Considerado o maior bioma �mido do mundo, o Pantanal soma 150 mil km� em territ�rio brasileiro. Est� localizado nos Estados de Mato Grosso (35%) e Mato Grosso do Sul (65%), al�m de partes do norte do Paraguai e do leste da Bol�via, que somadas podem atingir cerca de 250 mil km�. Segundo o Instituto Centro de Vida (ICV), o Pantanal j� perdeu 19% de sua �rea para as queimadas.
Ainda conforme o ICV, e com base em dados da plataforma Global Fire Emissions Database, da Ag�ncia Aeroespacial dos Estados Unidos (Nasa) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), �rg�o ligado ao Minist�rio da Ci�ncia e Tecnologia, 95% dos focos de calor deste ano est�o incidindo em �reas de vegeta��o nativa.
O n�mero de focos de inc�ndio registrados no Pantanal de janeiro a agosto equivale a tudo o que queimou no bioma nos seis anos anteriores, de 2014 a 2019, segundo levantamento do Estad�o a partir de dados do Inpe. De 1.� de janeiro a 31 de agosto deste ano, foram registrados pelos sat�lites do instituto um total de 10.153 focos de inc�ndio na regi�o. Se comparado com o ano passado, o n�mero j� � tr�s vezes maior. S� nos 20 primeiros dias de setembro foram mais 5.900 focos de inc�ndios.
O Estad�o conversou com a professora C�tia Nunes da Cunha, que fez p�s-doutorado em ecologia da vegeta��o de �reas �midas pelo Instituto Max-Planck da Alemanha e � pesquisadora associada do Programa de P�s-Gradua��o em Ecologia e Conserva��o da Biodiversidade da Universidade Federal de Mato Grosso (PPG-ECB/IB-UFMT).*
Quais os preju�zos para a biodiversidade do Pantanal, j� que os inc�ndios interrompem ciclos naturais que envolvem fauna e flora da regi�o?
N�o � um fogo normal, � um inc�ndio. Quando o fogo fica fora do controle e se torna inc�ndio, significa que a temperatura atinge n�veis t�o altos que ele calcina, ou seja, torra as plantas que se tornam p�. � uma situa��o nova, inclusive, para pesquisadores. N�o registramos nada dessa intensidade ao longo de nossas pesquisas dentro do Pantanal. Tenho informa��o de fogo dentro da regi�o, mas de forma mais branda. Por exemplo, quando analisamos o banco de sementes, estava l� perfeito, quer dizer que tinha capacidade de se regenerar. Agora, em uma situa��o de inc�ndios no momento atual, ainda n�o temos dados para que possamos avaliar o dano total � regi�o. O que podemos dizer �, com base na experi�ncia e de conhecimento adquiridos ao longo de anos no Pantanal. Al�m disso, � preciso aguardar e ver como ser� a resposta da natureza, associada �s condi��es clim�ticas, com presen�a de chuvas ou n�o.
Al�m dos inc�ndios que est�o se alastrando, o ano n�o come�ou bem para o Pantanal. O desmatamento est� cada vez mais acelerado. O Rio Paraguai, principal formador do Pantanal, chegou a 2,10 metros em junho, m�s marcado por apontar o pico ao longo do ano, o menor n�vel em quase 50 anos. A chuva tamb�m foi escassa na regi�o. Qual deve ser o cen�rio mais prov�vel para o Pantanal nos pr�ximos anos com base em estudos sobre o bioma?
Um dos cen�rios nos leva na dire��o de que, em breve, teremos os efeitos da La Ni�a no Brasil, que j� entrou em atividade (fen�meno clim�tico que provoca o resfriamento da superf�cie das �guas do Oceano Pac�fico). At� chegar ao Pantanal demora mais, mas suponho que teremos per�odos futuros secos. � uma possibilidade. � poss�vel ainda ter a paisagem do Pantanal, como as pessoas dizem 'come�ando a rebrotar', mas isso � vis�o de olhar s� para o verde na natureza, mas podem estar nascendo ali simplesmente esp�cies n�o desej�veis, esp�cies daninhas resistentes ao fogo, no lugar de capim e plantas nativas. Uma situa��o n�o favor�vel. Divido o Pantanal em fun��o de sua flora, porque � um centro que converge v�rios elementos: elementos do bioma da Amaz�nia, do Cerrado do bioma Chaquenho e tamb�m da floresta tropical seca. Estamos no meio, onde esses conjuntos se encontram formando o grande mosaico que � o Pantanal. S� de plantas, s�o em torno de 2 mil esp�cies no Pantanal, entre �rvores, herb�ceas, plantas tipicamente aqu�ticas, arbustos e palmeiras.
