O isolamento completo era a �nica op��o na �poca. "Foram 16 anos da minha vida perdidos", recorda Gilberto Jos� Barbella. Enviado para a col�nia de Cocais, no interior do Estado de S�o Paulo, quando tinha 14 anos - e a doen�a ainda se chamava lepra -, o aposentado viveu todo aquele tempo longe da fam�lia e dos amigos. "Sa� de l� com 30 anos, casado e com uma filha."
A hist�ria de Barbella, hoje com 89 anos, se repete entre as pessoas que foram diagnosticadas com hansen�ase a partir de 1920. Naquele ano, foi instaurada a Inspetoria de Profilaxia e Combate � Lepra e Doen�as Ven�reas, que criou dezenas de lepros�rios no Brasil. Os espa�os eram minicidades onde se encontrava de tudo, desde cinema at� delegacia. O objetivo era oferecer servi�os b�sicos aos pacientes para que n�o tivessem contato com o mundo externo.
A inspetoria foi extinta em 1934, mas s� em 1962 a interna��o compuls�ria deixou de ser regra. Como legado, as casas de isolamento, que duraram at� o final da d�cada de 1980, refor�aram o estigma social vivido pelas pessoas doentes.
"Eu sofro muito preconceito at� hoje, no conselho de sa�de, no trabalho, na escola, na igreja. Eu me sinto muito triste e com pena das pessoas que n�o teve (sic) a oportunidade que eu tive de conhecer a patologia", diz Francisca Barros da Silva, de 63 anos. Ela morava em uma tribo ind�gena no Amazonas quando profissionais da sa�de suspeitaram que ela tinha hansen�ase.
"Quando desconfiaram, eu fui tirada do seio da minha fam�lia. Fui em um navio, no fundo, com um respons�vel da Funai (Funda��o Nacional do �ndio) para me levar pro hospital", conta. Na �poca, ela tinha nove anos. Sozinha, a menina foi levada pelo �rg�o nacional para uma unidade de sa�de em Rio Branco, no Acre, e de l� para a col�nia Souza Ara�jo, de onde saiu aos 14 anos.
Estigma social
A doen�a � antiga, h� refer�ncias � hansen�ase j� no s�culo seis antes de Cristo. O Velho Testamento relata, por exemplo, que o rei Uzias foi punido por Deus ap�s acender incenso no templo, algo que s� era permitido aos sacerdotes. "O rei Uzias sofreu de lepra at� o dia em que morreu. Durante todo esse tempo, morou numa casa separada, leproso e exclu�do do templo do Senhor", diz o livro de II Cr�nicas.
Vale destacar que o termo hebraico para a doen�a n�o se referia apenas � lepra, mas a diversas enfermidades que deixavam marcas na pele ou a fazia escamar. "Dizia-se que a pessoa recebeu uma puni��o de Deus. Em rela��o ao estigma e religi�o, existe culpa, puni��o e impureza", avalia Laila de Laguiche, dermatologista e hansenologista, fundadora do Instituto Alian�a contra Hansen�ase (ACH).
Claudio Salgado, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia, acredita que a interna��o compuls�ria "tem grande culpa" no estigma. "Na sociedade, est� introjetado e �, como muitas outras coisas no Brasil, velado", afirma ele, que tamb�m � dermatologista e hansenologista.
Em 2016, quatro antigos hospitais de isolamento do Estado de S�o Paulo tiveram as instala��es tombadas pelo �rg�o de defesa do patrim�nio paulista - entre eles, o local para onde Barbella foi levado � for�a pela pol�cia sanit�ria que ca�ava os doentes pelas ruas da cidade.
As tristes consequ�ncias da hansen�ase, hoje evit�veis, como m�os e p�s atrofiados e rosto deformado, s�o outros motivos apontados por Isabelle Roger, assessora regional em Doen�as Negligenciadas da Organiza��o Pan-Americana da Sa�de (Opas) e da Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS).
"A hansen�ase tem sido uma doen�a altamente estigmatizante por s�culos porque causa desfigura��o f�sica e nenhuma cura estava dispon�vel at� o s�culo 20. Muitas vezes, causa medo na sociedade como uma doen�a mutiladora, contagiosa e incur�vel", afirma. Hoje, sabe-se que a primeira dose do tratamento j� impede a transmiss�o da enfermidade, que tem cura.
