Uma rajada de tiros acordou de madrugada boa parte da casa da mission�ria, cantora gospel e deputada federal Flordelis dos Santos, de 59 anos, na Rua Cruzeiro, onde normalmente dormiam mais de 30 pessoas. Habituados a descansar sob o som de confrontos nas redondezas de Pendotiba, em Niter�i, outros moradores s� foram despertar mesmo com a gritaria e o corre-corre seguintes.
Estirado no ch�o da garagem e ferido � bala, estava o pastor Anderson do Carmo de Souza, de 42 anos, marido, administrador da casa e principal mentor das carreiras art�stica e pol�tica de Flordelis. Eram 3h30 do dia 16 de junho de 2019. Foi quando come�ou a investiga��o. O enteado da v�tima, Fl�vio dos Santos Rodrigues, de 39 anos, foi preso como executor ainda no vel�rio. Ao menos outros oito integrantes da fam�lia teriam participa��o no crime. Entre os acusados, s� a suposta mandante est� em liberdade: Flordelis, beneficiada pela imunidade parlamentar. Ela alega inoc�ncia.
O Estad�o teve acesso ao relat�rio final da Pol�cia Civil, duas den�ncias oferecidas pela promotoria, al�m de depoimentos juntados aos autos do processo. A hist�ria narrada nos documentos contraria o hist�rico de boa pastora da deputada federal e sugere uma trama nada crist�, que envolve disputa por dinheiro, interesses pol�ticos e at� suspeitas de abuso sexual.
Com orat�ria de causar inveja, o pastor Anderson do Carmo conduzia os cultos com bom humor. Durante a prega��o, alternava leituras de vers�culos b�blicos com epis�dios da pr�pria biografia. Uma das passagens mais exploradas era sua hist�ria de amor com Flordelis.
Segundo conta, os dois se conheceram em uma igreja na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, em 1991, �poca em que ela j� havia come�ado a recolher jovens abandonados.
No in�cio do relacionamento, Anderson era um adolescente de 15 anos e come�ava a liderar um grupo de jovens da Assembleia de Deus. Por sua vez, Flordelis cantava e tocava guitarra nos cultos e declarava j� ter feito prega��o at� na porta de baile funk. Rec�m-separada do primeiro marido, ela tinha o dobro da idade dele: 31 anos. Na �poca, a mission�ria j� cuidava de ao menos cinco crian�as recolhidas, al�m dos tr�s filhos biol�gicos - Fl�vio e Adriano dos Santos Rodrigues, e uma mo�a, Simone, xod� e bra�o direito.
Nessa �poca, ele foi morar com Flordelis. Em uma casa de dois quartos, sala e cozinha no Jacarezinho, espremiam-se beb�, crian�as e adolescentes que ela alega ter resgatado do tr�fico ou das cal�adas do Rio. Pobre e numerosa, a fam�lia dependia de doa��es para sobreviver.
Anderson e Flordelis se casaram em 1998. Entre filhos biol�gicos da mission�ria, adotados e s�cioafetivos (aqueles que nunca tiveram a situa��o regularizada na Justi�a), teriam criado um total de 55 jovens, muitos deles com hist�rias comoventes. Na casa, havia desde rec�m-nascido abandonado no lix�o a ex-integrantes de fac��es criminosas e sobreviventes da Chacina da Central do Brasil. Com o tempo, Flordelis tamb�m come�ou a colecionar apari��es em jornais e problemas com a Vara da Inf�ncia. Para fugir da Justi�a, teria pulado de casa em casa e dormido na rua.
A mudan�a
Rejeitado por "pais esp�ritas", o pastor Luan dos Santos tinha 15 anos na �poca que foi acolhido. Segundo relata, Flordelis levava a fam�lia para "evangelizar" � noite, peregrinando pela cidade e entregando mantimentos a desabrigados. Com o passar dos anos, a evangeliza��o foi se transformando no Minist�rio Flordelis, a igreja da fam�lia, com sede em Mutondo. Nos tempos de carestia, todos tinham fun��o na casa e os irm�os adolescentes precisavam cuidar dos mais novos. Parte deles, por exemplo, dava banho nos menores. Uns eram respons�veis por recolher doa��es nas ruas e em feiras. Outros organizavam a comida. Tamb�m havia filhos destacados para falar sobre a m�e a quem parasse para ouvir.
Embora fosse da mesma faixa et�ria de alguns filhos, Anderson se consolidou como o administrador da casa e da igreja. Inteligente e bem articulado, ele seria "a mente por tr�s" da transforma��o de Flordelis em uma esp�cie de "marca". O ano de 2009 � decisivo para o boom financeiro do casal. Em outubro, surge o filme Flordelis: Basta Uma Palavra Para Mudar, recheado de atores globais que dispensaram cach� para retratar a vida da mission�ria. Nele, Anderson � o produtor.
