
Renata (nome fict�cio) tinha acabado de juntar dinheiro suficiente para realizar um aborto clandestino quando a pandemia de coronav�rus imp�s as medidas de isolamento em grande parte do Brasil.
A jovem de 27 anos foi estuprada no ano passado por um ex-namorado que continuava sendo pr�ximo da fam�lia. M�e de duas crian�as, ela descobriu que estava gr�vida algumas semanas depois.
"N�o sabia o que fazer", lembra Renata.
"A �nica coisa de que eu tinha certeza era que n�o queria aquela crian�a."
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No Brasil, o aborto � permitido em casos de estupro, quando a vida da m�e est� em risco ou quando o feto apresenta anencefalia (condi��o rara que impede o desenvolvimento de parte do c�rebro e do cr�nio).
Embora Renata tivesse direito ao aborto por lei, como muitas mulheres no Brasil, ela n�o conhecia totalmente seus direitos.
Ela receava ter que denunciar o estupro � pol�cia para ter acesso a um aborto legal — o que acaba afastando muitas mulheres do procedimento. E ela temia retalia��es do estuprador.
"Eu estava realmente preocupada com a seguran�a dos meus filhos", diz, ao explicar a decis�o de economizar para fazer um aborto clandestino.

Abortos clandestinos s�o arriscados: quando realizados sem uma boa supervis�o m�dica, podem levar a complica��es e colocar em risco a vida das mulheres. Se descobertas, elas tamb�m podem pegar at� quatro anos de pris�o.
Mas Renata n�o sabia mais a quem recorrer e come�ou a economizar os R$ 3,7 mil que precisava para o procedimento clandestino.
Um m�dico pegaria um voo no Rio de Janeiro, a mais de 900 quil�metros da casa de Renata em Minas Gerais, para realizar o procedimento. Mas, em seguida, a pandemia de covid-19 paralisou o Brasil, fechando aeroportos, rodovi�rias e centros de sa�de.
No fim de abril, Renata estava gr�vida de 23 semanas.
"Quando tudo fechou, ficou muito dif�cil viajar, tudo se tornou muito complicado", relembra.
Diante dos atrasos, Renata recorreu � internet mais uma vez em busca de op��es. E encontrou a rede Milhas pela Vida das Mulheres, que ajuda no acesso a abortos seguros.
O grupo a ajudou a entender seus direitos e indicou uma das poucas cl�nicas de aborto legal ainda em funcionamento durante a pandemia. Para Renata, foi uma reviravolta.
"Eu ia arriscar minha vida e poderia n�o estar viva hoje", diz ela sobre o aborto clandestino que planejava fazer.
Acesso dificultado
Muitas mulheres brasileiras n�o tiveram a mesma sorte durante a pandemia. No in�cio, a crise restringiu drasticamente o acesso ao aborto legal, j� que muitas cl�nicas de aborto fecharam.
Dados coletados por ativistas sugerem que, das 76 cl�nicas cadastradas que oferecem aborto legal em todo o Brasil, apenas 42 permaneceram abertas durante a pandemia.
Uma delas � a Nuavidas, em Uberl�ndia, que atende v�timas de viol�ncia sexual.
"A pandemia se tornou uma desculpa para retirar direitos das mulheres", diz a obstetra Helena Paro, coordenadora da Nuavidas.
Sandra Leite � coordenadora do Centro de Atendimento a Mulheres V�timas de Viol�ncia do Hospital da Mulher do Recife, que tamb�m permaneceu aberto durante a pandemia.
Segundo ela, a crise sanit�ria dificultou o acesso de mulheres vulner�veis ao atendimento m�dico.
Durante a quarentena, "as mulheres tiveram mais dificuldade de sair de casa" para procurar ajuda, acrescenta Leite.
"E, em alguns casos, os agressores estavam dentro de casa com elas, ent�o elas n�o podiam buscar atendimento m�dico."
Ela afirma que o centro onde trabalha observou uma diminui��o no n�mero de pacientes, embora tenha sido um dos poucos a permanecer abertos.
Mas, de acordo com ela, agora que as restri��es devido ao coronav�rus diminu�ram, a demanda por abortos legais aumentou.
"Estamos vendo que as mulheres sofreram mais viol�ncia enquanto estavam isoladas em casa com seus agressores", diz Leite.
'Limite arbitr�rio'
Na cl�nica em que Paro trabalha, o n�mero de mulheres que buscam o aborto legal dobrou recentemente. E muitas mulheres est�o chegando com gesta��es mais avan�adas, provavelmente porque n�o puderam buscar ou encontrar ajuda durante a pandemia.
"�s vezes, essas mulheres t�m que viajar longas dist�ncias para ter acesso a esse direito", explica Paro.
"E � por isso, normalmente, que elas est�o chegando com gesta��es mais avan�adas".
Isso pode representar mais uma barreira para as mulheres. Abortos ap�s 22 semanas de gesta��o s�o controversos, e o Minist�rio da Sa�de desaconselha, citando riscos elevados para a sa�de da m�e.
Paro diz que embora o limite de 22 semanas "n�o seja baseado na ci�ncia", tampouco consagrado na lei brasileira, a maioria das cl�nicas se recusa a realizar o procedimento a partir desse ponto.
A cl�nica em que Paro trabalha � uma das poucas em todo o Brasil que realiza abortos depois das 22 semanas de gesta��o.
Ela classifica as 22 semanas como um "limite arbitr�rio" e argumenta que muitos m�dicos usam como "desculpa para se recusar a fazer um aborto que eles j� s�o contra".
"Portanto, se uma mulher passar (das 22 semanas), ela ter� grande dificuldade de encontrar uma cl�nica de aborto no Brasil hoje" para realizar a interrup��o da gravidez, conclui Paro.
Dificuldade adicional
Mesmo antes de a pandemia de covid-19 atingir o Brasil, o direito ao aborto estava sob ataque.
Com poucas cl�nicas em um pa�s t�o grande, a maioria das mulheres j� lutava para ter acesso ao aborto legal, diz Gabriela Rondon, pesquisadora e advogada da Anis, organiza��o que promove os direitos das mulheres.

No norte do pa�s, com �reas mais pobres, h� apenas duas cl�nicas para uma regi�o de mais de 17 milh�es de pessoas.
"Muitas mulheres n�o t�m uma cl�nica perto delas, especialmente as mulheres nas �reas rurais", diz Rondon.
"E tamb�m h� falta de informa��o — muitas vezes, as mulheres n�o s�o informadas de que t�m esse direito".
Ela acrescenta que, na pr�tica, muitas cl�nicas afirmam oferecer o servi�o, mas "colocam uma s�rie de barreiras, que atrasam ou impossibilitam o acesso ao aborto".
Quando as mulheres chegam a uma cl�nica que oferece abortos legais, geralmente s�o tratadas com hostilidade ou questionadas de forma agressiva. Algumas s�o rejeitadas %u200B%u200Bpor m�dicos que se recusam a fazer abortos por motivos de "consci�ncia".
Novas regras
As mulheres que procuram o aborto legal agora tamb�m enfrentam um novo obst�culo.
Em agosto, o governo lan�ou novas diretrizes instruindo cl�nicas a denunciar casos de estupro � pol�cia, mesmo quando as v�timas n�o querem registrar queixa ou identificar o agressor.
Sandra Leite acredita que a orienta��o vai desencorajar mulheres que foram estupradas de procurar abortos a que t�m direito por lei.
"Todo esse trabalho que foi feito ao longo de anos, hoje estamos vendo desmoronar."
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