Ela afirma que o estigma impacta no controle da hansen�ase. "Pessoas com condi��es estigmatizantes como a lepra podem ocultar ou negar sua condi��o e atrasar a busca por tratamento", diz. Esse autoisolamento pode agravar a doen�a, aumentar o risco de complica��es e de transmiss�o, al�m de dificultar o rastreamento de outros casos.
Preconceito
Barbella conta que, tr�s meses ap�s sair da col�nia de isolamento, j� queria voltar. E olha que o tratamento l� n�o era dos melhores. "O preconceito era demais aqui (fora). Fui tirado de dentro do �nibus no meio da estrada porque tinha uma fam�lia que sabia que fui internado. O barbeiro n�o cortava meu cabelo. A gente ia comprar mercadoria, o cara que vende n�o pegava no dinheiro. Hoje mudou, mas ainda tem", conta o aposentado.
Negligenciada, muitos acreditam que a hansen�ase j� foi extinta. Pouco se fala sobre ela, pouco se sabe, e a falta de conhecimento � uma forte barreira no �rduo caminho pelo fim do estigma social. Nos anos 1980, j� curada e morando em Curitiba, capital do Paran�, Francisca foi sutilmente expulsa da casa onde morava de aluguel devido �s sequelas deixadas pela doen�a.
"O dono da casa perguntou o que foi na minha m�o. Eu falei pra ele: 'olha, eu poderia mentir, falar que me queimei, mas n�o �, eu tive hansen�ase'. Ele perguntou 'o que � isso?' e falei que era a antiga lepra. Ele se afastou tr�s passos de mim e foi embora. Passou (sic) 15 dias, falou pro filho dele me dizer que a casa ia passar por reforma. At� hoje est� l� e eu soube que ele mandou dedetizar", conta ela.
As m�os e os p�s de Francisca quase sem dedos ainda despertam curiosidade, mas ela afirma que n�o se incomoda com as perguntas. "Na verdade, acende um fogo dentro de mim e eu quero falar sobre hansen�ase."
O que �
Causada pela infec��o da bact�ria Mycobacterium leprae (da� o nome lepra), a doen�a prevalece em regi�es de baixas condi��es socioecon�micas. Isso, por�m, n�o exclui que pessoas de n�veis mais elevados sejam afetadas. O presidente da SBH explica que o agente infeccioso tem prefer�ncia pelo sistema nervoso perif�rico, afetando principalmente m�os, p�s, nariz e orelhas.
Os sintomas da hansen�ase s�o perda ou altera��o de sensibilidade - em que muitas vezes a pessoa s� percebe depois que se queima - e manchas brancas ou vermelhas no corpo com dorm�ncia. O diagn�stico � cl�nico, com um teste de sensibilidade feito em consult�rio.
Perda de pelos, diminui��o do suor e da for�a muscular tamb�m s�o caracter�sticos. De dif�cil constata��o, a doen�a pode ser confundida com psor�ase, impinges e outras enfermidades cut�neas.
Quando uma pessoa � diagnosticada, todas as outras que moram com ela devem ser avaliadas. � o chamado exame de contato. A transmiss�o de um indiv�duo para o outro ocorre pelas vias respirat�rias, quando secre��es liberadas no ar pelo paciente (tosse, espirro) s�o inaladas. A princ�pio, n�o h� risco em um simples encontro social, mas sim no conv�vio constante com o doente.
Tratamento
O tratamento dispon�vel hoje em dia existe h� cerca de 40 anos e � oferecido pelo Sistema �nico de Sa�de (SUS). S� no ano passado, 31.862 pessoas com hansen�ase foram tratadas na rede p�blica, informou o Minist�rio da Sa�de.
Os rem�dios s�o bem eficazes e s� a primeira dose j� eliminaria 99% dos bacilos. Isso j� impede a transmiss�o da doen�a. Embora a hansen�ase seja completamente cur�vel, com uma terapia que � gratuita, a demora em iniciar o tratamento pode levar � incapacidade permanente.
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