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Estado de Minas SEGREDO DE FAM�LIA

A brasileira que descobriu o passado nazista do pr�prio av�

Julie Lindahl sentia desde crian�a que a fam�lia guardava um segredo obscuro, mas n�o fazia ideia do que era


23/11/2020 16:39 - atualizado 23/11/2020 19:29


Julie, aos dois anos, com o avô em São Paulo %u2014 ele morava em uma fazenda no Mato Grosso do Sul e tinha ido visitá-la
Julie, aos dois anos, com o av� em S�o Paulo %u2014 ele morava em uma fazenda no Mato Grosso do Sul e tinha ido visit�-la (foto: Arquivo pessoal)

Desde crian�a, Julie Lindahl sentia que a fam�lia guardava um segredo obscuro, mas n�o fazia ideia do que era.

As �ltimas palavras do seu pai, no entanto, confirmaram que ela precisava de respostas.

E foi assim que ela deu in�cio a uma busca de sete anos que revelou o passado nazista de seu av�.

Em entrevista � jornalista Andrea Kennedy do programa de r�dio Outlook, da BBC, ela conta como esta descoberta desencadeou uma jornada transformadora � procura das v�timas das atrocidades do av�.


Julie Lindahl nasceu no Rio de Janeiro, no fim da d�cada de 1960. As fotografias do �lbum de fam�lia mostram uma menina loirinha curtindo as praias brasileiras.

Filha de m�e alem� e pai americano, ela foi criada em dez pa�ses diferentes — e suas ra�zes acabaram se tornando uma quest�o central na sua vida.

Quando nasceu, seus av�s maternos, que eram alem�es, tamb�m moravam no Brasil. E ela desenvolveu uma rela��o muito pr�xima da av�.

"Ela era uma pessoa fascinante que viveu at� os 103 anos, nasceu antes da eclos�o da Primeira Guerra Mundial. E foi formada pela experi�ncia daquela guerra."

"N�s compartilh�vamos v�rios interesses, o amor pela natureza, pela literatura, pela boa m�sica", enumera.

Mas havia certos aspectos nela que a deixavam bastante desconfort�vel.

"Ela tinha pontos de vista sobre algumas pessoas, certos grupos de pessoas, que eram muito perturbadores. E isso era dif�cil. Eu queria receber seu afeto, j� que �ramos muito pr�ximas, mas ao mesmo tempo, eu tinha que ouvir coment�rios racistas bastante inc�modos."

J� o av�, Julie viu pela �ltima vez aos tr�s anos de idade, quando sua fam�lia deixou o Brasil. A foto acima, em que ela aparece segurando uma colher, � a �nica que ela tem ao lado dele.

Ele faleceu quando ela tinha nove anos. Mas deixou uma marca.

"Eu sabia muito pouco sobre ele, e procurava evitar esse assunto porque mencionar meu av� despertava muita emo��o, uma emo��o negativa, conflito e raiva na fam�lia — na minha m�e e nos irm�os dela, na minha av� tamb�m."

Sil�ncio inc�modo

A verdade � que a casa da fam�lia era repleta de coisas n�o ditas. Havia algo t�cito no ar, e Julie e a irm� sentiam isso desde pequenas.


Julie vestida de 'dirndl', traje típico alemão, em 1969, em São Paulo
Julie vestida de 'dirndl', traje t�pico alem�o, em 1969, em S�o Paulo (foto: Arquivo pessoal)

"Minhas rela��es familiares estavam sendo asfixiadas por algo de que eu n�o sabia o suficiente. Havia raiva e indigna��o sendo expressas ao meu redor", diz ela.

"E uma crian�a presume que fez algo errado quando os adultos est�o infelizes. A crian�a pensa: Eu fiz algo impronunci�vel."

Ela conta que acabou cultivando um sentimento de vergonha muito forte, que teve consequ�ncias para sua sa�de f�sica e mental.

"Eu tive anorexia, parei de comer por muitos anos. Foi uma esp�cie de autopuni��o pela vergonha", revela.

Resgatando o passado

Quando Julie se tornou m�e, ela come�ou a questionar o sil�ncio que rondava a hist�ria da fam�lia. E a promessa que fez ao pai, em seu leito de morte, teve um papel decisivo nesse processo:

"Meu pai me pediu: 'Cuide dos meus netos'."

"E eu pensei: Para fazer isso direito, vou ter que olhar para o passado, porque sinto que h� algo em mim que pode realmente fazer mal aos meus filhos, sentimentos de vergonha que podem fazer mal a eles", explica.

Julie decidiu ent�o confrontar o passado, seja l� qual fosse.

