, diminuir ou aumentar alguma caracter�stica gen�tica dele. "Achamos que � uma ferramenta que vai redemocratizar a biotecnologia a n�vel mundial", afirma Celso Moretti, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecu�ria (Embrapa).
A mais promissora das Timps � a t�cnica conhecida como crisper (Crispr), desenvolvida nos �ltimos cinco anos, que utiliza uma classe especial de enzimas para alterar, inserir ou apagar informa��es em pontos espec�ficos do genoma - funcionando como um editor de textos molecular.
Tecnicamente, o crisper � consideravelmente mais simples, r�pido e preciso do que as t�cnicas de DNA recombinante convencionais. E, como a modifica��o � feita no genoma da pr�pria planta - sem a necessidade de transferir genes entre esp�cies -, a expectativa � de que as variedades criadas por essas novas metodologias n�o sejam classificadas como "transg�nicas" e, portanto, n�o precisem passar por todos os testes e processos regulat�rios que regem o desenvolvimento e a comercializa��o desses produtos.
Atores
"Isso coloca de volta no jogo uma s�rie de atores que vinham atuando como coadjuvantes, mas poder�o se tornar protagonistas", afirma Moretti. Entre eles, a pr�pria Embrapa. A empresa lan�ou em julho um edital de R$ 10 milh�es, para estimular cientistas da casa a trabalhar com crisper e outras t�cnicas de edi��o gen�tica.
"N�o vamos mais precisar de tanto tempo e tanto investimento para desenvolver novos produtos", diz o pesquisador Elibio Rech, da Embrapa Recursos Gen�ticos e Biotecnologia, um pioneiro da transgenia no Brasil e entusiasta das Timps. "Certamente vai contribuir para aumentarmos a diversidade de organismos geneticamente modificados no mercado."
O card�pio de transg�nicos hoje � pequeno, segundos os pesquisadores, nem tanto por uma dificuldade t�cnica, mas principalmente porque o custo para se fazer todos os testes e obter todas as licen�as para colocar um produto no mercado � alto demais.
Das 76 plantas transg�nicas aprovadas pela CTNBio em 20 anos, s� quatro foram desenvolvidas no Brasil: um feij�o resistente a v�rus, uma soja resistente a herbicidas, uma cana-de-a��car resistente a lagartas e um eucalipto que cresce mais r�pido e produz mais madeira. "As dificuldades que existem hoje para liberar um produto transg�nico s�o muito grandes", explica Luiz Antonio Barreto de Castro, pesquisador aposentado da Embrapa. Ele defende uma moderniza��o da Lei Nacional de Biosseguran�a - que ele mesmo ajudou a criar, em 2005.
"Se o sistema fosse mais realista e valorizasse a ci�ncia brasileira, n�o h� a menor d�vida de que j� ter�amos feito muito mais", diz o bi�logo Paulo Arruda, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em gen�mica e biotecnologia.
Regulamenta��o
Em julho, o Tribunal de Justi�a da Uni�o Europeia decidiu que plantas com caracter�sticas geradas por edi��o gen�tica s�o equivalentes a transg�nicos e, portanto, devem ser regulamentadas como tal. Pesquisadores de diversos pa�ses, incluindo europeus, afirmaram que a decis�o carece de l�gica cient�fica. "N�o faz sentido dizer que mudan�as gen�ticas pontuais, que acontecem aos montes na natureza, s�o o mesmo que transgenia", defende Arruda.
No Brasil, a CTNBio decidiu em janeiro que produtos gerados por Timps devem passar por uma consulta � comiss�o, que decidir�, em uma an�lise caso a caso, se eles se encaixam na defini��o legal de transg�nicos do Pa�s. "Cada produto poder� ser considerado transg�nico ou n�o, dependendo das suas caracter�sticas", diz a bioqu�mica Maria Sueli Felipe, presidente da CTNBio.
A primeira decis�o com base nessa resolu��o foi dada em junho. A CTNBio concluiu que duas leveduras da empresa GlobalYeast, geneticamente modificadas para melhorar a produ��o de bioetanol, n�o eram organismos transg�nicos. "Acredito que vamos receber muitas consultas desse tipo daqui para a frente", afirma Sueli. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
GERAL