O piauiense Jo�o Nilson Alves da Silva, de 29 anos, n�o gosta de televis�o nem de celular, n�o pensa em ter dinheiro ou sal�rio. "Minha vida � ficar aqui, cuidando dos velhinhos", diz, enquanto ajuda internos da comunidade terap�utica Vinde Vida, uma �rea rural a 30 minutos do centro de Bras�lia. "L� fora a vida � de perdi��o. Aqui, aceito Jesus e ajudo", conforma-se o homem, que h� dois anos chegou ao centro em busca de tratamento para depend�ncia de drogas e n�o quis mais sair.
O receio de deixar o centro n�o � incomum. S�o in�meros os relatos de pessoas que se internam, alcan�am a abstin�ncia, retornam para o conv�vio social e voltam a ter problemas com o abuso de drogas. "Estima-se que 70% dos pacientes tenham reca�da, passado um ano do fim da interna��o", afirma a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada (Ipea) Maria Paula Gomes dos Santos, que coordenou um estudo sobre o perfil dessas comunidades no Pa�s.
J�lio S�rgio Oliveira sabe bem o que � isso. Aos 37 anos, atrapalha-se para contar sua hist�ria de tratamentos e reca�das. "Eu fico bem aqui na comunidade. � voltar para casa, ter uma briga ou passar um aperto que a vontade de usar drogas acaba falando mais alto." Casado, pai de Isabella e Lucas, com 7 e 11 anos, espera que esta interna��o seja diferente. "Estou trabalhando para isso. Com f�. Vamos ver", diz, sem disfar�ar as incertezas.
Mesmo sem resultados animadores, a abstin�ncia passou a ser considerada a estrat�gia priorit�ria pelo governo de Jair Bolsonaro para pessoas que t�m problemas com drogas. Um decreto com a nova orienta��o foi publicado em abril e o Senado aprovou nesta quarta-feira, 15, um projeto de lei na mesma linha. A proposta amplia a import�ncia das comunidades, centros de reabilita��o que, em sua maioria, funcionam com base em cultos de f�, terapia pelo trabalho e abstin�ncia. Tais centros, que chegam a 2 mil no Pa�s, raramente s�o fiscalizados. "As comunidades estavam proibidas de trabalhar, eram tratadas como novos manic�mios, o que n�o s�o", afirmou o ministro da Cidadania, Osmar Terra.
� frente do minist�rio, Terra impulsionou o credenciamento desses centros, ampliando o financiamento da atividade. Hoje, o governo federal repassa recursos para uma entre cada quatro comunidades terap�uticas no Pa�s. Mas Terra ainda n�o est� satisfeito. At� o pr�ximo ano, ele quer passar de 10,9 mil para 20 mil o n�mero de vagas financiadas. Se a meta se concretizar, cofres p�blicos, que hoje transferem R$ 148,9 milh�es, passar�o a reservar R$ 297,8 milh�es para a atividade.
A fartura no financiamento surpreende, sobretudo quando comparada com a evolu��o dos investimentos nos Centros de Atendimento Psicossocial de �lcool e Drogas (CAPS-AD), coordenados pelo Minist�rio da Sa�de - a pasta que em tese tem como atribui��o realizar o tratamento de dependentes de drogas no Pa�s. Existem em todo o Brasil 331 unidades desse tipo, o mesmo n�mero que o apresentado h� tr�s anos. O gasto com o atendimento ambulatorial em 2018 foi de R$ 4,2 milh�es.
Pode parecer pouco quando comparado com o que o Minist�rio da Cidadania vai destinar para as comunidades. Mas j� foi muito menos. Em 2017, o gasto com atendimento ambulatorial foi de R$ 1,08 milh�o. Leitos para atendimento de pacientes, dispon�veis tanto em hospitais gerais quanto psiqui�tricos, somam 17,9 mil.
Secret�rio do Minist�rio da Sa�de, Erno Harzheim admite que os servi�os para atendimento de pacientes com problemas de �lcool e drogas na Sa�de s�o em n�mero insuficiente, mas afirma que a pasta est� alinhada com o Minist�rio da Cidadania. O argumento � de que a expans�o das comunidades terap�uticas � feita com recursos da outra pasta e, portanto, n�o h� concorr�ncia, mas soma de esfor�os.
N�o � essa, por�m, a avalia��o de pessoas que trabalham na ponta. "Os recursos v�m todos da Uni�o", afirma Leonardo Pinho, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos e vice-presidente da Associa��o Brasileira de Sa�de Mental. "S�o mensagens distintas. H� o discurso de investimento nas comunidades e cl�nicas e uma eterna justificativa de que n�o h� verba para a expans�o do Sistema �nico de Sa�de", completa.
O secret�rio de Cuidados e Preven��o �s Drogas do Minist�rio da Cidadania, Quirino Cordeiro, avalia que a mudan�a na abordagem vem em boa hora. Cr�tico do modelo adotado at� h� dois meses, que enfatizava a redu��o de danos no tratamento de dependentes, ele avalia que, agora, o tratamento trar� resultados positivos. O principal objetivo da redu��o de danos � proporcionar qualidade de vida para o paciente e atra�-lo para que seja acompanhado em terapias ambulatoriais. A abstin�ncia � o objetivo a ser alcan�ado, mas n�o condi��o indispens�vel.