Ela sabia que a principal fonte de conflito na fam�lia girava em torno do nome do av� — e que ele e a av� haviam vivido na Pol�nia, territ�rio ocupado pela Alemanha nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.

"Me perturbava muito a lembran�a de certas conversas que havia tido com a minha av�, em que ela tentava me convencer que o Holocausto n�o havia acontecido, por exemplo. Ela tentava me convencer de que era uma conspira��o da m�dia mundial para depreciar a Alemanha", relembra.

A av� seria ent�o o ponto de partida para sua busca. E, certo dia, enquanto ela transcorria sobre a "vida maravilhosa que tinham na Pol�nia", Julie a interrompeu e foi direto ao ponto:

"Perguntei diretamente se meu av� havia feito parte da SS (a tropa de elite do Partido Nazista)."

"E ela respondeu: 'Claro que n�o, que ideia absurda'."

A verdade sobre os av�s

Mas a neta n�o se deu por satisfeita. Come�ou a estudar sobre a hist�ria do Terceiro Reich e as rela��es entre Pol�nia-Alemanha. E, em 2010, fez uma visita ao Arquivo Federal Alem�o, em Berlim.

"Achar qualquer coisa nos arquivos era como encontrar uma agulha no palheiro. Os nazistas foram muito bons em destruir seus pr�prios documentos, e os aliados foram muito bons em bombardear lugares onde os documentos estavam", explica.

Mas, para sua surpresa, foram encontradas 100 p�ginas de documenta��o a respeito do seu av� — e o conte�do era assustador.

Os documentos mostravam que ele havia sido um dos primeiros entusiastas do Partido Nazista — havia se filiado ao mesmo em 1931, antes mesmo de Adolf Hitler tomar o poder na Alemanha. E o classificavam como um membro leal e fan�tico da SS, a organiza��o paramilitar de elite nazista, conhecida pela brutalidade.

Se n�o bastasse tudo isso, os arquivos revelariam ainda algo mais sombrio, que Julie jamais poderia imaginar:

"O mais chocante de tudo, que eu realmente n�o esperava encontrar, porque n�o havia perguntado sobre minha av�, foram documentos preenchidos com a caligrafia dela, que reconheci das in�meras cartas e cart�es de anivers�rio que ela me enviou ao longo dos anos."

"Reconhecer (a caligrafia dela) foi profundamente chocante e triste", afirma.

Encontro com as v�timas

Dois anos depois, Julie visitou o Instituto de Mem�ria Nacional em Pozna, na Pol�nia, que forneceu a ela depoimentos de testemunhas, coletados em 1946, sobre as atrocidades cometidas por seu av�.

Durante a Segunda Guerra Mundial, ele tinha supervisionado propriedades rurais ocupadas pelos alem�es na Pol�nia, sendo respons�vel por pr�ticas de trabalho for�ado e tortura, al�m de ter sido c�mplice do assassinato da popula��o local.


O avô de Julie (no canto direito da foto) supervisionava o trabalho forçado em propriedades rurais ocupadas na Polônia
O av� de Julie (no canto direito da foto) supervisionava o trabalho for�ado em propriedades rurais ocupadas na Pol�nia (foto: Arquivo pessoal)

"Os documentos continham sobretudo depoimentos de pessoas que tinham vivido nas propriedade administradas por ele. Alguns relatos eram muito, muito espec�ficos... como (meu av�) ter espancado pessoas at� ficarem inconscientes."

Com a ajuda de Robert, um jovem arquivista e historiador polon�s, ela saiu em busca de fam�lias na zona rural da Pol�nia que haviam sido v�timas do av�.

"Nos documentos, havia sobrenomes e nomes completos de pessoas que testemunharam, e tamb�m nomes de v�timas."

"Robert corria no meio do campo, parava os tratores dos fazendeiros e mostrava os documentos, perguntando: 'Voc�s sabem onde essa e aquela fam�lia vivem?'", relembra.

Para sua surpresa, a estrat�gia funcionou — e eles conseguiram localizar algumas fam�lias.

"A primeira fam�lia que encontramos era, na verdade, um casal, e o homem tinha vivenciado a suserania do meu av� na propriedade, quando tinha uns 20 anos. E ficou sentado, me encarando, estava com raiva."

"Ele explicou algumas coisas que foram muito tristes de ouvir, sabe, que sua fam�lia havia sido torturada..."

"N�o fiz as coisas que o machucaram e provavelmente destru�ram a sua vida... Mas posso mostrar compaix�o", diz ela emocionada.

Ao fim da conversa, Julie conta que apertou a m�o dele e o agradeceu, enquanto ele parecia desconcertado com a atitude dela.

O segundo encontro — desta vez com um senhor de 90 anos, que sofria de dem�ncia — foi mais perturbador.

