Um conjunto milenar de gravuras rupestres sagradas para povos do Alto Xingu, localizado em uma gruta a sudoeste do territ�rio do Parque Ind�gena do Xingu, foi depredado e danificado em algum momento nos �ltimos meses.
A destrui��o do principal painel com imagens que retratam a hist�ria de origem desses povos foi descoberto em uma expedi��o feita ao local a partir do dia 10 de setembro, que tinha o objetivo de fazer uma reconstitui��o das imagens para fins de conserva��o. E foi comprovada em vistoria do Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan) entre os dias 15 e 16.
O local est� na �rea de interesse para a constru��o da rodovia BR-242, ainda em fase de produ��o de estudo de impacto ambiental, e da Ferrovia de Integra��o do Centro-Oeste. Localizado fora da terra ind�gena, vem tamb�m sofrendo com desmatamento e com o assoreamento do rio.
Conhecido como Gruta de Kamukuwak�, o s�tio arqueol�gico, �s margens do rio Tamitatoala (ou Batovi), no Mato Grosso, � tombado pelo Iphan como patrim�nio cultural do Pa�s desde 2010 e � considerado sagrado por 11 etnias ind�genas do Alto Xingu. O povo Wauja se identifica como seus guardi�es.
Para eles, � a casa do l�der e her�i Kamukuwak�, uma entidade extra-humana que subiu ao c�u para trazer aos povos xinguanos o conhecimento ancestral ligado aos modelos �ticos de chefia tradicional.
Na cren�a xinguana, o povo de Kamukuwak� foi uma vez atacado pelo Sol, que, com inveja do l�der, atirou flechas em sua dire��o. "Mas ele era muito inteligente e virou o rosto. Assim a flecha acertou sua orelha. Quando o sol jogou outra flecha, ele virou o rosto de novo", contou ao Estado Pirat� Waur�, coordenador local do projeto de valoriza��o patrimonial da gruta do Kamukuwak�.
Da� vem o ritual de fura��o de orelha, em que se d� a inicia��o das jovens lideran�as ind�genas dentro dos preceitos defendidos por Kamukuwak�. Junto com o Quarup, � uma das mais importantes cerim�nias dos povos do Alto Xingu.
Era na gruta onde tradicionalmente ela era realizada, mas perdeu essa fun��o nos �ltimos anos por ter ficado muito longe de onde est�o as aldeias. Segundo Pirat�, � um dia e meio de viagem de barco para chegar l�, e a gruta vinha sendo usada mais para fun��es educativas.
"O povo Wauja leva seus filhos para aprender m�sicas. Os pais e av�s contam a hist�ria de Kamukuwak�, mostram os desenhos. � um lugar de aprendizagem. Na l�ngua de voc�s, � uma escola. O jovem pode se tornar cantor e grande l�der, conforme a hist�ria que Kamukuwak� criou para o povo dele", explica.
Danos
Pirat� estava junto com o grupo que descobriu a depreda��o no in�cio do m�s. "D� para ver as marcas de ferramenta na pedra. Parece que bateram com martelo, quebraram tudo", disse. "� uma perda muito grande. Quando destruiu coisas t�o importantes, atingiu todo mundo. N�o � s� do wauja, � de todo o Alto Xingu. Destru�ram a hist�ria. E origem � a nossa identidade."
A expedi��o, que contava com membros dos Wauja, uma equipe volunt�ria de assessoria arqueol�gica e representantes da funda��o inglesa Factum Foundation e da People�s Palace Projects, ligada � Universidade Queen Mary, de Londres, faz parte de um projeto que visa registrar o patrim�nio com a ajuda de tecnologias de imagens 3D. O material seria exposto na Bienal de Veneza do ano que vem.
Fl�vio Rizzi Calippo, diretor do Centro Nacional de Arqueologia do Iphan, disse que na vistoria que identificou o impacto �s gravuras, policiais militares que acompanhavam os t�cnicos viram sinais de que o dano foi intencional.
"Mas ainda estamos fazendo a avalia��o se foi um ato de vandalismo, um mal uso do local ou realmente uma a��o dirigida para afetar os locais sagrados dos ind�genas. Ele afirma que o Iphan fez uma den�ncia ao Minist�rio P�blico Federal e � Pol�cia Federal.
