Algemada, Daiane entrou na sala 9 de audi�ncia de cust�dia com os olhos vermelhos de tanto chorar. No fim da manh� da primeira quinta-feira de mar�o, a jovem de 26 anos era a primeira a ter a legalidade da sua pris�o por tr�fico de drogas, realizada no dia anterior, avaliada por um juiz, nesse caso uma ju�za, que tamb�m decidiria se ela seguiria presa ou poderia aguardar o andamento do processo em liberdade.
O Complexo Judici�rio Ministro M�rio Guimar�es, na Barra Funda, � uma estrutura imensa espalhada por 115 mil metros quadrados inaugurada pelo ent�o governador M�rio Covas no ano 2000, na �poca com a previs�o de abrigar at� 50 varas. � mais conhecido por sediar os grandes j�ris populares da cidade em seu plen�rio e tamb�m pelas longas filas para passar pelo Raio X da entrada.
No seu subsolo, hoje ju�zes analisam em nove salas as pris�es realizadas em toda a capital nas �ltimas 24 horas. � um ritmo industrial em que as audi�ncias raramente se estendem por mais de 15 minutos quando se trata de somente uma pessoa presa. Figuram no rol dos crimes mais comuns analisados casos de furto, roubo e tr�fico de drogas.
O preso � escoltado por um policial militar que usa luvas descart�veis azuis at� a entrada da sala onde ocorrer� a audi�ncia, onde geralmente est�o o juiz, um assistente, um promotor e um advogado. Virado para a parede, do lado de fora da sala, o suspeito tem o primeiro contato com o respons�vel pela sua defesa; n�o raro trata-se de um defensor p�blico.
Em poucos minutos, o defensor entrevista o novo cliente, buscando informa��es que possam ajudar no pleito de liberdade, como trabalho l�cito e resid�ncia fixa, filhos, antecedentes e a circunst�ncias da pris�o, se houve excesso na abordagem policial ou at� tortura, por exemplo.
Daiane se senta na cadeira posta junto � mesa, onde na outra ponta est� uma ju�za. A primeira pergunta que tem de responder � se trabalha. "Fa�o bico de bab�, mas com mais frequ�ncia fa�o programa." Quanto ganha por m�s? "R$ 1,2 mil". E usa drogas? "Uso coca�na, senhora". A resposta ser� chave para o desfecho da audi�ncia.
No dia anterior, a pol�cia havia realizado uma abordagem onde encontrou 17 por��es da droga no interior da sua bolsa. A suspeita diz que usa a subst�ncia quando sai para trabalhar, mas n�o comenta, em parte porque n�o � perguntada, se tamb�m vende a droga no expediente. Na delegacia, � classificada como traficante.
O que se segue � muito r�pido. Uma promotora d� o parecer pela liberdade de Daiane, pois h� uma d�vida no tipo penal a ser aplicado no caso: artigo 33 (tr�fico) ou artigo 28 (porte para uso)? A defensora p�blica que acompanha o caso aproveita para acrescentar que a quantidade n�o � significativa e o policial que prendeu Daiane n�o flagrou a trafic�ncia, ou seja, o momento em que ela supostamente estaria negociando a droga.
De pronto, a ju�za decide pela liberdade em raz�o da d�vida e determina a soltura da suspeita. O destino de Daiane � incomum para casos similares, de acordo com defensores, promotores e advogados que lidam com audi�ncias de cust�dia rotineiramente. No dia em que a reportagem acompanhou as decis�es, em dez audi�ncias ela foi a �nica a ser liberada nesses moldes.
Geralmente, a d�vida joga contra o r�u nesse est�gio do processo em raz�o das caracter�sticas do crime de tr�fico de drogas. A Constitui��o o equipara a um crime hediondo, de grande gravidade, como um homic�dio qualificado, latroc�nio ou estupro. E esse � um fator lembrado em todas as audi�ncias.
Quando o juiz decidiu que F�bio, de 18 anos, permaneceria preso e que s� em aproximadamente quatro meses ele poderia discutir a sua culpa, ou inoc�ncia, no crime de tr�fico de drogas, ele pareceu primeiro surpreso e logo depois indignado.
Com ele, a pol�cia disse ter achado 15 por��es de maconha e pouco dinheiro trocado. Os investigadores teriam flagrado quando ele e outros suspeitos organizavam uma fila indiana em que usu�rios adquiriam a droga. Na delegacia, segundo o processo, ele confessou o crime, mas ao juiz tentou um �ltimo apelo: "Eu estava l�, mas n�o estava vendendo. A droga n�o era minha."
N�o deu certo
Tanto a promotora quanto o juiz lembraram no parecer e na decis�o que o delito � considerado grave e equiparado a hediondo e que o suspeito estava em uma "movimenta��o t�pica de tr�fico", outra descri��o que seria repetida em diversas audi�ncias. N�o sensibilizou o magistrado o pedido do defensor alegando que o suposto crime � cometido sem viol�ncia ou grave amea�a e que a manuten��o da pris�o nesse est�gio do processo � desproporcional.
