O raio X do t�rax de Ana Mafalda de Almeida Fernandes Goul�o Corr�a mostra um conjunto de fios entrela�ados ao redor do seu cora��o. No peito da aposentada est�, h� 55 anos, parte da hist�ria do marca-passo, dispositivo que regula o ritmo card�aco com est�mulos el�tricos.
Aos 4 meses, j� diagnosticada com um bloqueio no �rg�o, ela foi a primeira crian�a no Brasil a receber o aparelho. Gra�as ao marca-passo, Ana Mafalda, que n�o teria chances de sobreviver, estudou, trabalhou, teve tr�s filhos e desafiou a morte nas mais de 40 cirurgias que fez ao longo da vida. � uma das mulheres no Brasil que h� mais tempo vive com um aparelho desses no peito.
Primeira filha de um casal de portugueses, a menina nasceu com bloqueio total nos ventr�culos. Na �poca, a fam�lia morava em Ribeir�o Preto, no interior paulista, e recebeu a indica��o de procurar uma cardiologista infantil na capital. J� de in�cio ouviram que n�o havia nenhum tratamento, porque o caso dela era muito grave. "A m�dica passou alguns rem�dios que poderiam dar mais pulsa��o, porque o cora��o batia muito lentamente", lembra o pai de Ana Mafalda, o aposentado Francisco Manuel Marinho Goul�o, de 83 anos. Mas logo depois o beb� passou mal e precisou ser levado com urg�ncia para o pronto-socorro. "Fiz respira��o boca a boca e fomos direto para a Santa Casa. O cora��o dela parou dentro do t�xi", recorda Goul�o.
No plant�o da Santa Casa de Miseric�rdia de S�o Paulo, estava o m�dico pediatra Cyro Scala de Almeida. Hoje, aos 88 anos, ele se recorda da chegada do beb�. "� primeira vista, achei que estava morta. Depois notamos a respira��o dif�cil e batimentos card�acos muito fracos. Fizemos a reanima��o, demos medicamentos e ela foi melhorando."
Com a situa��o estabilizada, os m�dicos chegaram � conclus�o de que teriam de implantar o aparelho, mas se depararam com um desafio. "N�o havia nenhum caso aqui de crian�a com marca-passo, mas era a solu��o. A chance de viver era de 1% colocando o marca-passo. Optamos pelo 1%", diz Goul�o.
No Brasil, o aparelho tinha come�ado a ser implantado no ano anterior - o primeiro procedimento foi no Hospital Municipal Souza Aguiar, no Rio. O marca-passo usado em Ana veio dos Estados Unidos com ajuda de um piloto de avi�o. "N�o tinha no Brasil naquela �poca. Custou US$ 3 mil, era muito dinheiro, quase o valor de um carro popular. Eu era vendedor, trabalhei muito e aguentei a despesa."
Com 184 gramas, o aparelho de sete cent�metros de comprimento por seis de largura formava uma massa saliente no abd�men da menina. M�dico cardiologista da Santa Casa e do Hospital Santa Isabel, Ronaldo Fernandes Rosa acompanha a paciente h� tr�s anos e classifica o procedimento como "uma sequ�ncia de eventos que deram certo", mas afirma que aquela foi uma decis�o arriscada.
"N�o se tinha experi�ncia m�dica nem tecnologia. Os cabos eram grosseiros e o desafio tamb�m era t�cnico. Os profissionais foram pioneiros e her�is." Com o sucesso, o procedimento, realizado em setembro de 1964, foi reportado na revista cient�fica Pediatrics, uma refer�ncia na �rea de pediatria.
Idas e vindas
Essa seria a primeira de muitas cirurgias que Ana Mafalda teria de realizar. Em seus primeiros anos de vida, o marca-passo foi trocado duas vezes - a dura��o da bateria era curta na �poca. Quando ela tinha 3 anos, a fam�lia se mudou para Portugal, onde permaneceu por seis anos.
At� pouco antes de retornar ao Brasil, usou uma vers�o externa do aparelho. "Com 6 anos, quando comecei a escola, ia com muito cuidado para n�o cair. N�o podia brincar, tomar banho de mar nem de chuveiro."
Com a necessidade de fazer novas interven��es cir�rgicas, a fam�lia resolveu voltar para o Brasil. "J� cheguei de Portugal com indica��o para passar por um m�dico para trocar o marca-passo. Cheguei a ficar oito meses internada, porque estava tendo rejei��es a cada 15 dias. Por isso, cheguei �s 48 cirurgias ao longo da minha vida. Em um ano, fiz cinco ou seis", conta.
