A ‘ordem natural’ � os filhos enterrarem os pais, mas Eduardo discorda: “N�o existe isso, essa ordem” ele diz. Quando sua filha morreu, o m�dico e sua esposa psic�loga tentaram encontrar um grupo de apoio, para compartilharem a dor de perd�-la. Entretanto n�o tiveram sucesso nas pesquisas.
“At� mesmo porque, n�o existe um nome para isso. Filhos que perdem os pais s�o �rf�os. E os pais que perdem filhos? S�o o que?” questiona Eduardo. Sem encontrar um grupo existente, o casal decidiu montar a sua pr�pria rede de apoio. Na primeira reuni�o foram amigos e familiares e, aos poucos, outras pessoas apareceram com vontade de compartilhar suas dores.
No in�cio, era um grupo pequeno e se chamava ‘API’ (Apoio a Perdas Irrepar�veis), mas as reuni�es foram ganhando grandes adeptos, com pessoas de todo pa�s indicando e assim se transformou em uma rede. Atualmente a API conta com mais de sete mil fam�lias participantes e reuni�es em diversas partes do Brasil e, at�, fora dele.
O conceito de "perdas Irrepar�veis" foi sendo transformado a medida que o trabalho crescia, j� que uma das ideias centrais do projeto � reconfigurar o luto para algo que deve ser sentido sem sofrimento. Eduardo conta que “est� de luto at� hoje” pela filha. Mas o que ele sente � uma saudade boa, com mem�rias dos momentos que passaram juntos.
Partindo da ideia de reconstru��o do luto, o nome foi mudado para (Ir) Repar�veis, pois � poss�vel ressignificar a dor de uma forma positiva. Segundo Eduardo, “Em vez de superar o luto, � poss�vel elaborar o luto”. Glaucia tamb�m acredita nesse conceito e completa que “A ideia inicial do luto ter um tempo para acabar e depois n�o existir mais, � mentira. Aus�ncia n�o � falta, ela � presente”.
A psic�loga gosta de brincar com as palavras de in�cio ‘re’ e segundo ela, no luto os ‘res’ s�o importantes e presentes. “De modo geral, as pessoas chegam muito abatidas nas reuni�es e dizem que acabou para sempre. Mas a dor, que � enorme, pode ser reparada e transformada”, diz Glaucia.
As reuni�es aconteciam presencialmente antes da pandemia e sempre tinham pessoas novas para participar, por isso o ‘cronograma’ come�a com as apresenta��es dos novatos e suas respectivas hist�rias, caso queiram compartilhar. O casal refor�a que nenhuma atitude � obrigada, todos tem o direito de escolher. Ap�s esse in�cio, a conversa flui normalmente, mas sempre voltada para a troca de experi�ncias.
De acordo com Glaucia, a rede n�o � uma terapia, apesar de ser um trabalho terap�utico e coordenado por psic�logos, e tamb�m, n�o tem cunho religioso ou de doutrina��o. Pessoas de todas as religi�es podem participar e s�o respeitadas, n�o h� nenhuma distin��o, pois � um grupo para compartilhar a dor da perda de um ente querido.
Eduardo lembra que a maioria dos novos membros chegam se sentindo perdidos e questionando o motivo daquela situa��o. Na maioria das vezes algum antigo participante passou por algo similar e consegue, por meio de sua experi�ncia, acolher a fala do novato. Al�m disso, todos os participantes fazem uma escuta sem julgamentos e acabam por entender a necessidade da fala (ou n�o), do choro e demais rea��es que possam aparecer, uma vez que todos perderam algu�m que ainda amam.
A presen�a de um ‘amor eterno’ tamb�m � um ponto de vista do grupo. N�o � porque uma pessoa morreu, ela deve ser superada e esquecida. Eduardo, inclusive, diz lembrar da sua filha por diversas vezes e que "algu�m s� morre, quando a �ltima pessoa que lembra dela, morre tamb�m".
Para o casal, existem formas distintas de lidar com o luto e n�o h� uma receita a ser seguida. Alguns se apegam ao trabalho, religi�o, descobrem um novo hobby, dentre outros. Mas o importante � fazer aquilo que for menos doloroso. O luto deve ser vivido e n�o tem uma data para expirar, “A dor existe e nunca vai acabar, o que existe � uma dor sem sofrimento” diz Eduardo.
Pandemia
A pandemia tamb�m mudou a rotina dos encontros da API. As reuni�es presenciais, migraram para as salas online e possibilitaram que membros de outras localidades participassem do momento. O pico de mortes foi um choque para todos, e a falta do vel�rio para encerrar o ciclo de vida foi muito sentida pelos enlutados.
A psic�loga Glaucia, diz que “a COVID-19 trouxe uma ideia que todos n�s estamos abalados emocionalmente, isso requer um ajuste e adapta��o � condi��o nova. Ficar na lam�ria n�o garante nada e os vel�rios tradicionais n�o s�o a �nica op��o”, ela diz e completa que “� muito importante a rede neste momento. Estar com pessoas, mesmo que virtualmente faz bem. As pessoas se despediram com dos entes queridos de uma forma diferente”.
