
O Brasil acumula mais de 191 mil mortes por covid-19 desde o in�cio da pandemia. Mas epidemiologistas, matem�ticos e cientistas de dados calculam que o n�mero real � bem maior.
Mesmo as an�lises mais conservadoras desses profissionais indicam um excedente n�o contabilizado que ultrapassa a casa das dezenas de milhares de �bitos pela doen�a.
Embora a subnotifica��o seja um fen�meno que aconte�a em todo o mundo, no nosso pa�s ela apresenta caracter�sticas �nicas. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam uma enorme dificuldade para entender a origem e a metodologia dos dados disponibilizados pelo governo sobre a pandemia.
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"N�o basta informar o n�mero final. Precisamos de uma transpar�ncia de como essas informa��es s�o coletadas para que tenhamos tranquilidade de que elas realmente representam a realidade que estamos vivendo. A gente s� fica sabendo das coisas com atraso", critica o cientista de dados Isaac Schrarstzhaupt, coordenador da Rede An�lise Covid-19.
Mas, afinal, como � poss�vel calcular esse excesso de �bitos que foge das contas oficiais?
Mortes sem explica��o
Para responder a essa pergunta, o engenheiro Miguel Buelta, professor titular da Escola Polit�cnica da Universidade de S�o Paulo, recorreu aos registros brasileiros de �bitos por S�ndrome Aguda Respirat�ria Grave (SRAG).
Por lei, todos os hospitais s�o obrigados a notificar o governo quando uma morte por essa condi��o acontece em suas depend�ncias.
"Se compararmos o n�mero de mortes por SRAG em 2019 e em 2020, � poss�vel observar que neste ano h� um excedente enorme, mesmo quando subtra�mos a m�dia dos per�odos anteriores e os casos em que a covid-19 foi confirmada", afirma Buelta.
Em outras palavras, na compara��o com o passado recente, o n�mero de pessoas que n�o sobreviveu a um colapso das vias a�reas em 2020 foi muito maior. E, dentro desse contingente, h� uma quantidade enorme de �bitos em que o agente por tr�s do problema n�o foi identificado.
Vamos aos n�meros. Em 2019, o Brasil contabilizou 4.852 mortes por SRAG. J� no ano de 2020, o n�mero de �bitos por essa mesma condi��o estava em 229,1 mil at� o dia 1º de novembro. Desse total registrado, 151,5 mil tiveram a covid-19 confirmada.
Numa conta simples de subtra��o, d� pra concluir que cerca de 75 mil mortes por SRAG ocorridas ao longo dos �ltimos meses n�o tiveram sua origem esclarecida. Por�m, em um ano de pandemia, com alta circula��o de um novo tipo de coronav�rus, especialistas dizem ser poss�vel afirmar que a maioria dessas pessoas deve ter tido covid-19.
Fatores confundidores
E se forem, na verdade, pacientes de pneumonia? Buelta levou essa possibilidade em conta.
"Algumas pessoas argumentaram que, ao longo de 2020, o n�mero de mortes por pneumonia caiu no Brasil. Segundo essa linha de racioc�nio, os m�dicos estariam colocando com mais frequ�ncia a SRAG do que a pneumonia nos atestados de �bito", conta Buelta.
O engenheiro resolveu, ent�o, adicionar mais alguns n�meros na sua f�rmula. "Mesmo se acrescentarmos esse eventual fator de confus�o da pneumonia na conta, ele n�o � suficiente para explicar esse excedente todo de mortes por SRAG que observamos", diz.
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Vamos considerar um cen�rio considerado absurdo e irreal, em que 50% das mortes por SRAG notificadas no pa�s eram, na verdade, pneumonias n�o diagnosticadas. "Mesmo assim, ainda ter�amos uma subnotifica��o de mortes prov�veis por covid-19 na casa dos 30%", observa Buelta.
Os especialistas acreditam que a explica��o para essa queda nas mortes por pneumonia � muito mais simples: com as pessoas mais isoladas em casa (especialmente as crian�as, que em sua maioria n�o foram � escola nos �ltimos meses), a circula��o de outros agentes infecciosos relativamente comuns caiu no pa�s.
� prov�vel, portanto, que n�o apenas a pneumonia, mas doen�as como gripe, diarreia e resfriado tenham sido bem menos impactantes neste ano em rela��o aos per�odos anteriores.
Muito al�m dos dados oficiais
� preciso considerar que os c�lculos de subnotifica��o apresentados at� agora levam em conta apenas os dados dos pacientes que chegaram at� o hospital, onde a notifica��o de SRAG � compuls�ria.
"N�s sabemos que, ao longo de 2020, houve um excesso de mortes ocorridas em casa ou na rua, de indiv�duos que nem chegaram a receber um atendimento", aponta Schrarstzhaupt.

O cen�rio aqui fica um pouco mais nebuloso, pois n�o h� muita informa��o dispon�vel e confi�vel.
� poss�vel ter uma pista desse fen�meno no Portal Transpar�ncia, mantido pela Associa��o Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, entidade que representa os cart�rios brasileiros.
A base de dados revela que, em 2019, 272 mil brasileiros morreram por causas respirat�rias fora do ambiente hospitalar (na rua ou em casa, por exemplo). J� em 2020, esse n�mero est� em 323 mil, quase 50 mil �bitos a mais.
N�o � poss�vel, � claro, relacionar todo esse excedente � covid-19. Mas os especialistas indicam que o fato de ele aparecer justamente durante a pandemia � um sintoma de descompasso e poss�vel desatualiza��o das informa��es oficiais.
Segundo estimativas conservadoras dos tr�s entrevistados pela reportagem, somando-se as mortes por SRAG de causa n�o identificada mais as mortes fora do ambiente hospitalar, o total de mortes por covid-19 no pa�s at� agora deve ser mais de 50% superior �s estimativas oficiais.