A inf�ncia e o in�cio da adolesc�ncia foram marcados por idas e vindas ao hospital, algo que, segundo ela, n�o lhe causou traumas. "Naquela �poca, como a medicina n�o era muito avan�ada, tinha muitas crian�as com doen�as no cora��o. Fiz muitas amizades. Algumas que tenho at� hoje."
Foi somente aos 14 anos que ela recebeu um novo aparelho menor. J� era a d�cada de 1970, quando o tamanho come�ou a diminuir por causa das novas tecnologias. No mesmo per�odo, era lan�ado o primeiro marca-passo recarreg�vel, que aumentou a vida �til do aparelho de um ano e meio para 20 anos, segundo Rosa. A aposentada ficou cinco anos com o novo aparelho. "Depois, troquei por outro menor. Completei os meus estudos, comecei a trabalhar em bancos e me aposentei como atendente na Telesp."
Ao engravidar, nos anos 1980, o Brasil j� produzia marca-passos computadorizados. "Descobri que estava gr�vida com quatro meses e o m�dico falou que eu teria de ficar internada at� o meu filho virar. Fiquei at� o s�timo m�s, quando ele encaixou. Ele falou que eu n�o poderia ter parto normal, porque as contra��es aceleram e diminuem os batimentos card�acos. Quando a bolsa estourou, meu filho nasceu com uma equipe de cardiologia e outra de obstetr�cia."
A segunda gravidez foi mais complicada, pois ela teve de fazer a troca da bateria no terceiro m�s de gesta��o. Era 1994. Seis meses ap�s o parto, um susto. "O eletrodo se rompeu. Fiz uma nova cirurgia para trocar o eletrodo e o marca-passo, mas a art�ria estava obstru�da e n�o tinha como passar o fio. Decidiram trocar o lado do marca-passo, colocar no lado direito, mas os eletrodos dispon�veis n�o tinham o tamanho necess�rio. Buscaram um eletrodo em Campinas, de helic�ptero. A cirurgia durou oito horas. � o marca-passo que eu tenho at� hoje."
No ano seguinte, em 1995, era lan�ado o primeiro aparelho voltado para crian�as, o Microny. Atualmente, com a miniaturiza��o do dispositivo, adultos e crian�as recebem modelos semelhantes.
Novo desafio
Em 2015, o cora��o de Ana Mafalda voltou a preocupar. "Os m�dicos perceberam que o meu cora��o estava ficando debilitado. Era preciso tentar algum novo procedimento ou eu teria s� mais tr�s anos de vida."
A solu��o foi implantar um ressincronizador, aparelho que faz com que os ventr�culos se contraiam simultaneamente. A cirurgia foi realizada em 2016. E mais uma vez Ana Mafalda enfrentou uma situa��o em que as chances de sucesso eram m�nimas.
Ela vai ter de trocar o ressincronizador at� janeiro. Assim como ocorreu das outras vezes, os eletrodos dos antigos procedimentos ser�o mantidos. "Esses fios est�o l� dentro. Para mexer nisso, teriam de abrir o cora��o." Ela n�o demonstra preocupa��o com o procedimento. "Vivo uma vida normal, vivo um dia de cada vez. Quem dirige a minha vida � Deus."
Tamanho desproporcional
Diretor do Instituto de Pesquisa, Inova��o Tecnol�gica e Educa��o (Ipitec) da Santa Casa, Luiz Antonio Rivetti acompanhou o caso de Ana Mafalda a partir da d�cada de 1970 e diz que, com a detec��o de problemas card�acos ainda no �tero, beb�s podem receber o aparelho nos primeiros dias de vida.
"O m�dico j� sabe que a crian�a vai nascer com o bloqueio. Os eletrodos ficaram mais delicados e h� introdutores para coloc�-los. Melhorou a rela��o do aparelho com a parte subcut�nea. Tinha rejei��o porque era muito grande e fazia press�o. Havia uma despropor��o entre o marca-passo e o corpo da crian�a."
Embora seja implantado no Pa�s desde a d�cada de 1960, n�o h� um levantamento de quantos procedimentos j� foram realizados. "O sistema do Registro Brasileiro de Marca-passos (RBM) teve inicio em 1996, e a quantidade total � de 439.251 (procedimentos), mas n�o � somente o primeiro implante, tamb�m constam as trocas", explica Wilson Lopes Pereira, m�dico cardiologista e cirurgi�o cardiovascular da diretoria do Departamento de Estimula��o Card�aca Artificial (Deca) da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV).
Na vis�o de Miguel Velandia , vice-presidente da Medtronic no Brasil, o futuro do aparelho � se tornar cada vez menor e menos invasivo. "O �ltimo marca-passo � do tamanho de uma p�lula, tem dois cent�metros, e n�o tem eletrodos, tem patas que se agarram ao cora��o." As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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