"Temos a no��o de que � um impacto grande, mas ainda n�o conseguimos detalhar qu�o grande. A base desse s�tio, que fica na beira do rio, est� coberta por areia, assoreada. O que se acredita, com base em documentos anteriores de vistoria, � que essa parte encoberta pode n�o ter sido impactada. Pode ser que n�o tenha ocorrido uma descaracteriza��o completa", diz.
Ele afirma que expedi��es anteriores n�o tinham observado nenhuma grande amea�a ao local. Segundo ele, o maior problema � que, como h� pequenas cachoeiras e corredeiras por perto, muita gente vai se banhar e tem pesca.
Tradi��o
A arque�loga Patricia Rodrigues, doutoranda em antropologia na Universidade de Notre Dame, nos EUA, e estudiosa da cultura Wauja, conta que desses ensinamentos de Kamukuwak� veio um comportamento extremamente diplom�tico. "Os Wauja n�o antagonizam com ningu�m, eles negociam tudo. Ningu�m ali estava pedindo para ampliar os limites das terras ind�genas para abranger a gruta, mas queriam preserva��o conjunta dos locais sagrados."
Ela explica que na hist�ria do confronto com o Sol, este come�ou a criar animais e os mandava para matar o povo de Kamukuwak� que estava escondido dentro da casa dele.
"Mas ele era t�o respeitoso que o animal virava amigo. A certo momento ele inventou os p�ssaros de bico duro e Kamukuwak� tamb�m o converteu como amigo e pediu para ele furar um buraco na parede para seu povo fugir. Foi por onde eles fugiram para o c�u. O buraco est� l� at� hoje. � considerado um portal para as aldeias que existem no c�u."
Para os ind�genas da regi�o, Kamukuwak� � um modelo de chefe. "E as hist�rias inspiram e servem de ve�culo para a transmiss�o do conhecimento da �tica e da moral de como ser chefe", complementa a pesquisadora.
O antrop�logo e arque�logo americano Michael Heckenberger, da Universidade da Fl�rida, que h� v�rios anos trabalha com tribos do Xingu e chegou a auxiliar o Iphan no processo de tombamento do s�tio, lamentou a perda. "Depois do inc�ndio no Museu Nacional (que destruiu o acervo antropol�gico e lingu�stico de v�rias tribos ind�genas), essa destrui��o � uma trag�dia.
Segundo ele, apesar de existir arte rupestre em outras partes da Amaz�nia, a da gruta de Kamukuwak� era "absolutamente �nica". S�o desenhos que n�o se encaixam em tradi��es de outras regi�es, explica, com o diferencial de ainda se relacionarem com o momento atual.
"S�o nitidamente desenhos xinguanos. � um caso �nico de tradi��o do passado que se liga definitivamente com um povo atual. Continua sendo um lugar dos esp�ritos de tempos primordiais", explica. Ele faz essa distin��o porque outros s�tios com arte rupestre s�o de povos que se perderam no passado, mas nesse caso n�o.
Tanto que os rituais s�o mantidos at� hoje, como o da fura��o de orelha, e as gravuras da gruta s�o a base de um sistema gr�fico reproduzido nas pinturas feitas nos corpos dos ind�genas e em seu artesanato tradicional.
Heckenberger destaca que o momento � de urg�ncia para que a regi�o seja escavada e investigada o mais rapidamente poss�vel - coisa que at� hoje, apesar do tombamento, ainda n�o foi feita. Ele conta que quando foi l� notou que o entorno da gruta provavelmente era um local de lascamento de pedra para fazer pontas de flecha e outros instrumentos.
"H� todo um s�tio arqueol�gico ali que vai al�m da arte rupestre presente no abrigo. Com um martelo podem ter acabado rapidamente com as gravuras, mas acredito que uma escava��o encontraria v�rios outros vest�gios no ch�o que est� soterrado. � super importante algu�m montar um trabalho para identificar o que ainda n�o foi tudo destru�do. Isso fica urgente agora."
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