O telefone toca na prefeitura de S�o Gabriel da Cachoeira at� cair. Ningu�m atende tamb�m na C�mara e na Delegacia. S�o 16 horas. O sil�ncio toma conta da cidade em raz�o do toque de recolher decretado pela prefeitura. Ele come�a �s 15 horas e se estende at� as 6 da manh� seguinte.
Barreiras do Ex�rcito na Ilha das Flores, no Rio Negro, impedem o tr�fego de voadeiras, as lanchas r�pidas que desafiam as �guas em dire��o �s terras ind�genas da fronteira com a Venezuela e dos seus afluentes - Rios Uap�s e I�ana -, que v�o at� a Col�mbia. Todo o esfor�o � parte da estrat�gia das autoridades para proteger os 45 mil habitantes do munic�pio - 95% dos quais �ndios de 23 etnias -, amea�ados pela covid-19.
A chegada da doen�a est� sendo avassaladora no �ltimo recanto do Amazonas ainda n�o completamente invadido pelo coronav�rus. Em abril, o v�rus se espalhou pelos munic�pios da calha do Rio Solim�es, at� Tabatinga, na tr�plice fronteira. Ali est�o cinco das dez cidades com o maior n�mero de mortes por cem mil habitantes do Pa�s causadas pelo Sars-CoV-2. No Rio Negro, a doen�a subiu mais lentamente, mas n�o menos amea�adora.
Desde que foi detectada em 26 de abril em S�o Gabriel da Cachoeira (a 872 km de Manaus), ela deixou 17 mortos, 15 na sede do munic�pio e dois em comunidades de �ndios tukanos - as mortes por cem mil habitantes s�o tr�s vezes maiores do que as de S�o Paulo. At� ontem, havia 577 casos confirmados e outros 554 suspeitos. H� dez �ndios internados, quatro deles levados de avi�o para Manaus.
A chegada da doen�a trouxe uma s�rie de desafios �s autoridades, �s organiza��es n�o governamentais, como o Instituto SocioAmbiental (ISA), e ao Ex�rcito, que convivem com os �ndios do rio e os da mata. No primeiro grupo est�o os de fala tukano e arawak. No segundo, os do grupo lingu�stico maku, como os hupdas. "Cada um deles representou um desafio diferente", disse Juliana Radler, representante do ISA no Comit� de Crise de S�o Gabriel da Cachoeira. Um deles era como contar aos hupdas que uma doen�a grave chegaria naquelas terras e que eles deviam se proteger.
Os hupdas passaram por uma grande trag�dia h� 50 anos, quando a etnia foi dizimada por um surto de sarampo. Hoje, eles s�o 1.500 que vivem entre os Rios Papuri e Tiqui�, na Cabe�a do Cachorro, na fronteira com a Col�mbia. "T�nhamos um grande receio de causar p�nico e levar a um suic�dio em massa da etnia", afirmou Juliana. O grupo preparou cartilhas. A dos hupdas diz: "Covid-19, Nig k�y kem, �h bab� d��h!", que em hup significa "Covid-19, toma cuidado, parente". Al�m de hup tamb�m foram feitas cartilhas em outras quatro l�nguas: tukano, baniwa, d�w e nheengatu. Foram 21 mil exemplares - 6 mil em portugu�s. Tudo antes de a doen�a chegar.
"Nosso primeiro paciente diagnosticado morreu tr�s dias depois", afirmou F�bio Sampaio, secret�rio de Sa�de de S�o Gabriel. Era o professor Antonio Benjamim, de 45 anos, da etnia baniwa. A morte deixou a cidade em polvorosa. At� ent�o, as autoridades tinham dificuldade para fazer os moradores - cerca de 50% da popula��o na sede do munic�pio - respeitarem o distanciamento social, ainda mais na fila da lot�rica, �nico lugar onde os moradores podem receber benef�cios, como o Bolsa Fam�lia. Nos dias de pagamento, de 500 a 1 mil pessoas s�o atendidas pelos dois caixas do lugar.
Dinheiro. "Muitos �ndios v�m das comunidades at� S�o Gabriel para receber benef�cios do governo e comprar mantimentos", disse Marivelton Barroso, da etnia bar�, presidente da Federa��o das Organiza��es Ind�genas do Rio Negro. Ao todo, h� 750 comunidades na regi�o - o munic�pio � o que tem a maior popula��o ind�gena do Pa�s. O prefeito, Cl�vis Saldanha (PT), de 48 anos, foi um dos primeiros atingidos pela doen�a - ele testou positivo em 1.� de maio. No dia 12, a covid-19 matou o artista mais conhecido da cidade: Feliciano Lana, da etnia desana, tinha 83 anos. Suas pinturas e desenhos fazem parte de cole��es de museus no Brasil e no exterior, como o British Museum.