Enquanto Robert fazia as perguntas, o idoso parecia distante, dando respostas confusas — at� que algo na conversa o despertou:

"Quando Robert come�ou a dizer o sobrenome do meu av�, ele de repente entrou num t�nel do tempo e foi parar naquela �poca. Ele estava revivendo um momento que era claramente muito assustador, dizia algo sobre 'pessoas colocadas contra uma parede para serem baleadas'", relata.

"Eu disse a Robert: 'Temos que parar com essa entrevista agora, porque esse homem est� muito angustiado e isso n�o � justo, est� errado'."

A conversa foi ent�o interrompida, e o senhor se acalmou.

Depois desse epis�dio, Julie estava determinada a parar sua busca, mas Robert a convenceu a seguir adiante: havia mais uma fam�lia � sua espera.

Dessa vez, ela se deparou com um homem que era crian�a durante a ocupa��o da Pol�nia — e que estava disposto a contar tudo que havia visto e vivido.

"Ele era um menino de 10 anos na �poca, e seus pais e parentes trabalhavam nas propriedades (administradas por seu av�). Ele nos contou hist�rias de pessoas sendo espancadas at� perderem a consci�ncia, sendo gravemente maltratadas, ele mesmo tamb�m havia sido muito maltratado."


'A culpa e vergonha se transformaram em responsabilidade', diz Julie
'A culpa e vergonha se transformaram em responsabilidade', diz Julie (foto: Kajsa G�ransson)

Julie afirma que n�o come�ou essa jornada em busca de perd�o — mas, � medida que sua busca avan�ava, "um sentimento muito forte, um desejo de pedir perd�o, come�ou a vir � tona".

E quando foi se despedir daquele homem que havia testemunhado as atrocidades do seu av� na inf�ncia, algo que ele disse provocou uma transforma��o dentro dela:

"Quando nos levantamos para nos despedir, pensei: Vou me ajoelhar aqui mesmo. E ele me segurou de uma forma, foi uma coisa estranha, ele segurou meus bra�os, olhou nos meus olhos e disse: 'N�o foi sua culpa, voc� n�o fez nada'."

"Com aquele simples gesto e aquelas palavras, aquele homem abriu caminho para uma transforma��o: a culpa e vergonha se transformaram em responsabilidade", diz ela.

"A partir deste momento, a vida foi diferente."

A revela��o da av�

No ano seguinte, Julie decidiu abrir o jogo com a av� sobre o que havia descoberto a respeito do passado da fam�lia. Ela estava morando na Alemanha na �poca, e tinha 100 anos.

"Em algum lugar dentro dela, eu acreditava fervorosamente que havia uma pessoa que queria se manifestar, expressar arrependimento e dizer simplesmente: 'O que fizemos foi errado'. Teria sido o suficiente."

Mas n�o foi isso que aconteceu:

"Em vez disso, ela se endireitou na cadeira, olhou para mim, retraiu a m�o (que estava segurando a dela) e defendeu tudo o que eles fizeram, tudo que meu av� tinha feito. Ela disse que os (membros da) SS eram os homens mais lindos que j� pisaram na Terra."

"Foi um dos piores momentos da minha vida. Porque percebi que aquela pessoa que eu amava, que conhecera durante toda a minha vida, de quem me sentia t�o pr�xima, na verdade, eu n�o conhecia."

A av� de Julie morreu em 2014, pouco antes de completar 103 anos.

A neta passou sete anos pesquisando a hist�ria da fam�lia — e chegou a voltar ao Brasil para buscar informa��es sobre a vida dos av�s por aqui.

Julie conta sua jornada no livro The Pendulum: A Granddaughter's Search for Her Family's Forbidden Nazi Past ("O P�ndulo: A busca de Uma neta pelo passado nazista proibido da fam�lia", em tradu��o livre), uma hist�ria que ela acredita que tinha o dever de narrar.

Durante o lan�amento do livro na Su�cia, onde mora atualmente, ela conta que recebeu um telefonema marcante da filha que resume a sua busca:

"Ela disse: 'M�e, quero dizer o quanto estou orgulhosa de voc�!'"

"Para mim, esse foi um momento muito importante. Aquele sentimento de vergonha tinha sido substitu�do por um sentimento de orgulho por assumir responsabilidades. Era isso que eu procurava", afirma.

Atualmente, Julie dirige uma organiza��o sem fins lucrativos chamada Stories for Society, que tem o objetivo de ajudar jovens a entender melhor as quest�es sociais por meio de hist�rias narradas em grupo.

Ou�a aqui (em ingl�s) a �ntegra do programa de r�dio Outlook


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