H� diferen�as na recupera��o pelo tipo de solo e de vegeta��o. O Cerrado, por exemplo, se recupera mais rapidamente que a Amaz�nia. O que prever para a recupera��o do Pantanal?
No Pantanal, a recupera��o varia de acordo com as caracter�sticas de cada macrohabitat. H� macrohabitats com predomin�ncia de esp�cies do dom�nio do Cerrado, onde campos apresentam gram�neas com folhagens duras como s�o consideradas pelos fazendeiros por causa do alto teor de lignina e com seus sistemas de rizomas subterr�neos conseguem ser resistentes ao fogo. As �rvores t�m estrat�gias de prote��o, cascas grossas e uma s�rie de situa��es adaptativas. Nesse tipo de ambiente, vejo regenera��o natural bastante promissora.
E para as outras �reas?
Entretanto, �reas que passam constantemente por inc�ndios t�m perda na composi��o, na estrutura da vegeta��o e, consequentemente, tamb�m significa perda de habitats para os animais. A vegeta��o serve de abrigo/ref�gio para eles, onde escolhem seu local de prefer�ncia dentro desse mosaico. Se tivermos cada ano uma chuva facilitadora, sem inc�ndios, acredito que em cerca de 30 anos � poss�vel restaurar, como j� observei em outros momentos e �reas que acompanhamos dentro do Pantanal. Mas pulando para outro conjunto de flora, as matas ciliares e floresta inund�vel, isso muda. Essas florestas t�m baixa resili�ncia quanto a inc�ndios. Para essa vegeta��o ser�o necess�rias avalia��es mais detalhadas. Durante esses quase 50 anos em que o Pantanal n�o teve fogo dessa magnitude, nas �reas que acompanhamos, s� agora, observamos o aparecimento de orqu�deas, que antigamente existiam em abund�ncia. Mas h� evid�ncias que estavam se regenerando, desde 1974, com o ciclo plurianual mais �mido. A regenera��o, baseada nos resultados adquiridos, acreditamos que levar� em torno de 50 anos. Caso a intensidade do inc�ndio seja mais grave, poder� levar mais tempo.
Como se d� a recupera��o do local?
A recupera��o natural age como um processo integrado no �mbito do ecossistema. Todas as intera��es envolvendo plantas e animais s�o preciosas para a recupera��o. Cada esp�cie de planta tem um lugar preferencial no gradiente de inunda��o. At� a natureza acomodar tudo novamente, leva tempo, a recupera��o ocorre aos poucos, lentamente e depende das condi��es de sazonalidade da inunda��o.
O que mais preocupa no Pantanal?
S�o as florestas secas. Por serem mais relictuais (esp�cie que atualmente � encontrada em uma �rea restrita, mas que no passado era distribu�da em abund�ncia) tiveram sua expans�o na Am�rica do Sul nos per�odos geol�gicos mais secos e entraram tamb�m no Pantanal. Suportam seca, mas n�o t�m tanta habilidade para resistir a inc�ndios. Em programas de estudos ecol�gicos de longa dura��o, mantemos remedi��es. A inclus�o de novos regenerantes sempre foi animadora. Indiv�duos jovens de esp�cies tardias demonstravam a recupera��o dos efeitos das atividades extrativistas de inc�ndios antigos. Em sobrevoo, constatamos a gravidade provocada pelo inc�ndio. Esse tipo de floresta tem rela��o com uma fauna muito espec�fica, de mam�feros e aves, inclusive.
E quanto �s plantas?
H� araputangas, angicos, paineiras, cedros... Com o inc�ndio, n�o sei em que est�gio da sucess�o natural voltar�o. Ainda n�o avaliamos o que aconteceu realmente para podermos tra�ar o tempo da recupera��o. Essa forma��o vegetal � parte da diversidade do Pantanal e ocupa os macrohabitats sem inunda��o, mas com solo apresentando satura��o pelas chuvas. Hoje � de grande significado ecol�gico, j� teve seu valor econ�mico, mas foi explorada at� o esgotamento no passado. O Pantanal, al�m de ser de �rea �mida, apresenta caracter�stica complexa, onde o conjunto de manchas, de habitats e diferentes tipos de vegeta��o d� condi��es para uma fauna singular. Temos um trabalho intenso pela frente para estimar todas as perdas com os inc�ndios.
