
Defendido pelo presidente Jair Bolsonaro como estrat�gia de combate ao coronav�rus, o chamado "kit covid" ou "tratamento precoce", na verdade, contribui para aumentar o n�mero de mortes de pacientes graves, disseram � BBC News Brasil diretores de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de refer�ncia.
"Muitos t�m sido salvos no Brasil com esse atendimento imediato. Neste pr�dio mesmo (Pal�cio do Planalto), mais de 200 pessoas contra�ram a Covid e quase todas, pelo que eu tenha conhecimento, inclusive eu, buscaram esse tratamento imediato com uma cesta de produtos como a ivermectina, a hidroxicloroquina, a Azitromicina", disse o presidente no in�cio do m�s.
Mas evid�ncias cient�ficas apontam que esses rem�dios n�o t�m efeito de preven��o ou tratamento precoce de covid. E m�dicos de hospitais de refer�ncia ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a defesa e o uso do "kit covid" contribuem de diferentes maneiras para aumentar as mortes no pa�s.
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O m�dico intensivista Ederlon Rezende, coordenador da UTI do Hospital do Servidor P�blico do Estado, em S�o Paulo, destaca que entre 80% e 85% das pessoas n�o v�o desenvolver forma grave de covid-19. Para esses pacientes, usar o "kit covid" n�o vai ajudar em nada. Tamb�m pode n�o prejudicar, se a pessoa n�o tomar doses excessivas, n�o desenvolver efeitos colaterais, nem tiver doen�as que possam se agravar com esses medicamentos.
Mas, para 15% ou 20% que precisam de interna��o, essas drogas, segundo ele, podem prejudicar o tratamento no hospital e contribuir para a morte de pacientes.

"A preocupa��o maior � com os 15% que desenvolvem forma grave da doen�a e acabam vindo para a UTI. � nesses pacientes que os afeitos adversos dessas drogas ocorrem com mais frequ�ncia e esses efeitos podem, sim, ter impacto na sobrevida", diz Rezende, que � ex-presidente da Associa��o de Medicina Intensiva Brasileira.
E o "Kit covid" tamb�m mata de maneira indireta, ao retardar a procura de atendimento pela popula��o, absorver dinheiro p�blico que poderia ir para a compra de medicamentos para intuba��o, e ao dominar a mensagem de combate � pandemia, enquanto protocolos nacionais de atendimento sequer foram adotados, disseram m�dicos intensivistas do Hospital das Cl�nicas, Albert Einstein e Emilio Ribas.
"Alguns prefeitos distribu�ram saquinho com o 'kit covid'. As pessoas mais cr�dulas achavam que tomando aquilo n�o iam pegar covid nunca e demoravam para procurar assist�ncia quando ficavam doentes", diz Carlos Carvalho, diretor da Divis�o de Pneumologia do Instituto do Cora��o do Hospital das Cl�nicas, em S�o Paulo.
Entre os efeitos da procura tardia por atendimento est� a intuba��o, quando o pulm�o j� est� muito lesionado pelo esfor�o para respirar. Pacientes que recebem m�scara de oxig�nio ou ventila��o mec�nica invasiva antes de chegar � insufici�ncia respirat�ria aguda t�m mais chances de sobreviver, explicam os m�dicos intensivistas.
"A falta de organiza��o central e as informa��es desconexas sobre medica��o sem efic�cia contribu�ram para a letalidade maior na nossa popula��o. N�o vou dizer que representa 1% ou 99% (das mortes), mas contribuiu", completa Carlos Carvalho, que tamb�m � professor da Faculdade de Medicina da USP.
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Efeitos colaterais em pacientes graves
A pneumologista Carmen Valente Barbas, que atua no Hospital das Cl�nicas e no Albert Einstein, em S�o Paulo, diz que a maioria das pessoas que ela atende atualmente dizem, na consulta, que tomaram medicamentos do chamado kit covid.
"A maior parte est� tomando essas medica��es. Em toda videoconsulta que eu fa�o, as pessoas dizem que est�o tomando e tomando em doses cavalares", disse � BBC News Brasil.
A maior preocupa��o dos m�dicos intensivistas � o efeito colateral desses medicamentos em pacientes que evoluem para a forma grave da covid e que j� est�o com o funcionamento de �rg�os vitais comprometidos.
"Esses rem�dios n�o ajudam, n�o impedem o quadro de intuba��o, e trazem efeitos colaterais, como hepatite, problema renal, mais infec��es bacterianas, diarreia, gastrite. E a intera��o entre esses medicamentos pode ser perigosa", completa Barbas, que � professora de medicina da USP e refer�ncia internacional em ventila��o mec�nica.