Animado com as mudan�as previstas pelo governo Bolsonaro, Quirino acredita que os dados sobre depend�ncia qu�mica no Brasil dever�o apresentar melhoras importantes. Mas, para isso, ser� preciso ir al�m da simples mudan�a no papel. "Ser� necess�rio alterar o funcionamento dos CAPS-AD", afirma Cordeiro. Para ele, agora � preciso que tamb�m profissionais de sa�de que atuam nesses centros passem a dar prioridade para a abstin�ncia.
Harzheim, por sua vez, considera que a mudan�a de estrat�gia permitir� oferecer o tratamento mais efetivo para cada pessoa, respeitando as peculiaridades. Para ele, caber� ao profissional tomar a decis�o sobre qual estrat�gia seguir. Embora a liberdade seja concedida, o secret�rio do Minist�rio da Sa�de esclarece que, em processos de educa��o permanente, profissionais de sa�de ser�o esclarecidos sobre as abordagens que o governo considera mais efetivas para serem usadas.
Estudos
A exemplo de Cordeiro, o secret�rio do Minist�rio da Sa�de afirma haver estudos cient�ficos que comprovam que a abstin�ncia tem efeitos superiores aos d a redu��o de danos. Para dar base a sua opini�o, o secret�rio apontou sete trabalhos. O Estado apresentou a rela��o de estudos para o professor do Departamento de Psicologia M�dica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Lu�s Fernando T�foli. "Nenhum dos textos apresentados prova que a redu��o de danos � pior ou melhor do que a abstin�ncia. Ao contr�rio da pol�tica assumida pelo governo federal, os textos indicam que a��es plurais - e n�o excludentes - s�o necess�rias", avalia.
T�foli sintetiza uma das maiores cr�ticas feitas por especialistas em sa�de ao novo formato de tratamento de depend�ncia qu�mica previsto pelo governo Bolsonaro: a exist�ncia de uma hierarquia ou de uma disputa entre as estrat�gias de tratamento. "� uma grande fal�cia dividir entre o lado de abstin�ncia e o lado da redu��o de danos. Existem pacientes que precisam da abstin�ncia e pacientes que precisam de redu��o de danos. N�o h� oposi��o."
RS
Reduto eleitoral do ministro da Cidadania, Osmar Terra, o Rio Grande do Sul � o terceiro Estado no Pa�s com maior n�mero de comunidades terap�uticas, atr�s apenas de S�o Paulo e Minas. Para a pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada (Ipea) Maria Paula Gomes Santos, essa profus�o de centros no Estado pode, em parte, explicar a predile��o do ministro por essa forma de tratamento para dependentes qu�micos. "N�o h� nenhum estudo que mostre que as comunidades s�o mais eficientes. N�o h� tamb�m nenhuma compara��o sobre os custos de cada uma das estrat�gias", comenta a pesquisadora.
Com popula��o estimada de 11,3 milh�es de pessoas, o Rio Grande do Sul concentra 234 comunidades, o equivalente a 12% do total do Pa�s. A pesquisadora diz que, com as informa��es cient�ficas atuais, n�o � poss�vel dizer qual estrat�gia � mais eficaz. "Na trajet�ria do usu�rio, a necessidade terap�utica depende do momento. A virtude est� no meio", avalia Maria Paula, que tamb�m n�o poupa cr�ticas ao pensamento comum at� 2015 de que o �nico tratamento eficaz para pacientes era o ambulatorial e redu��o de danos.
A fiscaliza��o das comunidades, contudo, deixa muito a desejar. N�o h� estat�sticas nacionais sobre as infra��es cometidas por esse tipo de institui��o. A Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) afirma que a responsabilidade do monitoramento � de vigil�ncias estaduais. O �nico controle feito pela ag�ncia � sobre den�ncias realizadas.
Os n�meros mostram baix�ssimos indicadores de comunicados: em 2018, foram apenas 12. Desses registros, por�m, 13,2% foram considerados com prioridade m�xima por causa do alto potencial de provocar danos. Entre as irregularidades que se destacaram estavam as p�ssimas condi��es de higiene e infraestrutura, superlota��o e administra��o inadequada de medicamentos.
Semana passada, enquanto comemorava a aprova��o nas comiss�es do Senado que impulsionava as comunidades terap�uticas e passava a consider�-la como parte do Sistema Nacional de Pol�ticas sobre Drogas, o ministro fez refer�ncia � redu��o de danos. "Estamos h� muito tempo sem uma pol�tica de drogas efetiva no Brasil. Vendo experi�ncias serem feitas, com m�todos de tratamento que n�o funcionam." Para ele, comunidades terap�uticas chamadas de "dep�sitos de pacientes" s�o exce��o.
A certeza do ministro n�o � acompanhada nem pelo diretor da Federa��o Brasileira de Comunidades Terap�uticas (Febract) Pabro Kurlander. Para ele, a maior parte das comunidades terap�uticas n�o deveria ter esse nome. "Elas permitem a interna��o involunt�ria, n�o t�m m�todos terap�uticos, n�o t�m atividades espec�ficas, praticam maus-tratos, violam direitos", enumera. "A impress�o de muitas das institui��es � de que n�o h� atividades dirigidas para pacientes. Tudo gira em torno de cultos religiosos, do trabalho", afirma a enfermeira do CAPS-AD Candango Vanessa Ribeiro. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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