
"Leg�tima defesa da honra", "forte emo��o", "era uma mulher lasciva". Essas linhas de argumenta��o j� foram usadas para defender ou absolver r�us homens acusados de crimes graves contra mulheres — como homic�dio e tentativa de homic�dio —, em hist�rias que voltam a chamar a aten��o do p�blico diante da como��o provocada pelo caso Mariana Ferrer.
Na segunda-feira (3/11), o site The Intercept publicou o v�deo de uma audi�ncia virtual do caso ocorrido em Santa Catarina, na qual o advogado Claudio Gast�o de Rosa Filho, respons�vel pela defesa do r�u Andr� Camargo de Aranha (que foi inocentado da acusa��o de estupro), mostrou fotos de Mariana Ferrer.
"Pe�o a Deus que meu filho n�o encontre uma mulher como voc�. Teu showzinho voc� vai l� dar no teu Instagram, para ganhar mais seguidores. Voc� vive disso", afirmou o advogado na ocasi�o.
Segundo juristas e advogados consultados pela BBC News Brasil, n�o � incomum que, em casos do tipo, a defesa dos r�us use cr�ticas � "reputa��o" da autora da acusa��o e a defesa da honra masculina para justificar a conduta de r�us homens.
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H� muito tempo os estere�tipos de g�nero s�o usados para atribuir � pr�pria autora das den�ncias uma parcela de culpa em crimes de viol�ncia contra a mulher, diz Estela Aranha, coordenadora adjunta do Instituto Brasileiro de Ci�ncias Criminais no Rio de Janeiro (Ibccrim-Rio).
A advogada afirma que teses de defesa dos agressores e decis�es judiciais est�o recheadas de elementos que colocam a postura da mulher — do comportamento emocional e sexual ao tipo de roupa que ela veste ou o hor�rio em que estava fora de casa — como um agente desencadeador do crime.
"Como se o homem n�o fosse respons�vel, como se a mulher fosse 'a tentadora'. Isso vem da narrativa do pecado original, � uma narrativa hist�rica de constru��o de estere�tipos de g�nero."
Nesse sentido, a professora de Direito da Unifesp Ma�ra Zapater lembra que, at� 2005, o C�digo Penal brasileiro trazia a figura da "mulher honesta": em crimes sexuais, s� seria considerada v�tima aquela juridicamente reconhecida como honesta.

"E voc� pode imaginar o campo f�rtil que os ju�zes machistas e mis�ginos tinham para definir o que era uma mulher honesta, porque a lei n�o definia, cabia ao juiz", ela diz.
O fato de os demais participantes da audi�ncia de Ferrer terem ouvido as palavras da defesa em sil�ncio, sem interceder em favor da jovem, opina Flaviane Barros, professora da PUC Minas e da UFOP, evidencia ainda outra caracter�stica recorrente no ordenamento jur�dico brasileiro: a a��o dos preconceitos sobre o julgamento dos agentes jur�dicos.
"As pesquisas sobre enviesamento cognitivo s�o muito avan�adas. Os elementos de preconceito, daquele que n�o respeita e n�o d� valor � voz feminina de uma v�tima de estupro est�o ali, na mente daquele julgador", afirma a advogada.
Jana�na Matida, professora de Direito Probat�rio da Universidad Alberto Hurtado (Chile), pontua que as altas inst�ncias jur�dicas do pa�s t�m o entendimento normativo de que a palavra da mulher que denuncia viol�ncia tem grande peso sobre a decis�o judicial.
"Isso nos levaria a achar que mulheres est�o protegidas no caso de crimes sexuais, mas existe um paradoxo: quando elas v�o buscar ajuda, s�o recebidas (pela pol�cia e pelo sistema judici�rio) n�o como uma v�tima, mas mas como uma mentirosa", diz.
Isso ajuda a explicar, argumenta Matida, os altos �ndices de feminic�dio no pa�s, uma vez que a conjuntura desencoraja as mulheres a denunciar quando sofrem as primeiras agress�es ou amea�as.
O estere�tipo de g�nero n�o apenas influencia a postura dos agentes do direito em casos de crime contra a mulher, mas alimenta uma tese n�o raro usada por advogados de defesa que nem sequer se encontra na lei penal — a leg�tima defesa da honra.
'Leg�tima defesa da honra' ao tentar matar a ex a facadas
Um desses casos chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro deste ano.
Em maio de 2016, uma mulher saiu de um culto religioso em Nova Era (MG) e deparou com um homem com quem mantivera um relacionamento at� a semana anterior.
Segundo a senten�a do caso, ele a empurrou contra a parede e a golpeou seis vezes com uma faca — tr�s facadas foram na cabe�a, duas nas costas e uma no t�rax.
O homem suspeitava que a v�tima (que sobreviveu ao ataque) o tra�a com outra pessoa durante o relacionamento.
Ao depor, a v�tima afirmou que "h� dois anos viviam um relacionamento tumultuado, em virtude dos ci�mes exagerados do autuado; que a declarante era proibida at� de conversar com o pr�prio irm�o, (...) que o autuado chegou a dizer a outras pessoas que ia jogar �lcool e colocar fogo na declarante", tamb�m de acordo com a senten�a.
Preso em flagrante, o agressor foi a j�ri popular em junho de 2017.
Mas os jurados o absolveram, aceitando a tese de que o crime havia ocorrido por "leg�tima defesa da honra" do acusado — por conta da suspeita (n�o confirmada) de que era tra�do. Ele foi libertado.
O Minist�rio P�blico recorreu. "Ainda que se aceite, privilegiando a vers�o do r�u, que a v�tima ofendeu-lhe a honra (...), admitir a rea��o violenta do agente, que lhe desfere in�meros golpes, como uma resposta v�lida (...) seria compactuar com a involu��o dos costumes, em descr�dito � pretens�o (...) de uma sociedade amparada pelo respeito aos valores e direitos fundamentais do ser humano", afirma o recurso do MP.

