
Em meio ao momento mais duro da pandemia do novo coronav�rus no Brasil at� aqui, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) decidiu refor�ar no SUS a aposta em medicamentos cuja efic�cia contra a COVID-19 n�o foi comprovada cientificamente. Pressionado pelo chefe do Executivo nacional, o Minist�rio da Sa�de, em documento sem assinatura de nenhum m�dico, liberou o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina por pacientes com sintomas leves da doen�a. A decis�o gerou cr�ticas de pesquisadores e profissionais de sa�de, que apontaram a falta de estudos robustos que deem sustenta��o ao protocolo do governo federal.
O vi�s pol�tico que paira sobre os debates a respeito das subst�ncias tamb�m foi questionado. Desde que o v�rus chegou ao pa�s, Bolsonaro tem defendido de forma ferrenha o uso indiscriminado dos medicamentos. Contr�rios � posi��o do presidente, os m�dicos Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich viram a cloroquina e a hidroxicloroquina se tornarem ‘piv�s’ de suas sa�das do Minist�rio da Sa�de. O comando da pasta, ent�o, ficou interinamente a cargo do general Eduardo Pazuello, sem forma��o na medicina.

"Droga para ser usada na popula��o n�o pode ser droga que simplesmente as pessoas acham que funciona. N�o � assim. Temos que ter evid�ncia cient�fica. E evid�ncia se chama pesquisa cl�nica. Com todo rigor: pesquisas randomizadas, duplos cegos, sem interfer�ncia nenhuma do pesquisador, an�lise externa"
Carlos Starling, infectologista e membro do comit� de combate ao coronav�rus da PBH
“O debate sobre a cloroquina teve um grande preju�zo, porque ele ficou politizado. Ent�o, ele est� saindo da ci�ncia e est� indo para o lado pol�tico. Isso � terr�vel, porque a cloroquina tem que ser estudada dentro da ci�ncia, e n�o politizada, que � o que est� sendo feito, infelizmente, principalmente pelo nosso presidente. H� uma polariza��o que n�o se baseia em fatos cient�ficos, mas sim nas opini�es pol�ticas dos cidad�os. Na minha vis�o, � muito importante voc� seguir a ci�ncia. A ci�ncia ainda est� muito aberta em rela��o � cloroquina”, disse o presidente da Sociedade Mineira de Infectologia, Estev�o Urbano.
Debate cient�fico
As primeiras pesquisas sobre cloroquina e hidroxicloroquina (um derivado menos t�xico da droga) datam dos anos 1930 e 1940. Ao longo das d�cadas seguintes, as subst�ncias passaram a ser utilizadas no tratamento de doen�as como mal�ria, l�pus e artrite. Depois dos primeiros registros do novo coronav�rus na China, pesquisadores testaram os medicamentos em dezenas de estudos cient�ficos.
As investiga��es iniciais no pa�s asi�tico, feitas in vitro (em laborat�rio, com culturas de c�lulas), surgiram como uma esperan�a. Tempos depois, um estudo da Universidade de Medicina de Marselha, na Fran�a, anunciou resultados positivos do tratamento que associa a hidroxicloroquina com o antibi�tico azitromicina. A pesquisa francesa, por�m, foi desacreditada pela comunidade cient�fica internacional, que apontou problemas metodol�gicos, como o pequeno n�mero de pacientes (apenas 36), a compara��o pouco rigorosa entre os doentes e a maneira de an�lise dos resultados.

