
Uma mala e outras pequenas bolsas ficaram sobre a cama. Para a pol�cia, o quarto desarrumado era um ind�cio de que Rosana* estava de sa�da. Mas n�o deu tempo. Seu marido invadiu a casa antes, quebrando o cadeado da porta.
Esse feminic�dio ocorreu em agosto deste ano, durante a pandemia de COVID-19, em uma cidade do interior de Mato Grosso. O principal suspeito do crime, segundo a investiga��o, � o marido da v�tima, que fugiu. Ironicamente, o assassinato aconteceu no mesmo m�s em que a pol�cia, coletivos e conselhos de direitos humanos faziam campanha para diminuir a viol�ncia dom�stica no contexto do isolamento social, no chamado Agosto Lil�s.
No primeiro semestre deste ano, os feminic�dios aumentaram 2% no pa�s em rela��o ao mesmo per�odo do ano passado, segundo o 14º Anu�rio Brasileiro de Seguran�a P�blica, divulgado neste domingo. O relat�rio � produzido pelo F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica a partir de dados fornecidos por secretarias estaduais.
De janeiro a julho, 648 mulheres foram assassinadas no Brasil em epis�dios classificados como feminic�dio — quando o crime � motivado por viol�ncia dom�stica ou discrimina��o por g�nero.
Para especialistas e profissionais que atuam no combate a esse tipo de crime, o isolamento social fez aumentar os delitos cometidos dentro de casa, como agress�es, abusos e assassinatos. Isso teria ocorrido por causa de uma maior proximidade entre v�timas e agressores, al�m de uma maior dificuldade de realizar den�ncias.
Mas outros tipos de crimes tamb�m foram influenciados pela pandemia, segundo o relat�rio. Alguns deles, como roubos, diminu�ram consideravelmente. J� outros, como homic�dios, voltaram a crescer depois de um per�odo em queda.
A BBC News Brasil listou alguns desses delitos. Confira abaixo.
1 - Feminic�dio em alta, registros de viol�ncia dom�stica em queda

Os dados de viol�ncia dom�stica parecem contradit�rios. Enquanto os feminic�dios aumentaram 2% e as chamadas de emerg�ncia subiram 3,8%, os registros de agress�es feitos em delegacias diminu�ram 10% no primeiro semestre deste ano.
"� preciso tomar muito cuidado ao analisar esses dados, porque eles indicam claramente que houve um aumento da viol�ncia dom�stica durante a pandemia, mas tamb�m um crescimento da subnotifica��o", explica Silvia Chakian, promotora de Justi�a na �rea de viol�ncia dom�stica contra mulher do Minist�rio P�blico de S�o Paulo.
Segundo ela, a alta de assassinatos de mulheres e liga��es de emerg�ncia � pol�cia indicam uma intensifica��o das agress�es. "Normalmente, a v�tima ou alguma testemunha liga para a pol�cia quando a situa��o fica violenta. No caso do feminic�dio, � mais dif�cil haver subnotifica��o, embora em alguns lugares a pol�cia ainda tenha dificuldade para classificar esse crime", diz.
Por outro lado, a queda dos boletins de ocorr�ncia apontam uma dificuldade maior das v�timas em conseguir formalizar uma den�ncia � pol�cia, segundo Samira Bueno, diretora-executiva do F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica. Antes da pandemia, as ocorr�ncias s� eram produzidas pessoalmente, na delegacia. Em alguns Estados, isso continua.
"Com as medidas de isolamento social, as mulheres em situa��o de viol�ncia ficaram confinadas com os agressores, sem possibilidade de sair de casa, e de circular para ir at� uma delegacia. Al�m disso, a pandemia afetou tamb�m a pol�cia, com in�meros casos de agentes afastados por doen�a, gerando uma altera��o no atendimento das delegacias", diz.
Para Silvia Chakian, medidas como boletins de ocorr�ncia produzidos pela internet facilitam as den�ncias. "Na pandemia, o Estado de S�o Paulo abriu a possibilidade de BO online, mas essa n�o � uma realidade no pa�s inteiro. As pessoas n�o conseguem denunciar. � preciso fortalecer esses canais para facilitar que mulheres em situa��o de viol�ncia possam pedir ajuda", diz.
2 - Homic�dios voltaram a crescer