O outro lado da hist�ria
A reportagem da BBC News Brasil entrou em contato com o Minist�rio da Sa�de para entender como o governo avalia essa quest�o da subnotifica��o de mortes por covid-19 no pa�s.
Por meio de nota, a assessoria de imprensa da pasta afirmou, sem entrar em detalhes, que h� um processo para fortalecer a rede de vigil�ncia de influenza e outros v�rus respirat�rios, "para cada vez mais qualificar a identifica��o de agentes etiol�gicos causadores de doen�as respirat�rias, como a covid-19, principalmente por t�cnicas de biologia molecular, incluindo mais tipos de v�rus nos diagn�sticos e com equipamentos capazes de um maior n�mero de processamento ao dia".
No texto, os representantes do minist�rio tamb�m apontaram que o processo de notifica��o n�o envolve apenas informar um novo caso. "Mesmo depois de inserido no sistema de informa��o, os t�cnicos retornam para atualizar as informa��es, bem como os resultados laboratoriais e assim encerrar os casos. O Minist�rio da Sa�de regularmente discute e fortalece a necessidade da notifica��o e digita��o oportuna dos casos suspeitos e confirmados para covid-19 com as equipes de vigil�ncia dos Estados".
Um problema generalizado
A subnotifica��o n�o � algo que acontece apenas no nosso pa�s. Na segunda-feira (28/12), a R�ssia admitiu que o n�mero de mortos em raz�o da covid-19 por l� era tr�s vezes maior do que apontavam as estat�sticas oficiais.
O governo de Vladimir Putin contabilizava 55 mil �bitos. Agora, representantes do Minist�rio da Sa�de russo calculam mais de 186 mil mortes pela doen�a, o que colocaria o pa�s em terceiro lugar no ranking global, s� atr�s de Brasil (em segundo) e Estados Unidos (em primeiro).
Nos �ltimos meses, outras na��es como a China, a Alemanha e a Coreia do Sul tamb�m corrigiram seus c�lculos e modificaram os n�meros divulgados at� ent�o.
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Ainda no contexto internacional, um estudo realizado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, avaliou o grau de subnotifica��o de mortes pelo coronav�rus em 91 pa�ses diferentes.
De acordo com os resultados, que est�o na fase de pr�-publica��o e ainda n�o foram avaliados por outros cientistas independentes, a defasagem nos dados acontece em maior ou menor grau em todos os lugares.
Na m�dia, estima-se que os n�meros de �bitos sejam 40% superiores ao que foi calculado at� o momento. Isso significaria um acr�scimo global de cerca de 700 mil mortes provocadas pela infec��o do Sars-CoV-2, o coronav�rus respons�vel pela pandemia atual.
A pesquisa do MIT, no entanto, destaca que n�o conseguiu incluir na an�lise tr�s pa�ses que sofreram ou sofrem bastante com a pandemia: China, Argentina e Brasil.
Segundo os autores, n�o foi poss�vel obter dados confi�veis sobre a covid-19 nesses tr�s pa�ses, especialmente em rela��o aos programas de testagem populacional.
Pandemia � brasileira
A falta de diagn�stico r�pido e preciso est� entre as grandes dificuldades por aqui. "Ao mesmo tempo em que vemos um aumento na notifica��o de mortes por SRAG n�o especificada no pa�s, desde agosto h� uma diminui��o de 10% a 15% ao m�s no n�mero de testes para detectar a covid-19", afirma o f�sico Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeir�o Preto da Universidade de S�o Paulo.
Sem a realiza��o de testes em larga escala, a tend�ncia � que a subnotifica��o das mortes s� aumente daqui pra diante.

Alves tamb�m identifica um atraso muito grande das secretarias estaduais de sa�de para disponibilizar seus dados. "O Rio de Janeiro, por exemplo, passou o m�s de novembro inteiro informando uma queda de novos casos de infec��o, enquanto as hospitaliza��es subiam. Precisamos que os respons�veis por esse processo sejam cuidadosos e honestos", aponta o f�sico.
O que janeiro nos reserva?
Schrarstzhaupt observa uma piora na disponibilidade de informa��es sobre o cen�rio da pandemia no Brasil a partir de novembro. "Conversamos com muitos profissionais e eles nos disseram que as equipes est�o reduzidas, h� um cansa�o geral e ainda ocorreu um ac�mulo e um atraso nas notifica��es que precisam ser feitas nos sistemas".
� preciso considerar aqui quest�es burocr�ticas. H� relatos de que os sistemas de inform�tica utilizados para computar as mortes n�o s�o nada f�ceis de operar e consomem muito tempo de trabalho.
Vivemos tamb�m o final do mandato de muitos prefeitos. Os novos respons�veis pela administra��o das cidades assumem a partir de janeiro e a troca dos secret�rios e das equipes na �rea de sa�de pode atravancar ainda mais esse processo.
Para completar, com o fim de ano, muitos funcion�rios do setor p�blico e privado tiram f�rias ou entram em recesso, restringindo ainda mais a m�o de obra necess�ria para manter tudo atualizado.
Com isso, eventuais quedas repentinas nos n�meros de casos e mortes por covid-19 observados nos �ltimos dias ou em fins de semana (e que podem se repetir daqui para a frente) podem ser artificiais e n�o representar a realidade.
"� prov�vel que a partir da segunda quinzena de janeiro todos esses dados que est�o represados apare�am de uma s� vez", antev� Schrarstzhaupt. "No atual est�gio da pandemia, tudo indica que vemos apenas a ponta do iceberg e h� muita coisa escondida por baixo desse mar de dados", completa o cientista.
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