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Estado de Minas AMBIENTE E CULTURA

Devasta��o do cerrado amea�a povo quilombola

Den�ncias levam a flagrantes de grandes desmatamentos na Chapada dos Veadeiros, com invas�o pelo agroneg�cio de �reas do maior remanescente de quilombo do pa�s


02/08/2020 04:00 - atualizado 02/08/2020 14:00

Marcas de pneus de trator: rastros deixados por técnicas agressivas para colocar abaixo a vegetação de cerrado (foto: Fotos: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Marcas de pneus de trator: rastros deixados por t�cnicas agressivas para colocar abaixo a vegeta��o de cerrado (foto: Fotos: Leandro Couri/EM/D.A Press)

 
Leandro Couri (texto e fotos)
Enviado especial

Chapada dos Veadeiros/Cavalcante (GO) – Sob a sombra da pandemia, fazendeiros e prefeito de uma cidade goiana s�o acusados de devastar milhares de hectares de mata nativa de cerrado na regi�o da Chapada dos Veadeiros, no estado vizinho a Minas, incluindo parte de uma �rea no maior quilombo do Brasil, o Kalunga, com 262 mil hectares. Somente entre os meses de maio e junho, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustent�vel (Semad) de  Goi�s confirmou o desmatamento  de mais de 2 mil hectares, em 25 pontos. Por�m, comunidades tradicionais e organiza��es n�o governamentais dizem que o estrago pode ser muito maior.

Estudo publicado este m�s na revista Science identificou que um quinto das exporta��es de soja da Amaz�nia e do cerrado brasileiro � Uni�o Europeia tem a mancha do desmatamento ilegal. O dado se reflete em flagrantes como os registrados nesta reportagem em Cavalcante, no Nordeste de Goi�s. Integrantes da comunidade local denunciam que, aproveitando-se de um momento em que quase toda a aten��o da sociedade se voltou para a sa�de, desmatadores come�aram a agir com maior intensidade, usando tratores, correntes, esteiras, motosserras, fogo, causando todo tipo de degrada��o.

Acostumados a fiscalizar e a preservar o meio ambiente, integrantes da popula��o local, em especial os quilombolas, acreditam que criminosos agem na percep��o de que h� menos gente para vigiar �rea t�o extensa, o que tem incentivado os crimes. De fato, fazendeiros t�m se aproveitado para destruir �reas de preserva��o na Chapada dos Veadeiros, que � um dos maiores pontos de reposi��o h�drica da bacia Amaz�nica, a maior da Am�rica do Sul.

Lideran�as tamb�m apontam que, devido � demora na titula��o das terras – demarcadas desde 2009, mas que ainda esperam desapropria��o pelo governo federal –, os crimes t�m se intensificado. “Principalmente ap�s fala do ministro”, atesta um quilombola local, referindo-se a Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Em reuni�o ministerial com presen�a do presidente Jair Bolsonaro, cujo conte�do foi divulgado pela Justi�a, o titular da pasta indica que o momento em que a aten��o da imprensa est� voltada para a pandemia � um “al�vio” e uma oportunidade para “passar as reformas infralegais de desregulamenta��o”.

“Ent�o, para isso precisa ter um esfor�o nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque s� fala de COVID, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De Iphan (Instituro do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional (Iphan), de Minist�rio da Agricultura, de Minist�rio de Meio Ambiente, de minist�rio disso, de minist�rio daquilo. Agora � hora de unir esfor�os pra dar de baciada a simplifica��o”, conclui Ricardo Salles, aparentemente tratando de regras da administra��o federal que independem de aprecia��o pelo Congesso Nacional.
 
Queimadas são outro mecanismo para
Queimadas s�o outro mecanismo para "limpeza" de �reas preservadas a fim de abrir campo para o agroneg�cio
 
Coincid�ncia ou n�o com a fala ministerial, descendentes de escravos e moradores do quilombo Kalunga denunciam  o aumento do abuso de invasores e de fazendeiros em suas terras nos �ltimos meses. Para eles, a express�o “passando a boiada”, usada pelo titular com meio ambiente, foi interpretada como um est�mulo a atividades de desmatamento ilegais dentro de terras demarcadas, que possuem �reas ainda em processo de desapropria��o.

