Lei que torna racismo crime completa 30 anos, mas ainda h� muito a se fazer
Assinada em 5 de janeiro de 1989, pelo ent�o presidente da Rep�blica, Jos� Sarney, a lei passou a ser conhecida pelo nome de seu autor, o ex-deputado Ca�. Especialistas defendem mudan�a na educa��o
Havia o tempo em que os negros eram livres. Ent�o surgiu a escravid�o. Depois veio a liberdade. Mas a� brotou o preconceito. Surgiu, assim, um tempo em que discriminar as pessoas por causa da cor da pele era socialmente aceito e, aos olhos da Justi�a, apenas uma contraven��o penal. Para tentar p�r um fim a isso, h� exatos 30 anos, surgiu a Lei de nº 7.716, que define os crimes de racismo.
Assinada em 5 de janeiro de 1989, pelo ent�o presidente da Rep�blica, Jos� Sarney, a lei passou a ser conhecida pelo nome de seu autor, o ex-deputado Ca�. Carlos Alberto Ca� de Oliveira era jornalista, advogado e militante do movimento negro. Nascido em Salvador, mudou-se para o Rio de Janeiro, estado pelo qual, em 1982, elegeu-se deputado federal. Como constituinte, Ca� regulamentou o trecho da Constitui��o Federal que torna o racismo inafian��vel e imprescrit�vel. Depois, lutou para mudar a Lei Afonso Arinos, de 1951, que tratava a discrimina��o racial como contraven��o. Morreu em fevereiro de 2018, aos 76 anos.
Carlos Alberto Ca� de Oliveira era jornalista, advogado e militante do movimento negro (foto: foto: Reprodu��o)
A Lei Ca� define a puni��o para "os crimes resultantes de discrimina��o ou preconceito de ra�a, cor, etnia, religi�o ou proced�ncia nacional". Entre esses crimes, est�o impedir o acesso de uma pessoa devidamente habilitada a um cargo p�blico ou negar emprego na iniciativa privada, que podem render penas de dois a cinco anos de reclus�o.
Tamb�m s�o tipificadas como crimes a��es como impedir inscri��o de aluno em estabelecimento de ensino, recusar hospedagem em hotel ou similar, recusar atendimento em bares ou restaurantes e at� recusar atendimento em barbearias. Atitudes t�o impens�veis que parecem ter ficado no s�culo passado, certo? Infelizmente, n�o. Em 2017, o Minist�rio P�blico do Distrito Federal e Territ�rios (MPDFT) reuniu no livro Acusa��es de racismo na capital da Rep�blica estat�sticas dos crimes raciais no DF. Entre 2010 e 2016, o n�mero de den�ncias subiu 1.190%, chegando a 129. Destas, sete foram de racismo e as outras 122 de inj�ria racial.
Conforme defini��o apresentada pelo MPDFT, o crime de racismo � caracterizado por uma conduta discriminat�ria dirigida a um determinado grupo ou coletividade. Este � o crime definido pela Lei Ca�. Ele n�o depende de representa��o da v�tima, podendo a den�ncia ser feita pelo Minist�rio P�blico.
J� a inj�ria racial � a ofensa � honra de uma pessoa, usando, para isso, elementos como a ra�a, cor, etnia, religi�o. Nesse caso, a v�tima precisa entrar com representa��o.
Embora celebrem a cria��o da lei, especialistas ressaltam que ela demorou a ser criada. “Demorou a haver o entendimento de que era necess�rio um dispositivo legal para coibir essas pr�ticas. O Brasil deixou de ser escravocrata h� 130 anos e a lei est� completando 30. Ou seja, h� uma lacuna de 100 anos", avalia a professora de educa��o b�sica e autora do projeto "Mulheres Inspiradoras", Gina Vieira. "O ganho mais importante dela � o pedag�gico. Existe o mito da democracia racial, de que n�s n�o somos um pa�s racista, de que o racismo � velado. Para os negros, ele nunca foi velado, porque acontece diuturnamente. A lei mostrou que o Brasil �, sim, um pa�s racista e precisa de a��es efetivas para lidar com isso", acrescenta.
