
O n�mero de infec��es em ind�genas, grupo considerado mais vulner�vel � doen�a, aumentou de 16 para 27 casos desde a �ltima segunda-feira. Oficialmente, o pa�s tamb�m registrou tr�s mortes - duas em Manaus e outra em Roraima.
De acordo com o Censo IBGE 2010, existem ao menos 305 etnias e 896,9 mil ind�genas no Brasil. O jornal O Estado de S. Paulo procurou tribos das cinco regi�es do pa�s, com realidades distintas, para abordar medidas preventivas e os efeitos da pandemia nas aldeias. Em comum, os povos relataram que tentam seguir o isolamento social. Mesmo aqueles que vivem em contexto urbano.
"Se um v�rus desse entra na comunidade, � o exterm�nio de um povo", afirma Sonia Ara Mirim, l�der Guarani e moradora da Terra Ind�gena Jaragu�, na cidade de S�o Paulo. A aldeia tem sobrevivido � base de cestas b�sicas doadas para se manter longe de aglomera��es.
Desde 17 de mar�o, portaria da Funda��o Nacional do �ndio (Funai) pro�be n�o �ndios de entrar nas aldeias. Pelo Brasil, caciques e lideran�as mandaram fechar acessos e espalharam faixas de alerta. Os povos, no entanto, relatam dificuldades diversas: desde escassez de equipamentos de prote��o, falta de testes e aus�ncia de rede hospitalar, ao risco de passar fome por desabastecimento.
Boletins da Sesai apontam que os Distritos Sanit�rios Especiais Ind�genas (DSEI) Alto Solim�es e Manaus, na regi�o amaz�nica, s�o respons�veis por 22 dos 27 casos de COVID-19 - ou 81,5% dos diagn�sticos entre ind�genas. Com hist�rico de invas�o de garimpeiros, essas �reas abrigam aldeias isoladas, cujo acesso s� � poss�vel por aeronaves ou embarca��es.
O Instituto Socioambiental desenvolveu um �ndice para medir o grau de exposi��o de tribos ao coronav�rus. Nas dez primeiras posi��es de mais risco, cinco ficam na regi�o Norte, quatro em S�o Paulo e uma no Rio Grande do Sul. Coordenador do Programa de Monitoramento do ISA, Antonio Oviedo avalia que, em geral, o sistema de sa�de em terras ind�genas n�o est� � altura da pandemia - para alguns povoados, o socorro a hospitais pode demorar dias s� no deslocamento.
"Existem munic�pios que n�o disp�em de leito hospitalar e respirador, mas l� t�m duas ou tr�s terras ind�genas com 5 mil, 6 mil habitantes", diz. "Esses dados mostram o qu�o vulner�vel e em risco essas popula��es est�o no territ�rio nacional."
Os Guarani Kaiow� da comunidade Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante (MS), enfrentam, al�m da viol�ncia de invasores, o perigo do coronav�rus. "Os rezadores t�m rezado todas as noites, invocando os esp�ritos de prote��o", relata a lideran�a Clara Almeida, que reclama de falta de equipamentos de prote��o e de orienta��o por parte de equipes da Sesai.
Em mar�o, a Sesai elaborou plano de conting�ncia para o v�rus em povos ind�genas, com tr�s n�veis de resposta: "alerta", "perigo iminente" e "emerg�ncia em sa�de p�blica".
Por nota, o Minist�rio da Sa�de diz orientar tribos, gestores e colaboradores desde janeiro. Cada Distrito Sanit�rio Especial Ind�gena (Dsei) elaborou um plano de a��o espec�fico � realidade do local, diz a pasta.
A Funai afirma ter distribu�do 4,2 mil cestas b�sicas para tribos em situa��o de vulnerabilidade em v�rias regi�es.
'Toda doen�a � um esp�rito'
Em ia-t�, a linguagem da tribo Fulni-�, "novo coronav�rus" se diz "ixtiwa". A pron�ncia come�a por um chiado prolongado, quase como um sopro: Ishh. Em seguida, a l�ngua se p�e entre os dentes e - de golpe curto - forma a s�laba t�nica: T�. S� ent�o os l�bios articulam um c�rculo pequeno que vai se abrindo rapidamente: U��. N�o mais do que isso. Ishh-T�-U��. Entre os falantes de ia-t�, a palavra equivale a esse tal coronav�rus - ou catapora, enxaqueca, amidalite, insufici�ncia renal, diabetes, lepra, frieira, piriri. Tanto faz. Para os Fulni-�, todas as doen�as t�m um nome s�.Presente em registros etnogr�ficos desde 1749, os Fulni-� vivem no sert�o de Pernambuco, no chamado pol�gono das secas, em assentamentos de terra batida que contornam a cidade de �guas Belas, lugarejo com 43 mil habitantes e IDH de 0,526, inferior ao do Qu�nia. Entre estudiosos, a tribo ganha destaque por manter rituais religiosos e a l�ngua nativa imunes � passagem do tempo. "Na nossa cren�a, toda doen�a � um esp�rito. Dizer 'ixtiwa' � uma maneira de reverenci�-la", explica o �ndio Ubiran Fulni-�, de 36 anos, que atua como agente de sa�de no territ�rio.