Glaucia lembra que a primeira participante do grupo que sofreu com as mudan�as da pandemia foi uma antiga amiga do casal, que inclusive, tinha perdido duas filhas antes deles. “Ela perdeu a m�e em outro estado e por causa da COVID, n�o pode fazer um vel�rio, foi algo at�pico. Em fun��o disso, ela pediu que parte da cerim�nia fosse gravada, para ver futuramente. Para ela, foi a maneira de lidar com o luto”, diz a psic�loga.
Ela acredita que muitas pessoas possam acreditar que algumas formas de lidar s�o t�tricas ou ‘estranhas’, mas garante que cada um tem sua maneira e todas devem ser respeitadas. A morte � um assunto tabu, entretanto Glaucia diz que: “Tudo aquilo que nasce, necessariamente, vai morrer e ao perder, temos o luto. N�o s� de morte, mas tamb�m de cren�as, ideias e projetos”.
Para participar do grupo, os interessados podem acessar o site da API, passar o n�mero de contato e receber�o, atrav�s dele, o link com um convite para participar da reuni�o no dia marcado.
Eduardo refor�a que as reuni�es querem, tamb�m, desconstruir a ideia que o vel�rio � necess�rio para elaborar o luto. � importante, mas n�o � essencial. E com as restri��es impostas pela pandemia, � ainda mais fundamental ressignificar a elabora��o e viv�ncia do luto.
A Rede API est� presente em Belo Horizonte (matriz), Sete Lagoas, Vit�ria (ES), Montes Claros, Bras�lia, Domingos Martins (ES), Goi�nia, Ribeir�o das Neves e Nova York. A expans�o se deu pelo interesse dos pr�prios frequentadores, que indicavam cada vez mais pessoas para participar das reuni�es. Mas voltando para suas cidades, tinham vontade de levar o projeto para a comunidade local e, segundo Glaucia, todos os coordenadores s�o psic�logos.
Reuni�es internacionais
A psic�loga Larissa Nogueira Campos, de 36 anos, mora fora do Brasil desde 2006 e passou 13 anos nos Estados Unidos. Apesar desse hist�rico, ela n�o conheceu a rede por meio da unidade em Nova York, mas pretende estar � frente da coordena��o na Alemanha, pa�s onde mora atualmente.
Segundo Larissa, ela conheceu o namorado alem�o enquanto morava no EUA e quando engravidou, eles se mudaram para a Alemanha. Desembarcando no pa�s aos seis meses de gravidez, ela estava sem a fam�lia ou amigos e tinha um contato virtual com todos eles.
Quando o pequeno Luca nasceu, ele estava doente, com v�rios �rg�os debilitados e foi direto para a UTI. Ficou internado e morreu um dia antes de completar 2 meses.
“Foi uma trag�dia, n�o sei nem explicar. Acho que entrei at� em depress�o, n�o conseguia fazer nada, s� me perguntar por qu� isso aconteceu” conta Larissa. “Em algum ponto desse luto, eu sabia que n�o ia dar conta sozinha e queria morrer. N�o quis tirar minha vida, mas eu pedia a Deus para me levar. A dor era muito forte”, completa.
Apesar do apoio do namorado, da fam�lia dele e do suporte virtual dos parentes, ela acredita que ningu�m estava entendendo o sentimento de uma m�e perder o filho t�o novo. Em buscas pela internet, ela encontrou grupos de apoio e v�deos de outras m�es contando suas hist�rias, mas tudo em ingl�s. At� que decidiu passar o natal no Brasil e chegando em Belo Horizonte, pesquisou por depoimentos em portugu�s e encontrou a Rede API.
A reuni�o que ela participou era uma celebra��o especial em mem�ria as pessoas que se foram muito jovens e todos acendem velas. Luca morreu outubro e tudo ainda era muito recente para Larissa, mas ela diz ter sentido um conforto que procurou em todo lugar e n�o teve. “Naquele grupo n�o tem julgamento. As pessoas te acolhem e transmitem uma energia de ‘estou aqui, te vendo. Consegui superar, voltei a sorrir, voc� consegue’” ela completa.
No dia, o namorado Felix Buck, estava presente, n�o falava nem uma palavra de portugu�s e chorou tanto quando Larissa. Segundo ele dava para ‘sentir a energia’ emocionante durante os relatos. “N�o tem errado, pode chorar sem medo. L� eu pude falar do meu filho sem tabu. Quando cheguei no Brasil, quase ningu�m foi me visitar, ningu�m tinha coragem nem de tocar no nome do meu filho” ela diz.

“Isso, pra mim, foi super dif�cil, mas as pessoas n�o t�m coragem de conversar, por n�o quererem te magoar. A partir daquele 8 de dezembro de 2019 eu comecei a melhorar e reconstruir meu luto” completa Larissa, que diz ter conhecido outra m�e com a mesma dor e ambas trocaram a experi�ncia. Al�m disso, ela afirma ter percebido que mesmo se o filho tivesse vivido v�rios anos, a dor n�o seria diferente, porque ‘n�o temos a pessoa amada de qualquer forma’.
Larissa manteve contato com o grupo mesmo ap�s voltar para a Alemanha, j� que os encontros passaram a ser virtuais em abril de 2020. Depois de refazer seu luto e reconstruir a vida, ela e o namorado est�o aguardando a chegada de mais um beb�, mas Luca est� presente na sua mem�ria de uma forma bonita, com os momentos que puderam estar juntos.
*Estagi�ria sob supervis�o do subeditor Jo�o Renato Faria