Nos �ltimos dois anos, o n�mero de crimes contra a vida no Brasil estava em queda. As mortes violentas intencionais (MVI), por exemplo, tinham ca�do 17,7% no ano passado, em compara��o com 2018 — no total, 47.773 pessoas foram assassinadas no pa�s em 2019.
Mas agora o cen�rio se inverteu. Esse tipo de crime cresceu 7,1% nos primeiros seis meses de 2020, quando 25.712 pessoas foram v�timas de mortes violentas intencionais — uma morte a cada 10 minutos.
Em parte, o crescimento foi puxado pelo Cear�, que registrou 96,6% de alta em rela��o ao ano anterior. O Estado viveu, no in�cio do ano, uma grave crise de seguran�a p�blica, quando policiais militares ficaram em greve por 13 dias.
Para Luiz F�bio Paiva, professor de Sociologia e pesquisador do Laborat�rio de Estudos da Viol�ncia da Universidade Federal do Cear�, a pandemia tamb�m teve uma influ�ncia na produ��o de homic�dios.
"Em rela��o ao Cear�, a pandemia chegou num momento em que havia uma reorganiza��o do crime e um reajuste da rela��o de for�as entre as fac��es criminosas. A pandemia mudou a din�mica econ�mica dos mercados ilegais. Os grupos armados tiveram que fazer ajustes em sua atua��o, inclusive para sobreviver durante a pandemia, o que pode ter gerado tens�es e incremento de conflitos", explica.
Samira Bueno concorda que a alta de homic�dios pode ter a ver com mudan�as provocadas pela covid-19. "A pandemia mexeu com os neg�cios il�citos, como o tr�fico de drogas, que precisou se adaptar. � poss�vel que o tr�fico tenha tido mais dificuldade para se reabastecer, ou novas disputas tenham ocorrido. Algo pode estar acontecendo nesses mercados, e � prov�vel que s� saibamos o que ocorreu no futuro", explica.
Por outro lado, as mortes em decorr�ncia de opera��es policiais tamb�m cresceram — 6% nos primeiros seis meses do ano, com 3.181 v�timas. Os policiais tamb�m morreram mais neste per�odo — foram 110 novas mortes, alta de 19,6%.
3 - Menos assaltos a casas e com�rcio

J� os crimes contra o patrim�nio tiveram uma queda consider�vel no primeiro semestre deste ano.
Roubos a pedestres, por exemplo, diminu�ram 34%, segundo o Anu�rio da Seguran�a P�blica. Assaltos a carros ca�ram 22,5%, e roubos de cargas, 25,7%.
J� os assaltos a resid�ncias registraram uma queda de 16%, enquanto houve 18,8% menos roubos ao com�rcio.
"A diminui��o dos crimes contra o patrim�nio � uma clara influ�ncia da pandemia. Como o com�rcio estava fechado e havia menos pessoas circulando nas ruas durante a fase mais restrita da quarentena, os criminoso tiveram menos oportunidades para agir. O isolamento dificultou a a��o de pessoas que atuam nessa �rea", explica a pesquisadora Samira Bueno.
4 - Pol�cia rodovi�ria apreendeu mais drogas
Outra estat�stica possivelmente afetada pela pandemia de covid-19 foi a apreens�o de drogas ilegais.
A Pol�cia Federal (PF), que fiscaliza aeroportos, fez menos apreens�es de drogas, provavelmente por causa da diminui��o do n�mero de voos. Por�m, o volume de maconha apreendido quase dobrou em rela��o ao mesmo per�odo do ano passado, chegando a 217 toneladas. Em rela��o � coca�na, houve uma queda de 2,3%.
J� a Pol�cia Rodovi�ria Federal (PRF), que atua em estradas e rodovias, aumentou bastante suas apreens�es. No primeiro semestre, o volume de coca�na apreendida pela PRF cresceu 56,7%, atingindo 14 toneladas. J� a quantidade maconha presa pelo �rg�o aumentou 128%, chegando a 316 toneladas.

Para Samira Bueno, um fluxo menor na quantidade de carros e caminh�es nas estradas pode ter influenciado o incremento das apreens�es.
"Com isolamento social e rodovias mais vazias, a PRF conseguiu ser mais efetiva na fiscaliza��o. Uma hip�tese que trabalhamos tamb�m � que, com menos voos, houve uma diminui��o do tr�fico por esse meio, e um aumento do transporte de drogas por vias terrestres", afirma.
Para Marcelo Campos, professor da UFGD e do Instituto de Estudos Comparados em Administra��o de Conflitos, da Universidade Federal Fluminense, o aumento das apreens�es n�o significa que o uso de drogas ilegais tenha ca�do.
"Esse aumento de apreens�es ocorre h� certo tempo, mas n�o h� uma correla��o de que apreender mais diminua o uso, como mostrou a guerra �s drogas nos Estados Unidos. Um horizonte de mudan�a na pol�tica de drogas e no proibicionismo, como vem ocorrendo em v�rios locais dos Estados Unidos, � o que nos faz ter esperan�a (de diminui��o da viol�ncia), e n�o o aumento de apreens�es", afirma.
*Nome fict�cio para preservar a identidade da v�tima e de sua fam�lia.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!