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Estado de Minas GERAL

'O desafio � desconstruir a vis�o estereotipada da mulher e do homem diariamente'


postado em 08/03/2020 15:09

Uma das chaves para combater o feminic�dio, express�o m�xima da viol�ncia contra a mulher, � a educa��o para desconstru��o de estere�tipos relacionados � mulher e ao homem desde a pr�-escola, aponta a ju�za Rafaela Caldeira, titular da Vara Regional Oeste de Viol�ncia Dom�stica e Familiar contra a Mulher. Para ela, o debate sobre as quest�es de g�nero � essencial para a constru��o de uma sociedade mais igualit�ria. "� preciso enxergar realmente a mulher como um sujeito de direitos, que vai decidir sobre a vida dela, o que ela vai estudar, o que vai fazer da vida, como vai cuidar de seu corpo, com quem e de que forma ela vai se relacionar", aponta.

Trabalhando h� mais de dez anos com o tema, Rafaela destaca como o combate � viol�ncia de g�nero � uma quest�o de interesse p�blico. Segundo o 13� Anu�rio Brasileiro de Seguran�a P�blica, 1.206 mulheres foram mortas em raz�o de g�nero, representando um crescimento de 4% com rela��o a 2017. Seis de cada dez v�timas eram negras. Nove em cada dez assassinos eram companheiros ou ex-companheiros.

Nessa linha, a ju�za aponta como a atua��o conjunta de diferentes atores, tanto da sociedade civil como do Estado, � fundamental para o fortalecimento do combate � viol�ncia de g�nero. "Todo e qualquer tipo de pol�tica p�blica voltada para a viol�ncia, seja no campo da sa�de, do direito, da educa��o � bem-vinda. Pela import�ncia do tema, pelo espa�o que ele tem n�o s� na vida das mulheres, mas na vida da fam�lia, na vida social", pontua.

Rafaela inclusive desenvolve um projeto voltado para autores de viol�ncia dom�stica, com a realiza��o de reuni�es reflexivas, junto a outros servidores da Vara Regional Oeste de Viol�ncia Dom�stica e Familiar contra a Mulher. Nos encontros s�o discutidas tem�ticas relacionadas � masculinidade e � viol�ncia de g�nero. O n�vel de reincid�ncia dos agressores � de 2%, indica a magistrada.

A ju�za conta que segue estudando a quest�o de g�nero e destaca a import�ncia do debate sobre o tema na sociedade. "O que eu percebo � que a gente continua precisando compreender o que � g�nero, porque � um conceito muito complexo. Como ele tem rela��o com o social, ele est� em constante mudan�a, constante evolu��o."

Segundo Rafaela, � positivo que, de alguma forma, a sociedade esteja se abrindo para ouvir de maneira mais acolhedora as narrativas das mulheres, e n�o s� com rela��o � viol�ncia. "� muito importante que a voz da mulher seja ouvida e espero que isso seja um acolhimento que a gente enquanto sociedade possa realizar de maneira cada vez mais ampla."

Confira os principais pontos da entrevista:

Como a senhora avalia o crescimento do feminic�dio no Pa�s?


A cria��o de um tipo qualificado representa a possibilidade de uma coleta estat�stica dentro do sistema de seguran�a, do judici�rio, a respeito de casos espec�ficos de feminic�dio, tornando poss�vel uma coleta de dados mais precisa. Acho tamb�m que o debate muito rico que tem sido feito pela sociedade est� dando visibilidade ao fen�meno. O assunto est� mais em evid�ncia. Tamb�m acho que de alguma forma essa quest�o relacionada � altera��o sobre o porte de arma foi algo negativo - em casa � sempre o lugar aonde a mulher mais morre, isso contribui para o aumento de feminic�dio.