Prefeito atuava com ‘aval do munic�pio’

Diante da situa��o denunciada por moradores, nos �ltimos dois meses a Secretaria de Meio Ambiente de Goi�s fez pelo menos duas dilig�ncias no munic�pio de Cavalcante para apurar desmatamento em territ�rio da Chapada dos Veadeiros. Na �ltima incurs�o, uma autua��o foi feita contra o prefeito Josemar Saraiva Freire (PSB-GO), multado em R$ 183 mil, e que ainda teve apreendidos dois tratores. A irregularidade apontada foi o desmatamento de 270 hectares por meio do processo de esteira, que dilacera a vegeta��o em segundos. Durante a abordagem, trabalhadores mostraram uma autoriza��o municipal para fazer limpeza de pasto.

Ver galeria . 19 Fotos Denúncias levam a flagrantes de grandes desmatamentos na Chapada dos Veadeiros, com invasão pelo agronegócio de áreas do maior remanescente de quilombo do país Leandro Couri/EM/D.A Press
Den�ncias levam a flagrantes de grandes desmatamentos na Chapada dos Veadeiros, com invas�o pelo agroneg�cio de �reas do maior remanescente de quilombo do pa�s (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press )
A secret�ria de Meio Ambiente, Andrea Vulcanis, diz que o documento n�o tem validade e � fraudulento, usado apenas para justificar a situa��o flagrada. Em uma conta em rede social, a secret�ria publicou v�deo para esclarecer a popula��o de Cavalcante sobre manifesta��es do prefeito diante da a��o de Semad. “� inaceit�vel o posicionamento do prefeito Josemar Saraiva Freire quando afirma, em discurso, que a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustent�vel do Governo do Estado est� no munic�pio para prejudicar o produtor rural”, diz Andr�a.

Afirmando que a acusa��o n�o procede, ela sustenta n�o poder “compactuar com o crime ambiental, com o desmatamento de grandes �reas, sem licen�a”. “E, o que � pior no caso do prefeito: ele utilizou uma licen�a concedida pelo munic�pio de forma absolutamente ilegal. Como agente p�blico, pegou sua estrutura de governo para benef�cio pr�prio”, alertou. “Vejam bem: 270 hectares de �rea desmatada � muito grande, sendo 35 hectares em terra p�blica, e o prefeito sabe disso. Al�m disso, os produtores rurais n�o conseguem suas licen�as locais”, relata.

Procurado pela reportagem do jornal Estado de Minas, o prefeito preferiu n�o se manifestar sobre o assunto, limitando-se a dizer, em conversa via WhatsApp sobre a acusa��o de desamate ilegal: “Para come�o de conversa, minha propriedade n�o est� localizada na Chapada dos Veadeiros”.

Na sequ�ncia, Josemar Freire procurou classificar como tema sem import�ncia o que a Semad/GO qualificou como crime ambiental: “Rapaz, esse caso j� ‘t�’ velho, procura outra coisa, mo�o”. Em seguida, o prefeito bloqueou o contato e n�o mais atendeu liga��es, embora v�rios meios tivessem sido colocados � disposi��o para que se posicionasse.

Em outra �rea da mesma regi�o, na mesma dilig�ncia, perto do Rio S�o F�lix, na cabeceira do Rio Prata, foram encontrados pontos de extra��o de ouro e mangan�s, de uma empresa, que n�o teve o nome divulgado. Onze m�quinas foram apreendidas no local, incluindo dragas e tratores.
 
Comunidade tradicional que ainda não teve terras regularizadas denuncia invasões cada vez mais frequentes
Comunidade tradicional que ainda n�o teve terras regularizadas denuncia invas�es cada vez mais frequentes
 

Corrent�o e fogo consomem mata

Den�ncias de que, somente entre maio e junho, mais de mil hectares foram arrancados ilegalmente no munic�pio de Cavalcante, com justificativas e documentos question�veis, levaram � cidade do Nordeste goiano fiscais da Semad/GO. Em vistorias a duas fazendas, registraram desmatamento de vegeta��o nativa em “regi�o de abrang�ncia de unidades de conserva��o da natureza e territ�rios tradicionais”.

Com o apoio da Delegacia Estadual de Repress�o a Crimes contra o Meio Ambiente, da Pol�cia Civil, equipes apontaram poss�veis irregularidades nas duas propriedades. Na primeira foram mapeados 15 pol�gonos, totalizando 475 hectares suprimidos. A Semad entendeu que as �reas tiveram ocorr�ncia recente de fogo, “uma pr�tica maliciosa para ir deitando o cerrado”, como explica um guia local. O propriet�rio foi apenas advertido.