Os defensores falam isso apontando que, ainda que sejam condenados ao fim do processo, r�us prim�rios podem ter a pena reduzida de cinco anos para at� 1 ano e 8 meses, hip�tese na qual sequer ficariam presos. Ou seja, eles podem passar mais tempo preso esperando o julgamento do seu processo do que condenado ao final dele.
Mas isso n�o costuma sensibilizar os ju�zes, na vis�o do advogado Wilson Oliveira Santos. Ele diz atuar semanalmente em diversos casos na Barra Funda, a maioria tr�fico, e tem uma opini�o forte sobre os magistrados do local. "Na Barra Funda, os ju�zes n�o soltam ningu�m.
Se tiver cinco pininhos de coca�na, vai ficar preso, n�o adianta", diz. Ele conta que a sorte � melhor para os suspeitos presos em cidades da regi�o metropolitana, como Osasco. "L�, j� consegui soltar duas mulheres com dez quilos de maconha. Elas tinham filhos. L�, os ju�zes cumprem a lei."
O defensor p�blico V�tore Maximiano, que foi secret�rio nacional de Drogas entre 2013 e 2015, atuou nas audi�ncias de cust�dia de 2015 a 2018. Ele conta que o padr�o se repete: a��o da Pol�cia Militar, sem testemunhas ou outras provas, que prende negros pobres com pouca quantidade de droga.
"N�o obstante o avan�o tecnol�gico que tivemos, n�o h� filmagem, intercepta��o telef�nica, continuidade da investiga��o de qualquer maneira. N�o se apura como a droga chegou at� ali, de onde veio. O que se sabe � que o preso vai ser imediatamente substitu�do na cadeia do tr�fico e que essa pris�o n�o tem nenhum significado, al�m de onerar o Estado", diz.
A subjetividade da lei, sustenta, abre margem para que o delegado defina o que � tr�fico a partir de elementos pouco claros, como a personalidade do suspeito, a cor da pele ou outros elementos sobre as caracter�sticas da regi�o onde a pris�o ocorreu. "Ent�o, o juiz da cust�dia converte a pris�o em preventiva e o achismo segue durante todo o curso do processo sem nenhum elemento mais robusto de prova."
A �nica hip�tese em que as chances de liberdade aumentam para o suspeito � quando ocorre um erro de procedimento, quando a delegacia deixa de enviar algum documento importante, como o laudo do tipo e quantidade da droga.
T�rcio tem 20 anos, mas aparenta menos por conta da sua cara de adolescente e sua magreza. Na audi�ncia de cust�dia, foi apresentado descal�o e com uma camisa do Corinthians rasgada na altura do ombro, onde se via um arranh�o.
�s tradicionais perguntas sobre trabalho e renda, responde que entrega panfleto para uma loja na Vila Medeiros, na zona norte da capital. No Jardim Modelo, perto dali, onde mora, diz que estava de passagem para comprar droga, pois � usu�rio. Iria comprar um pino de coca�na, mas acabou imobilizado por um pol�cia civil que o acusa de ser olheiro para uma biqueira da regi�o.
Com ele e supostos comparsas foram encontrados 19 por��es de maconha e 47 de coca�na, enfraquecendo a tese de usu�rio. Para a promotoria, a diversidade das drogas � um fator importante para comprovar que o destino delas seria a venda. Apesar do pedido de pris�o preventiva, o juiz, com um ar de resigna��o, decide liber�-lo.
A defesa apontou que a descri��o da pol�cia n�o detalhou com quem estava a droga, se estava com T�rcio ou com seus comparsas, e por isso o documento teria de retornar � delegacia para ser preenchido corretamente, justificando a liberdade do suspeito.
Para remediar o problema, o magistrado decide por medidas cautelares como recolhimento noturno em casa e comparecimento mensal ao f�rum. "J� sabe, n�? Da pr�xima vez, h� enorme chance de ficar preso", diz o juiz.
Casos como o que levou � pris�o de David, de 34 anos, aparecem na Barra Funda com menos frequ�ncia. Segundo a pol�cia, foram encontrados no interior da casa dele 4 quilos de maconha e 500 gramas de coca�na, al�m de uma arma de fogo. Ele j� havia sido preso em 2016 sob suspeita de tr�fico, mas foi absolvido, segundo conta na audi�ncia.
Dessa vez, a promotora aproveita para, al�m de destacar que se trata de um crime grave e equiparado a hediondo, discorrer sobre as consequ�ncias da pr�tica criminosa, que "vem causando grande temor na sociedade e se relacionando com o aumento cada vez maior da viol�ncia". A defensora p�blica do caso n�o tem muito a fazer e sem apresentar nenhum argumento pede a liberdade do acusado, que, como tudo indicava, n�o a consegue. Ficar� preso at�, no m�nimo, o julgamento do seu processo.