"� um verdadeiro absurdo o governo fazer isso, principalmente por se tratar de uma medica��o que boa parte de n�s, m�dicos, n�o temos experi�ncia de prescri��o (...) N�o � uma medica��o de uso corriqueiro. Alguns pacientes, principalmente os que tratam uma doen�a chamada l�pus, usam. S� que normalmente � receitado pelo m�dico especialista, que � o reumatologista"
Odara Caires, m�dica de Petrolina (PE)
Tempos depois, novas pesquisas com maior quantidade de pacientes mostraram que os medicamentos n�o apresentam vantagens e, pelo contr�rio, podem at� acarretar piora no quadro. O principal efeito colateral das drogas � a arritmia card�aca. Em estudo publicado no Journal of the American Medical Association (Jama), dos EUA, pesquisadores n�o identificaram redu��o de mortalidade por COVID-19 em pessoas que usaram hidroxicloroquina. Pesquisa publicada no The New England Journal of Medicine examinou 1.376 pacientes e chegou a conclus�o semelhante, sem identificar benef�cios.
Diante das incertezas sobre os medicamentos, a Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) n�o reconhece nenhum tratamento como eficaz. A decis�o do Minist�rio da Sa�de de liberar o uso do medicamentos - em associa��o � azitromicina - causou repercuss�o negativa na comunidade cient�fica.
“Se n�s incorporarmos uma droga simplesmente no desespero, corremos o risco de provocar mais dano do que benef�cio. Al�m de tudo, deseduca a popula��o e coloca em xeque tudo o que j� temos. N�o se pode colocar drogas em uso sem ser droga que tenha passado por todo o escrut�nio e por todo o rigor de uma pesquisa cl�nica bem planejada e bem conduzida”, pontua o infectologista Carlos Starling.

"O que estamos propondo, v�rios hospitais, pesquisadores e universidades - inclusive a nossa da UFMG, do HC -, propondo ensaios cl�nicos para responder a essa lacuna na ci�ncia. Melhora? � bom? Quando deve usar? Qual a dose que se deve usar? A partir desses ensaios cl�nicos, desses estudos cl�nicos feitos pela ci�ncia, de forma bem rigorosa, � que a gente pode responder a essas perguntas. � bom ou n�o �? Quem vai usar? Quando? Como? Infelizmente, esse debate � pat�tico"
Una� Tupinamb�s, infectologista e professor da UFMG
O documento
No protocolo divulgado ontem, o Minist�rio da Sa�de lista os sintomas para os diferentes n�veis de gravidade da doen�a (leve, moderado e grave). A pasta ainda sinaliza a dosagem recomendada para cada tipo de paciente ao longo de todo o tratamento, que � baseado na associa��o da hidroxicloroquina ou da cloroquina com a azitromicina.Antes de come�ar a ingerir as subst�ncias, o paciente precisa assinar um termo de “ci�ncia e consentimento” sugerido pelo minist�rio. No documento, o governo federal lista os riscos do tratamento. “Estou ciente de que o tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina associada � azitromicina pode causar os efeitos colaterais descritos acima e outros menos graves ou menos frequentes, os quais podem levar � disfun��o de �rg�os, ao prolongamento da interna��o, � incapacidade tempor�ria ou permanente e at� ao �bito”, diz o documento.
O pr�prio presidente Jair Bolsonaro, nas redes sociais, frisou que “n�o existe comprova��o cient�fica” para o tratamento. “Contudo, estamos em guerra: pior do que ser derrotado � a vergonha de n�o ter lutado”, publicou.
Na linha de frente
No dia a dia de atendimento, profissionais de sa�de buscam respaldo cient�fico para decidir os rumos do tratamento. Professora da Universidade Federal de Uberl�ndia (UFU) e m�dica do Hospital das Cl�nicas local, Nicole Geovana se disse contr�ria ao uso das subst�ncias, j� que ainda n�o h� comprova��o cient�fica. Ela alertou para a possibilidade, inclusive, de piora no quadro do paciente.