Ent�o s�o v�rios fatores, a gente n�o pode definir uma causa ou um aspecto s� para esse crescimento do aumento do n�mero de feminic�dios. Algumas quest�es est�o relacionadas ao tratamento de pol�ticas p�blicas voltadas �s mulheres, outras t�m rela��o com o fato de a gente estar debatendo melhor o tema. � muito complexo, mas � importante que a gente esteja falando sobre isso.

Como combater isso?

A Lei Maria da Penha � muito feliz quando faz a proposta de atua��o dos atores do sistema de justi�a e tamb�m fala muito da quest�o da educa��o. Ela tamb�m fala de uma atua��o conjunta e da a��o de maneira preparada. De capacita��o dos agentes de pol�cia, promotores, do Poder Judici�rio nesses aspectos relacionados ao combate � viol�ncia de g�nero. Trata ainda da atua��o na sociedade civil, na academia e nas escolas, trabalhando essas tem�ticas com adolescentes crian�as. Aborda a rede de servi�os tanto em n�vel municipal como estadual, indicando que os servi�os conhe�am a atua��o dos atores de justi�a e que os atores de justi�a conhe�am esse servi�os. Todos esses atores trabalhando de m�os dadas, em conjunto. Acho que essa � a chave para o fortalecimento tanto da sociedade civil quanto do Estado para o combate do feminic�dio. Fortalecimento dessa atua��o conjunta.

A quest�o da viol�ncia de g�nero j� surge no meio da sociedade, s�o quest�es antigas, mas tamb�m s�o quest�es novas. O patriarcado est� ali ainda, ele � uma forma de estrutura��o da sociedade. Nesse sentido, eu acho necess�rio a gente trabalhar a educa��o para desconstru��o de estere�tipos de g�nero, ent�o � um problema que � antigo mas continua atual. Mas ele vai se colocando tamb�m de novas maneiras. Hoje a gente tem a viol�ncia de g�nero sendo praticada e perpetuada em novos contextos, o virtual - no Instagram, no Facebook -, coisa que se a gente falasse 20, 30 anos atr�s n�o tinha essa forma de viol�ncia, mas no fim das contas a gente est� falando desse patriarcado.

A ess�ncia continua sendo desconstruir, dentro de n�s mesmos, nossa forma de enxergar o mundo, essa divis�o de pessoas, esse enquadramento das pessoas dentro de pap�is e de fun��es na sociedade, como se elas s� ocupassem essas fun��es que a gente tem como preestabelecidas - que s�o passadas para n�s muitas vezes como corretas muitas vezes sem a gente nem se dar conta desses estere�tipos.

O desafio � o de sempre: de a gente fazer esse exerc�cio di�rio de desconstruir essa vis�o estereotipada do feminino e do masculino. � realmente muito dif�cil, porque �s vezes essa mensagem � muito subliminar. Ent�o tamb�m descobrir de que forma isso continua sendo passado para n�s, para os nossos filhos, para nossa fam�lia. � preciso um olhar atento, colocar isso no nosso cotidiano, como mulher, como esposa, como filha, m�e, como esposa, companheira, profissional, em todos os contextos. Acho que � um constante desconstruir esse patriarcado.

Qual a import�ncia do avan�o das pol�ticas p�blicas e do engajamento da sociedade sobre as diferentes formas de viol�ncia contra a mulher?

Todo e qualquer tipo de pol�tica p�blica voltado para a viol�ncia, seja no campo da sa�de, do direito, da educa��o � bem-vinda. Pela import�ncia do tema, pelo espa�o que ele tem n�o s� na vida das mulheres, mas na vida da fam�lia, na vida social. Inclusive, uma coisa que �s vezes a gente n�o se d� conta mas que inclusive a ONU aborda � o impacto econ�mico que a viol�ncia de g�nero tem no Pa�s, seja porque isso gera um afastamento laboral, ou por causa do impacto dos gastos nos sistemas de sa�de, de justi�a e de seguran�a p�blica.