Embora ainda n�o haja not�cia de infectados por covid-19 na aldeia ou em seus arredores, � errado pensar que a doen�a n�o for�ou a tribo a repensar medidas de preven��o. "Nosso povo v� o que o jornal mostra o tempo inteiro. Somos seres humanos e temos receio de alguma pessoa da comunidade venha a adoecer", diz Ubiran. No povoado, por mais respeito � entidade, a ordem � n�o deixar o coronav�rus entrar.
No in�cio da crise, os Fulni-� que moravam longe foram convocados a voltar - hoje, cerca de 7 mil pessoas est�o reclusas no povoado, segundo estimam os locais. Eventos costumeiros, como palestras ou apresenta��es de dan�a fora da aldeia, tamb�m foram cancelados para reduzir riscos de cont�gio.
Diariamente, Ubiran visita 88 fam�lias, confere o isolamento social e orienta sobre cuidados com a higiene. "A Sesai fez as orienta��es e n�s repassamos ao povo: queremos multiplicadores de sa�de", afirma. Escasso no sert�o, o �lcool em gel � dividido entre todos. Rende pouco. Tamb�m � incomum encontrar m�scara de prote��o - basicamente s� m�dicos e enfermeiros est�o "cobertos", como se fala na tribo. "Vivemos em um lugar quase sem �gua, de quentura, muita poeira, fogueira e fuma�a", descreve. "Para prevenir, o mais f�cil � usar sab�o e lavar a m�o direitinho."
Com base no trabalho de campo, o agente de sa�de ind�gena calcula que ao menos 10% da tribo t�m mais de 60 anos - grupo expressamente proibido de deixar suas casas at� para comprar comida.
Na semana passada, os idosos da tribo foram vacinados contra gripe influenza. Para fechar o corpo contra o coronav�rus, contudo, s�bios Fulni-� t�m recomendado ch� de quina-quina, tipo de arbusto comum na regi�o.
Guerreiros guardam aldeia
Com a luta deflagrada, l�deres Krah� convocaram onze guerreiros e, aos escolhidos, deram a miss�o de guardar os portais da aldeia. Eles ficam 24 horas por dia em alerta, revezando-se apenas para dormir. T�m ordem de n�o deixar ningu�m passar - � que os visitantes podem trazer com eles o novo coronav�rus para a tribo. O cacique confirma que est�o todos alarmados: "Quando essa doen�a aparece na TV, assusta. A figura que montaram � uma coisa horr�vel, toda cabeluda, o povo fica muito preocupado".Conhecidos como guardi�es do cerrado, os cerca de 3,6 mil Krah� vivem em 38 aldeias situadas em uma �rea de 303 mil hectares em Itacaj� e Goiatins, munic�pios �s margens do Rio Tocantins, na regi�o nordeste do Estado. Com a hist�ria de intera��o com brancos marcada por reviravoltas, o grupo ind�gena j� foi alvo de massacre de fazendeiros na d�cada de 1940 e hoje mant�m boa rela��o com comerciantes e turistas - atividade, ali�s, provedora de parte consider�vel da renda do povoado e que precisou ser interrompida por causa da covid-19.
Uma das lideran�as da aldeia, Get�lio Krah�, 76 anos, diz que a tribo tem levado a s�rio a pandemia e se mantido em isolamento social. "Por causa dessa gripe, o povo ficou sem jeito, ficou preso. Existe muita preocupa��o. Toda hora discutimos o problema, quando vai acabar, o que precisa ser feito", relata. "N�o posso mais chegar na cidade, fazer minhas compras e voltar. Pediram e eu tenho de obedecer. Tem de respeitar."
Foi de discuss�es na tribo que nasceu a estrat�gia de deixar guerreiros em vig�lia, enquanto os demais ficam nas casas. Em guaritas, os homens destacados controlam n�o s� a chegada de n�o ind�genas - ou "cupen", para os Krah� - mas tamb�m a sa�da dos aldeados, s� autorizados a ir ao centro urbano, a cerca de oito quil�metros de l�, diante de extrema urg�ncia, como atendimento m�dico ou saque de benef�cios sociais.