Varejo de drogas � ponta da organiza��o criminosa, diz delegado-geral
Ruy Ferraz Fontes fala com conhecimento de quem tem 31 anos como delegado no Estado de S�o Paulo, quase dez deles no departamento especializado de repress�o ao narcotr�fico - sendo uma passagem no in�cio dos anos 1990 e outra como diretor desse departamento de 2015 a 2018.
Hoje delegado-geral, ele diz que o tr�fico de drogas n�o � mais como era h� 20 anos, quando um criminoso solit�rio comprava um quilo de coca�na no Mato Grosso, vindo da Bol�via ou do Paraguai, para revender no seu ponto de varejo. "Hoje, o ponto n�o � mais dele, � de organiza��o criminosa, que coloca esse soldado na ponta para vender e se ele for preso � problema dele, ser� substitu�do imediatamente."
Isso, para ele, mudou a import�ncia que a pol�cia dava ao combate a esses pequenos pontos de venda de droga. Se antes n�o tinham tamanha relev�ncia, agora, diz, permite entender como o crime organizado tem funcionado para combat�-lo de forma mais eficaz. "No passado, a pequena apreens�o n�o tinha um valor muito significativo e hoje tem porque voc� t� lidando com a ponta do crime organizado. Temos puxado essa ponta", diz. A resposta � dada ao ser perguntado a recorr�ncia da pris�o de pequenos traficantes, como apontado no estudo da Associa��o Brasileira de Jurimetria (ABJ).
Ele explica que o varejista preso s� � pego com pouca quantidade porque isso integra a estrat�gia do crime organizado para minimizar os preju�zos em caso de a��o policial. "O traficante sai com 20, 30 unidades. Na hora que acaba de vender, vai pegar mais 30, 40", detalha. A pol�cia estima que at� 40% dos pontos de venda sejam protegidos por arma de fogo. E isso representa duas coisas: que as armas podem ser usadas com outras finalidades, como para praticar assaltos, e ainda torna o ponto uma refer�ncia de poder capilarizado da organiza��o criminosa.
Fontes conta que uma investiga��o do Denarc que atuou contra um com�rcio de drogas na Avenida Presidente Wilson, na capital, levou � identifica��o de um sistema automatizado de recep��o e distribui��o de drogas. O l�der? Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, tido como um dos maiores fornecedores de drogas e armas para o Primeiro Comando da Capital (PCC), muito pr�ximo de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, l�der m�ximo da fac��o. Seu nome chegou a ser ligado ao plano de resgate de Marcola da pris�o, um dos motivos que fez o Estado de S�o Paulo transferi-lo para o sistema penitenci�rio federal.
"A partir da ponta da Presidente Wilson, achamos na Vila Prudente pontos com m�quinas automatizadas que embalavam at� 150 mil unidades por dia. Elas foram estourados e numa dessas chegamos nele, ele foi indiciado. N�o � que n�o serve (a pequena pris�o)", diz Fontes. A for�a dos pequenos pontos pode vir a sustentar a��es coordenadas da fac��o, acrescenta. Ele conta que nos ataques de 2006, que paralisaram S�o Paulo, o poderio de fogo do PCC saiu dos pontos de venda a varejo. "Nesse sentido, temos tudo mapeado. Se um dia isso voltar a acontecer, o que n�o acredito, j� sabemos onde ir."
O delegado, no entanto, reconhece que a atua��o do Denarc, um departamento especializado, n�o condiz com a realidade das delegacias distritais, onde � registrada a maior parte dos casos de tr�fico, e de onde saem poucas investiga��es que consigam puxar a ponta do crime organizado. Nas distritais, h� outras prioridades, como investiga��o de roubos e furtos, por exemplo.
Fontes diz que, no momento de se realizar a distin��o entre traficante e usu�rio, o mais importante "� a circunst�ncia da ocorr�ncia". "Foi preso num local que � conhecido especificamente como de tr�fico com diversas com diversas ou algumas por��es de drogas, dinheiro trocado, foi apanhado junto com ele uma pessoa que estava adquirindo droga. Isso tudo gera um cen�rio positivo para que se autue o sujeito por tr�fico de entorpecentes", diz.
Ele conta que a renda do suspeito � algo que rotineiramente � levado em considera��o nessa tomada de decis�o. "Voc� pega um sujeito que tem um poder econ�mico grande se ele estiver com 200 gramas de coca�na ele tem capacidade de adquirir aquilo para o uso. Se voc� pegar um sujeito que n�o tem poder econ�mico de portar 300 gramas de coca�na, j� fica complicado. Teria de considerar que ele est� na realidade investindo naquilo para ganhar dinheiro. N�o vai investir naquilo para o uso, n�o tem dinheiro para isso", explica.
As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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