Foi nessa �poca que Flordelis fechou contrato com a gravadora MK Music, uma das maiores do universo gospel, iniciando uma rotina de convites para shows e grandes eventos. Em alta, a igreja da fam�lia come�ou a abrir filiais, como em Jardim Catarina, Itabora�, Itaipua��, Pendotiba e Piratininga. No in�cio da d�cada, o casal conseguiu comprar uma casa espa�osa em um condom�nio em Pendotiba, Niter�i. Foi l� que Anderson acabou executado.
Uma filha adotiva relatou � pol�cia que "a partir do momento que a situa��o financeira come�ou a melhorar", na mesma propor��o come�aram as brigas entre sua m�e e seu pai adotivos. "A m�e acreditava que ela era a respons�vel pela melhoria da condi��o financeira da fam�lia, porque tudo girava em torno de seu nome, e n�o do nome do seu pai, apesar de ele ter sido o mentor dela", diz o inqu�rito.
Com as suspeitas do crime recaindo sobre Flordelis, a igreja acabou rebatizada de Comunidade Evang�lica Cidade do Fogo. J� com a den�ncia do Minist�rio P�blico, oferecida no m�s passado, a mission�ria perdeu o contrato com a MK Music.
Investiga��o revela privil�gios entre filhos e suspeitas de abuso
Uma s�rie de epis�dios foi trazida � tona pela investiga��o policial em uma vers�o diferente. Ao contr�rio da hist�ria conhecida, Anderson come�ou a frequentar a casa de Flordelis na d�cada de 1990 porque namorava com Simone, a filha biol�gica da mission�ria, rela��o que depois foi trocada pela m�e.
"Flordelis foi na casa da m�e de Anderson e pediu autoriza��o para lev�-lo para orar nos montes", descreve o advogado �ngelo M�ximo, que representa a fam�lia do pastor. A m�e dele, Maria Edna do Carmo, morreu aos 65 anos, v�tima de um enfarte, dez meses ap�s o filho. Uma das primeiras a acusar Flordelis de mandar matar o marido, a irm� Michele do Carmo de Souza, de 39 anos, falecera de anemia pouco antes, em outubro. "Partiram sem ver justi�a."
S�o comuns depoimentos relatando que Flordelis e Anderson agiam para distanciar filhos adotivos das fam�lias biol�gicas. Uma das testemunhas de acusa��o, Luan Santos, por exemplo, afirma ter sofrido uma "lavagem cerebral". "Ao se casar em 2008, Anderson o proibiu de convidar os pais biol�gicos", relata no processo.
Muitos discordam tamb�m da afirma��o que a casa era um ambiente de solidariedade. Segundo testemunhas, Flordelis faria distin��o entre os filhos e priorizava a chamada "primeira gera��o" - ou seja, os biol�gicos e primeiros a ser adotados. O grupo tinha direito a despensa separada, enquanto os demais ficavam restritos � "geladeira p�blica", e ganhava melhores presentes e mais dinheiro.
J� Anderson � descrito como "r�gido" e "ambicioso" e acusado de "centralizar o dinheiro" e provocar crises na fam�lia.
No inqu�rito, consta ainda declara��o de um ex-integrante do �Minist�rio Flordelis�, segundo o qual pessoas da igreja realizavam "rituais tenebrosos" e havia "pr�ticas sexuais entre seus membros". O depoimento teria sido confirmado por um ex-pregador, que disse nunca ter presenciado estudos teol�gicos na casa. "� uma seita com apar�ncia de congrega��o religiosa (...) em nada tem a ver com os escritos da B�blia."
Um dos filhos adotivos afirmou ter sido submetido a uma esp�cie de "inicia��o": supostamente ficara trancado por dias em um quarto, recebendo visita apenas de Flordelis para ter rela��es. Tamb�m h� relato de que uma filha tenha sido oferecida a pastores estrangeiros - a Pol�cia Civil considera n�o ter provas suficientes para concluir se houve pr�tica de abuso sexual.
Ainda assim, informa��es sobre poss�veis intimidades do casal foram parar no relat�rio da investiga��o a que o Estad�o teve acesso. Existe a suspeita de que Anderson e Flordelis tenham ido a uma casa de swing em Botafogo, bairro nobre da capital, na madrugada do crime. A deputada nega. Sua vers�o, por�m, n�o bateria com dados de monitoramento de tr�fego recolhidos pela pol�cia. As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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