Quais a��es devem ser tomadas tamb�m pelos fazendeiros?
A pecu�ria do Pantanal teve sucesso por causa dos campos nativos, os inund�veis t�m alta qualidade nutricional e boa palatabilidade, tornando-se poss�vel a cria��o de gado. Esta vegeta��o, por�m, n�o � adaptada a fogo intenso. Este tipo de macrohabitat me preocupa, pois carece de normatiza��o do seu uso, onde a forma tradicional de manejo deve ser o ponto de partida para promover o uso sustent�vel. H� necessidade de restaura��o destes campos com processo de prolifera��o de lenhosas. Com anos mais secos se desenhando em cen�rios futuros e com a presen�a de fogo, sem d�vida, haver� mais dificuldade na restaura��o. E isso aumenta a responsabilidade dos propriet�rios rurais em atuar com manejo adequado para manter esta forma��o vegetal �mpar. Uma a��o conjunta entre ci�ncia, propriet�rios, gestores ambientais estaduais e federais e ONGs poder� criar a compreens�o de um manejo adequado das �reas sob perspectivas da restaura��o e manuten��o da biodiversidade. Com abordagem fundamentada no uso tradicional, aliando a t�cnicas modernas de manejo sustent�vel, ser� fundamental para sensibilizar os novos pantaneiros.
Em Pocon� (MT), o Pantanal virou cemit�rio de animais a c�u aberto, com diversos deles carbonizados e feridos. Como os inc�ndios afetam a fauna da regi�o? Ainda n�o se pode contabilizar quantas esp�cies foram afetadas, mas h� risco de diminui��o ou mesmo extin��o de animais?
O Pantanal n�o tem fauna espec�fica e end�mica. Re�ne animais de v�rios biomas, igual � situa��o das plantas. H� popula��es de animais de outras �reas do Brasil e, inclusive, os considerados amea�ados. At� agora as popula��es desses animais estavam se recuperando. Programas de conserva��o de organiza��es n�o governamentais realizam projeto de recupera��o, por exemplo, envolvendo a arara-azul, que no Pantanal encontra oferta de alimentos prefer�ncias e locais para sua nidifica��o. Outro exemplo de recupera��o populacional e que � atrativo do turismo no Pantanal � a on�a-pintada. As popula��es de animais que conseguiram sair da categoria de amea�adas, hoje podem estar comprometidas novamente por causa dos inc�ndios. O tuiui�, um dos animais s�mbolos do bioma, tamb�m foi uma esp�cie de ave afetada pelos inc�ndios, com seus ninhos dizimados.
O que se pode fazer em rela��o a isso?
Os especialistas da fauna silvestre acreditam que os animais mais velhos com mais experi�ncia em rela��o a eventos do fogo conseguiram sobreviver. Evid�ncias indicam que os inc�ndios t�m afetado indiv�duos mais jovens, com tudo isso, uma gera��o de animais est� comprometida. A grande preocupa��o � que, sem �gua e recursos para se alimentarem, a situa��o � ainda mais grave para esp�cies que o Pantanal contribui para evitar a sua extin��o. H� iniciativas de pesquisadores de diversas institui��es de pesquisa regional, incluindo ONGs, empenhadas na avalia��o do que foi perdido. Essa informa��o � fundamental para a tomada de decis�o.
E em rela��o a preju�zos para ambientes aqu�ticos?
Todas as cinzas produzidas pelos inc�ndios s�o nutrientes, mas quando carregadas para os rios e lagoas, em grandes quantidades, causam o fen�meno conhecido na regi�o por 'dequada', porque as cinzas alteram a qualidade da �gua, desequilibram o ecossistema aqu�tico e causam mortalidade, principalmente dos peixes, anf�bios e invertebrados aqu�ticos.
A destrui��o do Pantanal pode trazer desequil�brios a outros biomas do Brasil?