As poucas m�scaras de prote��o que chegaram �s aldeias foram destinadas aos sentinela, por estar mais suscet�veis ao contato externo. Fogueiras, em volta das quais a comunidade se re�ne para contar hist�rias, agora s�o acesas com intuito de ajudar a iluminar locais ermos e deixar a fiscaliza��o mais f�cil.
Os ind�genas se mobilizaram, ainda, para fazer uma vaquinha na comunidade e comprar celulares para os vigilantes. "Quando algu�m da aldeia precisa de alguma coisa, eles ligam para os comerciantes da cidade, que v�m trazer a mercadoria at� a guarita", relata o cacique Roberto Krah�. "Antes de entrar, todo material passa por limpeza com sab�o, sabonete, len�o."
Considerado s�bio no povoado, Get�lito Krah� diz que a prioridade � preservar vidas. Segundo ele, o Brasil precisa corrigir pol�ticas p�blicas e alterar a maneira de enxergar os povos ind�genas, garantindo-lhes seguran�a, sem distin��o. "No ch�o desta terra, a gente aprende assim: voc�, meu irm�o, tem o nariz para frente. E eu, por acaso, tenho o nariz para tr�s?
Fome
Nas aldeias Xakriab� acontece assim: em se plantando, nada d�. Castigado pela falta de chuva em S�o Jo�o das Miss�es, munic�pio no norte de Minas, o povoado pr�-colonial testemunhou nas �ltimas d�cadas gera��es de �ndios desistirem da lavoura para tentar a vida nas cidades. Faz pouco mais de um m�s que o cen�rio mudou. Por causa do coronav�rus, postos de trabalho minguaram. Sem emprego, centenas de membros da tribo, enfim, retornaram �s terras dos seu ancestrais.Pelo registro de moradores, a popula��o aumentou de 9,1 mil para mais de 10 mil pessoas - cen�rio que preocupa o coordenador de equipes de sa�de ind�gena, Marciel Bispo, 34 anos. Segundo ele, as fam�lias apareciam aos montes, para afli��o dos grupos sanit�rios empenhados no combate � covid-19. "Se a doen�a chegar, muita gente vai sofrer."
Distribu�das por 34 aldeias, a maioria das casas � simples, com gente demais e c�modos de menos, descreve o enfermeiro Xakriab�. Algumas, de pau a pique, nem janela t�m. "As moradias s�o escuras, quase sem ventila��o. Voc� chega a ver quatro ou cinco crian�as em um quarto pequeno, dormindo emboladas. As fam�lias correm risco maior nessa situa��o", diz.
A escassez de alimentos e de itens b�sicos de higiene tamb�m come�a a dar os primeiros sinais de alerta. "Quem sa�a para ganhar o p�o de cada dia n�o est� recebendo. Muitas pessoas j� sentem dificuldade para comprar", afirma Bispo. "Sem ajuda, metade vai passar fome".
Formado em enfermagem em 2009, Bispo foi o primeiro Xakriab� a pisar em uma universidade, ap�s ter sido beneficiado por cota �tnica, segundo conta. Hoje, atua na preven��o da aldeia contra a covid-19. Parte do seu trabalho � organizar a avalia��o cl�nica e cadastro, com informa��es como cidade de origem e hist�rico de doen�as, dos �ndios que voltaram. No territ�rio, se algu�m apresentar sintoma da doen�a, a ordem � ficar 14 dias de quarentena.
"Por tempo indeterminado fica expressamente proibida a entrada de pessoas n�o ind�genas", diz uma faixa pendurada na entrada do territ�rio, habituado a receber vizinhos, turistas e pesquisadores.
Embora o povoado tenha dez postos de sa�de, o hospital de refer�ncia fica a mais de tr�s horas de viagem, em Montes Claros, cidade a 256 quil�metros de dist�ncia. Na avalia��o de Bispo, a malha de atendimento est� aqu�m do necess�rio para lidar com pandemias. "Se sair ind�gena doente daqui, n�o h� garantia de que vai conseguir vaga em CTI", afirma.
Por enquanto, a �nica suspeita de covid-19 aconteceu com um jovem de 21 anos, morador de Goi�nia. De volta � tribo, ele tinha febre alta e tosse. Passou duas semanas em casa, sendo obrigado a usar m�scara e recebendo visita de equipes de sa�de. A quarentena j� acabou mas, at� hoje, ningu�m sabe confirmar se ele estava ou n�o com coronav�rus. O teste solicitado ao governo, segundo Bispo, nunca chegou � aldeia. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.