Gina Vieira e F�bio Esteves: "� preciso avan�ar na educa��o" (foto: Minervino Junior/CB/D.A Press e Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press)
"Evidentemente, a lei serve como instrumento para que possamos refletir sobre isso. Mas � uma lei que tem s� 30 anos. O Brasil viveu 350 anos de escravid�o e ela s� veio 100 anos depois da aboli��o. Ela n�o conseguiu impedir [o racismo]. Ainda tivemos diversos registros envolvendo discrimina��o", refor�a o juiz F�bio Esteves, presidente da Associa��o dos Magistrados do DF (Amagis-DF) e um dos organizadores do Encontro Nacional de Ju�zas e Ju�zes Negros, evento que j� teve duas edi��es.
Mais mudan�as
Ap�s a Lei Ca�, o Brasil teve outras legisla��es importantes na luta para combater a discrimina��o racial. Entre elas, o Estatuto da Igualdade Racial, lei sancionada em julho de 2010 pelo ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva e cujo objetivo � "garantir � popula��o negra a efetiva��o da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos �tnicos individuais, coletivos e difusos e o combate � discrimina��o e �s demais formas de intoler�ncia �tnica".
Outra mudan�a na legisla��o — essa mais pol�mica — foi a cria��o das cotas raciais. Sancionada em agosto de 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff — para regular uma pr�tica que j� era adotada em algumas institui��es, como a Universidade de Bras�lia (UnB), que foi pioneira na ado��o das cotas raciais —, a lei reserva uma quantidade de vagas em universidades federais para negros e ind�genas, proporcional ao n�mero de negros e ind�genas na unidade da Federa��o em que a institui��o est� instalada. Desde a sua cria��o, por�m, as cotas raciais v�m sendo criticadas por alguns grupos. Entre os cr�ticos est� o, agora, presidente da Rep�blica, Jair Bolsonaro.
UnB foi a primeira universidade do pa�s a adotar cotas raciais, em junho de 2003 (foto: Ed Alves/CB/D.A Press)
Atualmente, diversos projetos de lei relacionados ao racismo est�o em tramita��o no Congresso Nacional. No Senado, um deles quer incluir a motiva��o por racismo como agravante para os crimes previstos no C�digo Penal. J� na C�mara, h� propostas para coibir o racismo em eventos esportivos, para igualar a inj�ria racial ao racismo, para tipificar o racismo cometido na internet e at� para transformar o racismo em crime hediondo.
Mais do que as mudan�as na lei, os especialistas defendem, sobretudo, uma mudan�a na educa��o. “Ainda � necess�rio avan�ar na fun��o pedag�gica para enfrentar o racismo nas suas mais diversas dimens�es: o racismo ideol�gico, o racismo institucional, a forma como a sociedade � estruturada”, elenca Esteves.
“A estrat�gia mais efetiva [para combater o racismo] � a educa��o. O Brasil � um pa�s profundamente racista e que nunca teve uma a��o efetiva de repara��o. Por anos, houve um esfor�o sistem�tico para embranquecer a popula��o. Acreditava-se que a raz�o do atraso era a presen�a de pessoas negras. Al�m disso, tentam apagar o nosso passado escravocrata. Sabe-se muito pouco do que foi a escravid�o. Se as pessoas conhecessem a nossa hist�ria, dificilmente insistiriam nesse mito de democracia racial. E, para al�m da educa��o na escola, � preciso pensar na educa��o da sociedade como um todo. Se os agentes de pol�cia, por exemplo, conhecessem essa hist�ria, eles repensariam suas abordagens", pontua Vieira, que ainda acrescenta haver uma necessidade de estimular as den�ncias de casos de racismo: "As pessoas falam que os negros reclamam muito. Mas de cada 10, 20 situa��es racistas que eles vivem, denunciam uma".