J� na segunda propriedade, a Fazenda Alagoas, foram identificados 527 hectares de desmatamento em duas �reas. Segundo o relat�rio de fiscaliza��o ambiental, ao qual a reportagem teve acesso, foi poss�vel verificar �rvores deitadas, com folhagem ainda verde, “o que evidencia a utiliza��o recente da t�cnica de desmatamento utilizando cabo/corrent�o tracionado por tratores”. Uma refer�ncia a um m�todo agressivo que consiste na derrubada de mata feita por dois tratores que, andando em linhas paralelas e com uma corrente presa entre eles, arrancam tudo ao redor.

O documento cita ainda outras evid�ncias, como o solo “raspado” por m�quina agr�cola e outras �reas com supress�o. “Em outra �rea de 1,0209 ha tamb�m foi realizada a raspagem do solo para dep�sito de calc�rio, que segundo o funcion�rio, seria utilizado para corre��o do solo, e j� haveria no local aproximadamente 300 toneladas”. Na sede da fazenda, tamb�m foram identificadas irregularidades. “Na estrada vicinal de acesso � sede da fazenda, ap�s a placa e porteira, observou-se a supress�o vegetal numa �rea de 1,6267ha, que incluiu o corte/destoca de 24 �rvores, pela passagem de maquin�rio, visando ao alargamento da via de acesso”.

A atua��o encerra ordenando o embargo total das atividades na fazenda, e multa de quase R$ 6 milh�es. “Ap�s a an�lise e mensura��o remota tendo como subs�dios imagens de sat�lite recentes, an�lise de bases e processos e verifica��o in loco para confirma��o da ocorr�ncia denunciada de desmatamentos na Fazenda Alagoas, inicialmente foram lavrados os autos de infra��o e os termos de embargo apresentados”, diz trecho do procedimento. “Ap�s an�lise de agravantes considerando os dados e insumos coletados em campo, bem como a verifica��o e confirma��o de que a �rea onde ocorreram os desmatamentos incide totalmente sobre o Territ�rio Quilombola Kalunga, foram lavrados os autos de infra��o e termos de embargo”, conclui.

Documentos apresentados por funcion�rio da Fazenda Alagoas, segundo a autua��o, eram incompat�veis com o que foi encontrado e podem caracterizar fraude. Nenhum deles, conforme as autoridades, permitiria o desmatamento do cerrado, menos ainda o uso do chamado corrent�o. Procurados pelo Estado de Minas para se manifestar sobre o assunto, nenhum representantes da Fazenda Alagoas foi encontrado ou retornou os contatos deixados em Cavalcante, at� o fechamento desta edi��o. Das autua��es cabem recursos.

Quilombo Kalunga: o alvo das invas�es

Considerado um dos maiores do Brasil, o quilombo Kalunga, em Goi�s, � tamb�m um dos mais preservados. Por�m, associa��es locais e a comunidade tur�stica de Cavalcante denunciam o aumento de ocorr�ncias de devasta��o, confirmadas pelas dezenas de autua��es.

Nos �ltimos anos, com a melhora das estradas, foi que se observou o aumento da ousadia dos infratores. “A solu��o � estarmos atentos e usar nossas redes sociais, celular, para denunciar esse tipo de coisa. Antes de ter estrada pra c�, ningu�m invadia o territ�rio assim, n�o. Depois que constru�ram estradas, facilitando o acesso, foi que surgiram v�rias propriedades, v�rios 'donos'. � preciso mobilizar, contar com pessoas que amam o meio ambiente e que est�o dispostos a preservar todos os povos tradicionais deste pa�s, deste mundo”, afirma Geovan dos Santos Oliveira, da Associa��o Quilombola Kalunga Engenho 2.

Para grupos que vivem do turismo e da preserva��o da cultura local, a lentid�o do processo de desapropria��o e titula��o das terras quilombolas � programada e tem por objetivo “ganhar tempo para abrir brechas em leis j� estabelecidas”, aponta um integrante do Conselho Municipal de Turismo de Cavalcante, que prefere o anonimato. A entidade publicou manifesto pedindo o embargo de todas as obras em �reas da Chapada dos Veadeiros, e agilidade no processo de reconhecimento de toda a extens�o do territ�rio quilombola.



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