� uma quest�o de interesse p�blico, ent�o qualquer pol�tica p�blica que seja desenvolvida no sentido de combater esse fen�meno, eu s� posso dizer, como mulher, que tem que ser aplaudida e replicada porque acho que vai se reverter em benef�cios para a sociedade como um todo.

H� algum projeto combate � viol�ncia ou apoio � mulher que a senhora destacaria?


Um dos trabalhos que t�m parceria do Judici�rio com a Secretaria de Sa�de, por exemplo, � o Projeto F�nix, organizado pela doutora Domitila Manssur, que trata das v�timas que sofreram algum dano est�tico. Ent�o, uma vez que constatam que a mulher teve algum dano decorrente de viol�ncia dom�stica, ela � encaminhada para atendimento especializado. Essa � uma parceria muito legal, inclusive porque prop�e o di�logo entre o Judici�rio e o sistema de sa�de e muito do que a lei Maria da Penha e a conven��o de Bel�m do Par� prop�em � a conversa entre os �rg�os para promover o combate � viol�ncia.

Al�m deles, os aplicativos, como o Juntas, idealizado pelo Geled�s, que tem a parceria com o Judici�rio. Ali as mulheres cadastram a rede de apoio delas para acionarem toda vez que se sentem numa situa��o de risco. E essa rede pode acionar a pol�cia. Tem muitas ideias que s�o interessantes e n�o s�o necessariamente complexas ou exigem um grande gasto, mas que d�o resultado essa busca de prote��o dessa mulher.

E como funciona o projeto que a senhora desenvolve para agressores?

O projeto que desenvolvemos envolve o encaminhamento dos agressores para reuni�es reflexivas nas quais s�o discutidas tem�ticas relacionadas � masculinidade e � viol�ncia de g�nero e � muito interessante porque o n�vel de reincid�ncia � muito baixo, em torno de 2%. Al�m disso, o retorno que eles compartilham comigo � muito positivo, no sentido em que eles, durante as participa��es, conseguem de alguma forma reavaliar as posturas que tiveram e refletem sobre o que conseguem mudar em termos de manifesta��o de afeto, porque a pessoa � tamb�m um produto da esfera de vida dela.

Ent�o acho positivo que de alguma forma essa viv�ncia do Judici�rio, a partir de um processo criminal, propicie por meio desses grupos reflexivos, um debate junto com outros agressores, ou seja, com pessoas que de outra forma passaram por aquela situa��o, est�o sendo processados. Assim eles refletem sobre o impacto daquela conduta e daquele comportamento negativo que tiveram na fam�lia.

A partir dessa reflex�o � que a gente consegue fazer com que essas pessoas mudem seu comportamento em alguma medida, porque eles v�o sair dali e v�o continuar se relacionando - ou v�o continuar com a mesma namorada, ou construir novas fam�lias, v�o estabelecer outros la�os. O que a gente gostaria � que essa forma de se relacionar fosse constru�da de uma maneira diferente, n�o violenta. Acho que o grupo � um start num trabalho que essa pessoa vai continuar fazendo, um trabalho muito bacana e essencial.

Qual a import�ncia do apoio e do acolhimento para as mulheres, em especial as que est�o em situa��o de viol�ncia?

Voc� se sentir acolhida socialmente pelo seu relato � importante em qualquer condi��o. O acolhimento � voc� estar aberto a ouvir o que o outro tem para dizer, refletir e ficar aberto. Voc� j� ouvir com retic�ncia algo que uma pessoa est� dizendo pela condi��o de g�nero, porque � mulher, porque "ela que se oferece", � muito ruim. E a gente sabe que essa postura existiu e existe ainda na sociedade com rela��o a muitas coisas.

� positivo que de alguma forma a nossa a sociedade esteja se abrindo para ouvir de maneira mais acolhedora as narrativas das mulheres com rela��o n�o s� a esse tipo de quest�o, mas que as mulheres sejam ouvidas nas narrativas delas sobre qualquer tem�tica, sobre economia, trabalho, viol�ncia. � muito importante que a voz da mulher seja ouvida e espero que isso seja um acolhimento que a gente enquanto sociedade possa realizar de maneira cada vez mais ampla.