N�o s� aos biomas brasileiros, mas para todo o planeta. Com esse inc�ndio, estamos produzindo gases que contribuem com o efeito estufa. Liberamos, com os inc�ndios, o estoque de carbono tanto em forma de mat�ria org�nica acumulada (turfas tropicais) quanto da vegeta��o. A sa�de da popula��o que vive nesta regi�o est� sendo comprometida, agravando o quadro de quem tem doen�as asm�ticas e al�rgicas. O que se torna mais grave em um momento em que tamb�m lidamos com a covid-19.
As a��es adotadas pelas autoridades foram tardias no combate ao fogo?
As pr�prias autoridades hoje reconhecem que o Brasil agiu tardiamente para entender a gravidade da situa��o no Pantanal. Mesmo com a intelig�ncia t�cnica cient�fica brasileira alertando para o aumento dos focos de calor,de desmatamento e previs�o das condi��es clim�ticas, o governo brasileiro ignorou esses alertas. Devemos reconhecer o papel do Instituto Chico Mendes de Conserva��o da Biodiversidade (o ICMBio, �rg�o do Minist�rio do Meio Ambiente respons�vel pelas unidades de conserva��o), da sociedade civil organizada e de ONGs atuando ao lado dos bombeiros que trabalham juntos incansavelmente no combate ao fogo e no resgate de animais feridos. Muitas ONGs buscaram recursos. Com eles, adquiriram equipamentos, rem�dios e alimentos para os animais, entre outras a��es. D� para acreditar que at� um leil�o de quadros fizeram para buscar recursos para melhorar o atendimento emergencial para a fauna. Essas iniciativas precisaram surgir para ocupar o espa�o deixado pela aus�ncia de a��es de compet�ncia dos governos (federal, estadual e municipal), caso contr�rio, o desastre seria mais grave.
O Brasil estava preparado para lidar com essa situa��o?
Muitas ONGs atuam na linha de frente, no combate ao fogo e resgate dos animais, e outras refor�am, em �mbito nacional, a necessidade de uma infraestrutura, de planejamento estrat�gico para o Brasil poder atender emerg�ncias no combate ao inc�ndio no Pantanal e outros desastres. O Brasil n�o est� preparado ainda para lidar com a situa��o. Foi clara a demonstra��o dos efeitos negativos que os desmanches das institui��es da �rea ambiental e da intelig�ncia t�cnica nacional de alertas provocaram ao Pantanal.
Investiga��o da Pol�cia Federal v� ind�cios de queimadas deliberadas para cria��o de �rea de pasto onde antes era mata nativa. As queimadas teriam come�ado em fazendas da regi�o, em espa�os in�spitos, dentro das fazendas, onde n�o h� nada perto. Quais s�o as poss�veis origens do fogo? Quem s�o os respons�veis pelo Pantanal em chamas?
A avalia��o t�cnica da per�cia mostrou que a origem do fogo � antr�pica, ligada ao homem. Neste sentido, avalio que as autoridades competentes devem agir no rigor da lei. Os respons�veis precisam ser punidos.
Quais a��es devem ser tomadas para combater e evitar queimadas t�o devastadoras no Pantanal?
O Brasil deve usar toda sua excel�ncia de infraestrutura de monitoramento para realizar planejamento estrat�gico para controlar trag�dias de fogo ou inunda��es. A fiscaliza��o e puni��o tamb�m devem ser mais efetivas contra os inc�ndios no Pantanal. Al�m disso, a popula��o local e o homem pantaneiro precisam ser treinados sobre o manejo correto do fogo. O Brasil deve preparar a sociedade, em especial aquelas pessoas que t�m rela��o com o fogo, para fazer uso correto. � papel do Estado investir em educa��o, conscientiza��o e respeito ao Pantanal. Em meio ao turista engajado, sabe-se tamb�m que h� aquelas pessoas que n�o respeitam, podendo atirar em animais, e que sujam e colocam fogo na natureza.
* Professora C�tia Nunes da Cunha, p�s-doutorado em ecologia da vegeta��o de �reas �midas pelo Instituto Max-Planck da Alemanha, pesquisadora associada do Instituto Nacional de Ci�ncia e Tecnologia em �reas �midas (INCT-INAU). Pesquisadora Associada do Programa de P�s-Gradua��o em Ecologia e Conserva��o da Biodiversidade da Universidade Federal de Mato Grosso (PPG-ECB/IB-UFMT). Pesquisadora Associada do Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP). Tamb�m coordenou o N�cleo de Estudos Ecol�gicos do Pantanal (NEPA) da UFMT, por 25 anos.
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