O Tribunal de Justi�a mineiro chegou a decidir pela realiza��o de um novo julgamento popular, mas, quando o caso foi parar no STF, a 1%u0363 turma da Corte decidiu, por maioria de votos, em 29 de setembro, que a decis�o do tribunal do j�ri era soberana ao absolver o homem, segundo a Constitui��o Federal.
Voto vencido na decis�o, o ministro Alexandre de Moraes afirmou durante a sess�o que "at� d�cadas atr�s, no Brasil, a leg�tima defesa da honra era o argumento que mais absolvia os homens violentos que mataram suas namoradas e esposas, o que fez o pa�s campe�o de feminic�dio".
O argumento da defesa da honra, explica Zapater, n�o est� previsto no C�digo Penal brasileiro e, por isso, est� geralmente circunscrito aos julgamentos em tribunais de j�ri.
O j�ri � um direito do acusado, diz a professora, de ser julgado por seus pares.
Ao contr�rio do juiz, que precisa fundamentar na lei sua senten�a, seja para absolver ou condenar, os jurados n�o precisam justificar na lei sua decis�o. Isso implica que eles podem absolver o r�u mesmo que entendam que ele seja culpado.
Como consequ�ncia, os tribunais de j�ri acabam, diz Zapater, revelando "determinados conceitos e preconceitos" da sociedade e que podem ser mobilizados pela defesa.
"Se a gente tem uma sociedade que entende que homens podem defender a sua honra se se sentirem tra�dos por mulheres, isso eventualmente vai ser mobilizado no tribunal do j�ri", ela ressalta.
E, ainda que n�o se empregue a express�o da "defesa da honra", que tem ca�do em desuso, acrescenta a professora, � frequente nas defesas a presen�a da ideia de que o homem se viu humilhado.
O argumento � usado inclusive para evocar um atenuante da pena previsto na lei, do crime cometido sob influ�ncia de "violenta emo��o", provocado por ato injusto da v�tima.
Essa foi a base para absolvi��o de um homem de 39 anos acusado de matar a ex-mulher a facadas em janeiro de 2015 em Piracicaba (SP).
Depois de confessar o crime � pol�cia, ele foi julgado por um j�ri popular, que teve "clem�ncia" e entendeu que o r�u perdeu a cabe�a e agiu sob "forte emo��o" contra a ex-mulher, conforme disse seu advogado na �poca ao site G1.
Segundo ele, o casal vinha tendo "v�rios desentendimentos" e, naquele momento, o homem "n�o conseguiu se controlar". A mulher, de 29 anos, foi morta em frente ao seu local de trabalho com golpes no t�rax, na barriga, nas costas e pesco�o.

Caso �ngela Diniz: 'mulher fatal'
Um caso considerado simb�lico no estudo da viol�ncia contra a mulher no Brasil e no uso do argumento da defesa da honra � a morte de �ngela Diniz, em 1976, no litoral fluminense.
Ela foi assassinada com quatro tiros na cabe�a por seu companheiro, Raul Fernando Doca Street, depois de uma discuss�o em que ela teria tentado terminar o relacionamento.
Na �poca, Doca Street afirmou que agiu para preservar sua honra.
No julgamento, seu advogado, Evandro Lins e Silva, argumentou que os jurados "rapidamente" perceberiam que o crime fora "provocado pela v�tima", descrita por ele como uma mulher fatal e como uma "V�nus lasciva", que "encanta, seduz e domina".
Doca Street, por sua vez, foi retratado como um "homem cegamente apaixonado".
Condenado a dois anos de pris�o, ele cumpriu apenas parte da pena por ser r�u prim�rio.
O caso dominou as aten��es do p�blico na �poca e, em rea��o ao veredito, grupos feministas come�aram a protestar sob o slogan de "quem ama n�o mata", pressionando por justi�a no caso.
Um segundo julgamento foi convocado, e Doca Street foi condenado a 15 anos de pris�o.
A professora Jana�na Matida afirma que o caso Diniz foi um "exemplo cl�ssico das generaliza��es e estere�tipos" que recaem sobre as mulheres durante o processo jur�dico.
"Precisamos pensar em mecanismos para neutralizar esse machismo, pelo perigo de que esses racioc�nios moldem como se procuram (provas), ou seja, como se investiga, ou como se determina (o desfecho do caso na Justi�a)."
Isso passa pelo estabelecimento de protocolos, diz a advogada Estela Aranha, que coloquem, por exemplo, prazos para elabora��o de laudos e para a coleta de provas, para que eventuais ind�cios do crime que possam levar a condena��es sejam efetivamente preservados.
Para a economista Hildete Pereira de Melo, que fez parte do grupo de mulheres que se mobilizou em 1980 para exigir um novo julgamento no caso �ngela Diniz, � chocante ver a hist�ria se repetir tantas d�cadas depois.
Ela e outras ativistas feministas est�o organizando protestos no pa�s para este domingo (8/11) em solidariedade a Mariana Ferrer.
Apesar da dificuldade que se coloca diante de uma eventual mudan�a cultural, de uma transforma��o da forma como a sociedade brasileira enxerga a mulher, Hildete diz que "n�o desanima" e relembra as conquistas das �ltimas d�cadas — o sufr�gio feminino, a revoga��o do estatuto da mulher casada (que dava ao marido o direito de permitir ou n�o que a esposa trabalhasse), o direito ao div�rcio.
"Nossa grande vit�ria � que a quest�o est� posta, isso que n�o existia nos anos 70."
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