Como avan�ar no combate sobre quest�es ainda mais delicadas, como a viol�ncia sexual, e na falta de discuss�o sobre os direitos reprodutivos da mulher, entre eles o aborto?

Tudo est� dentro do mesmo contexto. A viol�ncia sexual � uma viol�ncia de g�nero, o outro s� violenta sexualmente porque a pessoa vira um objeto. � essencial esse combate, ent�o, porque quando voc� n�o escolhe o que voc� pode fazer com seu direto, com a liberdade do seu corpo, voc� j� n�o tem direito, voc� n�o � sujeito desse corpo. A gente tem que passar pela mesma discuss�o de desconstruir esses pensamentos, de que a nossa sociedade continua estruturada numa forma patriarcal, na figura masculina sendo o centro e a mulher tendo que atender �s expectativas dessa figura.

Passa por dar a essa mulher uma condi��o de igualdade dentro dessa fam�lia, dentro do local de trabalho onde ela exerce sua profiss�o, dentro da sociedade, na condi��o de cidad� que ela tem, que ela tenha a condi��o de votar, ler projetos que sejam de interesse dela.

A gente acaba voltando no mesmo ponto, que � enxergar realmente a mulher como um sujeito de direitos, que vai decidir sobre a vida dela, o que ela vai estudar, o que vai fazer da vida, como vai cuidar de seu corpo, com quem e de que forma ela vai se relacionar. � muito complexo. No fim das contas, a gente fragmenta as tem�ticas para ficar mais f�cil, mas � um todo.

A gente volta para maneira como a gente organiza nossa sociedade. Por que uma certa conduta sexual � exigida da figura feminina e n�o da masculina? Temos que seguir nessa desconstru��o do sistema patriarcal para passar a discutir projetos de lei que tenham rela��o com o combate � viol�ncia sexual, com quest�es relacionadas ao direitos reprodutivos da mulher. � necess�rio passar pela desconstru��o de estere�tipos de g�nero ligados a vis�es e perspectivas sexistas de uma sociedade extremamente atrelada a uma constru��o ligada ao patriarcado. A gente vai esbarrar nessas quest�es enquanto a gente estiver presa nessa perspectiva.

Acho que isso passa tamb�m pelo foco na educa��o e no debate das quest�es de g�nero desde a pr�-escola, educa��o prim�ria. Eu acho que a gente tem que discutir g�nero e educar nossas crian�as e nossos filhos de uma outra maneira. � tamb�m essencial para que a gente consiga construir uma sociedade mais igualit�ria. Isso passa por uma educa��o com outra vis�o, o que n�o significa desrespeitar alguma religi�o, acho que s�o coisas distintas.

No fim, a gente volta para essa quest�o do patriarcado e, neste outro ponto, t�o importante quanto a seguran�a p�blica e a justi�a, � a educa��o.

O que eu percebo � que a gente continua precisando compreender o que � g�nero, porque � um conceito muito complexo. Como ele tem rela��o com o social, ele est� em constante mudan�a, constante evolu��o. A professora Silvia Pimentel fala que n�o � � toa que a gente tenha tr�s ondas e que estamos indo para uma quarta desses conceitos de g�nero. � essa complexidade que a gente precisa entender. Ele est� nessa constru��o com a sociedade, que est� em constante transforma��o.

N�o � um conceito que � est�tico ent�o por isso que gera tanto debate. A gente estuda e debate ainda muito pouco isso. Seria muito importante que a gente enquanto sociedade debatesse muito mais. Por isso bato na tecla de que essa quest�o da educa��o, da capacita��o das pessoas de todas as �reas que trabalham com essa tem�tica, acho que � meu desejo pro dia das mulheres.


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