"Embora n�o esteja nada certo e tudo seja apenas hip�teses e intui��es, uma opini�o pessoal � que eu acho que se a cloroquina tiver que fazer algum efeito seria realmente na fase precoce, em pessoas do grupo de risco, para tentar evitar que elas evoluam para formas graves. J� quando chega esse paciente com a forma grave, eu j� vejo com mais ceticismo (...) E repito: a cloroquina n�o pode ser nem aclamada como um milagre e nem demonizada"
Est�v�o Urbano, presidente da Sociedade Mineira de Infectologia
“Na medicina de fam�lia, que � a minha especialidade, a gente tem uma outra atitude, que a gente chama de preven��o. S�o quatro tipos de preven��o em sa�de: a prim�ria, a secund�ria, a terci�ria e a quatern�ria. A quatern�ria � sobre n�o fazer mal ao paciente. Antes de tudo, n�o fazer mal. Neste momento, o uso da hidroxicloroquina � algo que vai contra esse princ�pio. Ou seja, n�o s� n�o estamos ofertando uma terap�utica que vai ajudar o paciente, como a gente est� ofertando algo que vai ser bem prejudicial para ele”, disse.
O posicionamento foi refor�ado por L�da Mendes, m�dica no Centro de Sa�de Novo Aar�o Reis, em Belo Horizonte. Na linha de frente do combate ao v�rus, ela mostrou contrariedade � prescri��o das subst�ncias a pacientes em fase inicial de tratamento. “Eu, assim como meus outros colegas, n�o comungamos desse protocolo. Em geral, recomendamos medica��o para febre e dor, soro fisiol�gico, hidrata��o oral frequente e alimenta��o saud�vel. E fazemos observa��o. Em caso de piora, que retornem imediatamente � unidade. Para aqueles que porventura pedirem opini�o e pedirem que seja prescrito, nossa fun��o � orientar que n�o existem benef�cios comprovados”, disse.
Em outros estados do Brasil, a discuss�o tamb�m est� no dia a dia dos profissionais de sa�de que trabalham na linha de frente do combate ao v�rus. M�dica em Petrolina, Pernambuco, Odara Caires critica o protocolo do Minist�rio da Sa�de. “Vai totalmente contra ao que � recomendado hoje pelos principais �rg�os tanto internacionais, quanto nacionais. N�o existe um tratamento espec�fico para o coronav�rus. Todo tratamento que a gente faz � o de suporte. Eu nunca prescrevi. N�o � uma medica��o de uso corriqueiro”, pontua.

"N�o prescrevi, mas n�o duvido que eventualmente, numa situa��o de maior gravidade, n�o prescreveria. Te digo isso com base numa quest�o simples: v�rios colegas m�dicos muito conhecidos, refer�ncias em suas especialidades no pa�s, internados em S�o Paulo, fizeram uso. Foram tratados com hidroxicloroquina (...) � estratificar o risco do paciente. Se voc� tem um paciente cardiopata, essa � uma situa��o em que certamente contraindicaria o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina. Existem formas de voc� avaliar adequadamente os pacientes de maior, menor e risco proibitivo para o uso dessa e quaisquer outras drogas"
Vitor Mendes de S�, m�dico do Hospital Jo�o XXIII
Cada caso � um caso
Por outro lado, tamb�m h� aqueles que defendem que a medica��o pode ser prescrevida a depender do cen�rio. “N�o prescrevi, mas n�o duvido que eventualmente, numa situa��o de maior gravidade, n�o prescreveria”, disse Vitor Mendes de S�, m�dico do Hospital Jo�o XXIII, de Belo Horizonte. Questionado sobre os efeitos colaterais, ele afirma que o profissional deve avaliar os riscos e n�o indicar as subst�ncias em casos com complica��es potencialmente maiores. “� estratificar o risco do paciente. Se voc� tem um paciente cardiopata, essa � uma situa��o em que certamente contraindicaria o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina. Existem formas de voc� avaliar adequadamente os pacientes de maior, menor e risco proibitivo para o uso dessa e qualquer outras drogas”, conclui.
Medicamentos com base na cloroquina e hidroxicloroquina
- Indica��o: indicados em caso de reumatismo, problemas de pele, artrite reumatoide, l�pus e mal�ria
- Efeitos colaterais: dist�rbios de vis�o, irrita��o gastrointestinal, altera��es cardiovasculares e neurol�gicas, cefaleia, fadiga, nervosismo. Quem tem psor�ase ou porfiria pode ter ataque agudo da doen�a, prurido, queda de cabelo e exantema cut�neo
- Contraindica��es: retinopatias preexistentes, al�rgicos a cloroquina, diagn�stico de porfiria, miastenia gravis ou arritmia, pacientes em uso de digoxina, amiodarona, verapamil ou metoprolol, hipersensibilidade conhecida aos derivados da aminoquinolina; menos de seis anos de idade
- Pre�o: a partir de R$ 50
- Comercializa��o: venda permitida somente com prescri��o m�dica