Quando morreu, fazia oito dias que o munic�pio institu�ra o lockdown (bloqueio total). Os homens da Pol�cia Militar e os 40 da Guarda Civil se uniram para fazer o decreto ser respeitado. Ao mesmo tempo, um comit� de crise foi formado com a participa��o do Ex�rcito, que administra o �nico hospital da cidade. Os militares institu�ram uma barreira rio acima, na Ilha das Flores, para impedir a entrada de estranhos nas terras ind�genas. "A doen�a chegou aqui pelo rio", disse Marivelton. Na comunidade tukano de Boa Esperan�a, os �ndios decidiram fechar o acesso. Perto da Capela de Santo Ant�nio, um cartaz foi pendurado em uma corrente que fecha a rua de terra: Ningu�m entra. Nem parente ou amigo.
Mas, apesar do isolamento, o coronav�rus, chegou ao lugar. "Dois �ndios que vieram buscar mantimentos se contaminaram na cidade", contou Marivelton. Um morreu na Boa Esperan�a. Outro, na comunidade Merc�s. Os casos suspeitos nas aldeias est�o sendo isolados pelos �ndios em casas ou s�tios. Da sede do munic�pio acompanha-se o avan�o da doen�a pelos radioamadores de 210 esta��es. No distrito de Taraqu�, uma comunidade hupda na fronteira com a Col�mbia, tudo foi fechado. "Eles n�o recebem visita", contou Marivelton.
Se antes as dist�ncias amaz�nicas atrasaram a chegada da doen�a, agora elas tornam mais dif�cil o socorro das v�timas. "Temos lugares, como S�o Joaquim, que ficam a tr�s dias e meio de barco da cidade e uma hora de avi�o", disse o secret�rio. O Hospital de Guarni��o de S�o Gabriel da Cachoeira (HGuSGC) tinha seis respiradores artificiais at� ganhar mais oito, enviados de Bras�lia, ao mesmo tempo em que o Ex�rcito refor�ou o pessoal do hospital, mandando mais duas m�dicas, uma fisioterapeuta, duas enfermeiras e seis t�cnicas em enfermagem. O lugar recebeu ainda equipamentos de prote��o.
No come�o da semana, o comit� de crise da cidade pediu ao governo do Amazonas mais equipamentos para o HGuSGC e a cria��o de seis enfermarias em �reas ind�genas, al�m da abertura de um hospital de campanha em S�o Gabriel. Antes de receber uma resposta, o comit� decidiu prorrogar por mais 15 dias o lockdown e o toque de recolher no munic�pio. Aumentar o isolamento amaz�nico � ainda a aposta para proteger os �ndios.
Os pais de Eliz�ngela da Silva Bar�, de 36 anos, se lembram quando o sarampo chegou ao Alto Rio Negro. Casada e m�e de tr�s filhos, ela sabe do cataclismo que se abateu sob as etnias do Alto Rio Negro. E, como no passado, mais uma vez foi na medicina tradicional que os povos ind�genas foram buscar o lenitivo e a cura para um novo mal: a covid-19.
Eliz�ngela trabalha na campanha Rio Negro, N�s Cuidamos, uma iniciativa da Federa��o das Organiza��es Ind�genas do Rio Negro. Seu trabalho lhe permite que em tempo de pandemia contatar as mais diversas comunidades da regi�o. E testemunhar o interesse renovado dos �ndios de lascas da carapana�ba, com a qual se faz o banho e uma infus�o, com propriedades anti-inflamat�rias, ou ainda a saracura-mir�, cujo ch� � t�o conhecido como o do jambu ou o de mangarataia, misturado ao mel das abelhas e ao lim�o. H� ainda a folha de capeba. "Tudo isso tem funcionado. A medicina tradicional � como as comunidades est�o tratando os doentes. E com sucesso", disse.
Eliz�ngela mesmo adoeceu nos primeiro dias da chegada do Sar-Ciov-2 a S�o Gabriel da Cachoeira. "Eu estava na linha de frente com a comunidade." Ela ficou 15 dias afastada do trabalho e se tratou com os ch�s e com banhos de manh�. "Mesmo na cidade, os �ndios n�o aldeados est�o recorrendo � medicina tradicional. Tem funcionado at� como preven��o." Eliz�ngela mora com a fam�lia na sede do munic�pio desde 2017 - ela nasceu na terra ind�gena Cu�-cu� Marabitanas, que re�ne quase dois mil ind�genas dos grupos lingu�sticos tukano e arawak.
A cidade cada vez mais atrai os �ndios das proximidades. A regi�o do Rio Negro n�o tem pescado suficiente nem as ro�as garantem toda a subsist�ncia. "Os povos criaram o h�bito de vir at� a cidade para levar mantimentos para as aldeias", afirmou Marivelton Barroso, presidente da Federa��o. � por isso que Eliz�ngela e outros volunt�rios est�o distribuindo cestas b�sicas para as comunidades da regi�o.
"As pessoas v�m � cidade para receber o aux�lio de 600 reais e voltam para as comunidades com o v�rus", disse Eliz�ngela. N�o h� como evitar aglomera��es na cidade. "�s vezes o parente (�ndio) n�o entende portugu�s." Mas todos entendem a medicina tradicional . "Ela tem ajuda a superar a doen�a", diz Marivelton. Para uma doen�a que o homem branco n�o sabe como tratar, os �ndios apostam na prote��o dos esp�ritos. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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