� o trauma de uma viol�ncia sofrida h� mais de oito d�cadas por uma mulher que torna bem vivo o tempo do canga�o numa pequena casa do Jardim M�rcia, na periferia de Campinas (SP). Na cidade muito longe do sert�o - pelo menos na geografia - mora Dulce Menezes dos Santos, de 96 anos, violentada na adolesc�ncia por um integrante do grupo de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampi�o, arrancada da fam�lia e levada para a vida n�made na caatinga.
O come�o de tarde paulista � frio para a senhora de corpo franzino e cabelos compridos, que acordou da r�pida sesta. Ela chega � sala para a conversa com a equipe de reportagem. Antes mesmo de sentar no sof�, comenta: "O sonho da gente n�o esquenta mais, n�o". O lamento vem junto com um leve sorriso. A filha ca�ula, Martha, diz: "T� faltando carne entre esses ossinhos, m�e".
Dulce se ajeita no sof�, com ajuda da filha. Martha conta que a m�e sempre evitou visitas e n�o esconde inc�modo com janelas e portas abertas - por onde entram o frio e tamb�m a viol�ncia. Antes de toda pergunta, solta uma frase que repetir� a cada resposta dada e a cada interrup��o na longa conversa. "Infelizmente aconteceu isso contra minha vontade. N�o fui porque quis ir."
Era filha de trabalhadores de uma fazenda de algod�o em Porto da Folha, Sergipe. Tinha quatro anos quando um besouro mordeu a m�e, Maria, que n�o resistiu. O pai, Man� Jo�o, dizem, morreu de saudade seis anos depois. A menina foi morar com a irm� Mocinha, em Piranhas, Alagoas, depois na fazenda de outra irm�, Julia, e do marido dela, Jo�o Felix.
O lugar servia de rancho de cangaceiros que adentravam o sert�o. Ela estranhou os homens de roupas de tecido grosso, cor de folha seca, cintos pregados de moedas, chap�us de couro de aba para tr�s e com estrelas bordadas e bornais floridos. E bem armados. Um dos que frequentavam a fazenda era o cangaceiro Jo�o Alves da Silva, o Crian�a. Ao ver aquela menina num canto, acabrunhada, negociou a compra dela com Jo�o Felix por um bornal de joias.
Crian�a avisou a Jo�o Felix que levaria Dulce numa festa que seria organizada pelo amigo cangaceiro Z� Sereno, numa fazenda vizinha. Jo�o Felix levou a mulher, Julia, e a cunhada. Crian�a n�o esperou para se aproximar da menina, que estava na casa da fazenda. Dulce j� se assustou quando o cangaceiro entrou. "Tu vai ali comigo, Dulce."
Ele a puxou pelo bra�o, arrastando para fora. "Cala a boca, se n�o te sangro agorinha mesmo." Do lado de fora, a jogou no ch�o. Entre pedregulhos e espinhos, Dulce foi violentada e os convidados assistiram em sil�ncio. O cangaceiro passou a noite vigiando a "mercadoria". A m�sica continuava e o som da sanfona e do tri�ngulo sufocava os solu�os de Dulce. Arrependido, Jo�o Felix temia que Crian�a, ao fim da festa, levasse Dulce embora. "Num vou desperdi�ar bala em tu n�o, homem", disse o cangaceiro, com desprezo, segundo Dulce. "Esse cara me carregou."
Beira do rio
Naquele tempo, Dulce flertava com Pedro Vaqueiro, garoto de Piranhas. Eles brincavam na beira do S�o Francisco. "Eu era novinha, de 13 para 14 anos, uma crian�a", lembra. A viol�ncia vai e volta no relato de Dulce. "Fui a pulso, arrastada, se n�o morria. O apelido dele era Crian�a (o nome do agressor sai mais forte na voz dela). Deus queria que eu estivesse aqui agora, conversando com voc�s", conta. "Com parabellum (pistola) na m�o. E com medo de morrer, acompanhei."
A not�cia do rapto chegou a Piranhas. Pedro Vaqueiro se desesperou. Dizem que ficou desnorteado, sem rumo. Saiu de casa, desapareceu, relata Martha. A hist�ria daqueles dias est� num livro escrito pelo professor baiano Sebasti�o Pereira Ruas, que foi casado com Martha. Dulce, a boneca cangaceira de Deus foi escrito na forma de novela t�pica dos velhos contadores. O texto simples traz luz ao debate sobre a viol�ncia contra a mulher no canga�o. A venda � para ajudar Dulce.
Massacre
Em 27 de julho de 1938, Dulce estava num acampamento na Grota do Angico, Sergipe. Ali, Lampi�o reuniu diversos subgrupos que agiam sob seu controle na caatinga, em roubos, saques, achaques e agiotagens. Foi quando Dulce, adolescente, esteve mais perto de Maria Gomes de Oliveira, de 27 anos, a mulher de Lampi�o, que ficou conhecida por Maria Bonita. "Era boa pessoa a Maria. Ficamos poucos dias juntas. Lampi�o tinha uma turma, Crian�a tinha outra, Bal�o tinha outra. Se vivesse tudo junto, a pol�cia descobria pelo rastro. Agora, nesse dia estava todo mundo junto. Tinha de acontecer, gra�as a Deus."
� noite, Maria chamou Sila e Dulce para conversar. Na conversa, elas viram, na caatinga escura, uma luzinha amarela, que piscava longe. Chegaram a pensar que era vaga-lume. Foram dormir sem falar para os homens sobre a luminosidade.
Pela manh�, Dulce levantou com os gritos de Crian�a. Uma volante - grupos de policiais formados para combater cangaceiros - tinha cercado o grupo. Em meio a tiros, ela ouviu a voz de Maria Bonita, baleada, diante do corpo de Lampi�o. Dulce, Sila e Enedina correram. Um tiro de fuzil acertou a cabe�a de Enedina, miolos respingaram em Dulce, que conseguiu escapar juntamente com Crian�a e outros 21 cangaceiros.
"No combate em que mataram Lampi�o e Maria Bonita, eu estava. Nenhuma bala pegou em mim. Morreu um bocado. J� esqueci quantos morreram", conta - 11 cangaceiros e um soldado morreram. "Era tiro demais. Gente caindo, entrando pelas pernas, passando em cima de cabe�as. Escapou quem tinha de escapar, porque nunca vi tanto tiro na vida, meu filho." A not�cia da emboscada chegou r�pido a Piranhas. Parentes de Dulce foram ver se a cabe�a da menina estava em exposi��o na escadaria da prefeitura.
O historiador Jo�o de Sousa Lima, de Paulo Afonso, na Bahia, desenvolve um trabalho para localizar sobreviventes do canga�o, em especial mulheres. Os relatos delas mostram que a hist�ria de crueldade do bando de Lampi�o ou das volantes encobriu a da viol�ncia contra mulheres do grupo. Uma semana antes do massacre de Angicos, Cristina foi assassinada por querer trocar de companheiro. Tamb�m foram mortas de forma tr�gica pelo pr�prio grupo L�dia, Lili e Rosinha.
Mulher de prefeito
Embrenhado na caatinga, o grupo sobrevivente de Angicos decidiu se entregar � pol�cia. "A� acabou", diz Dulce. O ditador Get�lio Vargas concedeu anistia aos cangaceiros. Crian�a e Dulce, nesse tempo, tiveram dois filhos. Foram trabalhar na fazenda de Jo�o Anast�cio Filho, o Jac�, na regi�o de Jord�nia, Vale do Jequitinhonha, em Minas.
O livro destaca que Jac� era influente. Casado, decidiu se aproximar de Dulce. P�s Crian�a para atuar como tropeiro e, assim, come�ou a afast�-lo da fazenda. Depois de uma longa viagem, Crian�a foi alertado por companheiros que era melhor ir embora. Ele levou os dois filhos. Do casamento com Jac�, Dulce teve outros 18 filhos. Anos depois, ele foi eleito prefeito de Jord�nia, hoje com 10 mil habitantes. "Foi o tempo que fui feliz. Por enquanto estou aqui, at� a hora que Deus me levar. Gra�as a Deus nunca maltratei ningu�m", diz. "Agora essa turma do Lampi�o, meu Deus do c�u, quando queria pegar mulher, se n�o fosse, eles matavam."
Com a morte de Jac�, Dulce foi morar com a filha Martha em Campinas. A cidade grande tamb�m seria de priva��es. Viu filho e netos serem assassinados. Ela volta a falar do sert�o e do canga�o. "Acabou. O Norte est� sossegado, n�o est�?"
Servi�o:
DULCE, A BONECA CANGACEIRA DE DEUS
Autor: Sebasti�o Pereira Ruas
Editora: Lexia, 227 p�ginas
Pre�o: R$ 45
O livro � vendido por Martha Menezes pelo telefone 019-988726588.
As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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