Entre os medicamentos mais defendidos por Bolsonaro para uso por pacientes com covid est�o a hidroxicloroquina, a azitromicina e a ivermectina.
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A hidroxicloroquina � um medicamento normalmente usado em pacientes com l�pus, artrite reumatoide, doen�as fotossens�veis e mal�ria. A ivermectina � um verm�fugo usado para combater vermes, piolhos e carrapatos.
J� azitromicina � um antibi�tico que, segundo os m�dicos, s� deveria ser usado em caso de infec��o bacteriana, n�o para previnir um v�rus.
Arritmia, del�rios e problema renal
O m�dico intensivista Ederlon Rezende chama a aten��o para o risco da hidroxicloroquina causar arritmia card�aca, um dos efeitos colaterais poss�veis do rem�dio.
Num paciente que evolui para quadro grave de covid, esse pode ser uma efeito adverso cr�tico, porque a doen�a causada pelo coronav�rus tamb�m afeta o cora��o, ao promover inflama��es do m�sculo card�aco e trombose nos vasos e tecidos.
Rezende diz ainda que tem tido problemas com pacientes que precisam ser sedados para intuba��o e que acordam da seda��o com confus�o mental mais acentuada por causa do uso abusivo de ivermectina antes de chegar ao hospital.
"O paciente, ao acordar da intuba��o, pode apresentar del�rio. Com pacientes com covid isso � muito frequente, porque o v�rus atravessa a barreira hematocef�lica e afeta o c�rebro, principalmente a regi�o frontal, causando inflama��o", diz.
"A invermectina � uma droga que tamb�m penetra no c�rebro quando ele est� inflamado, e ela deprime mais ainda o c�rebro e piora a qualidade do despertar de um paciente intubado. Essa tem sido uma intercorr�ncia frequente nos pacientes que usaram esse rem�dio antes chegar � UTI".
A ivermectina, diz ele, tamb�m pode provocar les�o renal, outro componente que dificulta a cura de um paciente grave de covid, j� que a doen�a tem potencial para provocar complica��es nos rins e demandar hemodi�lise.

"Em termos de risco de morte, eu daria destaque para a cloroquina e hidroxocloroquina, com potencial para provocar arritmias fatais. E invermectina, como j� comentei, com potencial de depress�o do sistema nervoso central, les�o hep�tica, les�o renal, entre outros."
Mais recentemente, Bolsonaro passou a citar a Nitazoxanide, conhecida como Annita, como candidata a integrar o kit covid. O problema, al�m de n�o haver qualquer evid�ncia cient�fica de efic�cia, � que as pessoas passaram a tomar esse verm�fugo junto com outro, a ivermectina, intoxicando o organismo, diz m�dica do Albert Einstein C�rmen Valente Barbas.
"A intera��o desses medicamentos, tomados juntos, � perigosa. As pessoas est�o tomando Annita junto com ivermectina e isso � um absurdo."
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Infec��es mais resistentes, aumentando risco de morte
Outro problema foi a inclus�o recente, no "kit covid", de corticoides. De fato, pesquisas mostram que corticoides ajudam a reduzir a mortalidade entre pacientes graves, que precisam de ventila��o mec�nica por m�scaras ou intuba��o.
Mas, no restante da popula��o, o uso pode provocar problemas s�rios.
"Para o paciente pouco sintom�tico ou assintom�tico, o corticoide pode at� baixar a imunidade e propiciar outras doen�as. E, muitas vezes, eles (autoridades locais) davam esse corticoide junto com antibi�tico", diz Carlos Carvalho, diretor da Divis�o de Pneumologia Hospital das Cl�nicas.
"Se, por azar, o doente piorar e tiver uma infec��o, ele vai ter uma infec��o mais grave por estar tomando rem�dio imunossupressor (coirticoide), e vai ter uma bact�ria resistente ao antibi�tico que ele queimou, usando inadequadamente."
O supervisor da UTI do Hospital Emilio Ribas, Jaques Sztajnbok, tamb�m diz que o uso "preventivo" de azitromicina e corticoide, como defendido pelos que advogam pelo "kit covid", causa mais mortalidade do que protege.
"Se voc� d� corticoide a paciente de covid sem necessidade, ele vai ter um desempenho pior. Ele morrer� mais do que se tivesse sido adequadamente tratado", disse � BBC News Brasil.
"Falsa seguran�a" leva � demora na busca por atendimento
Entre as contribui��es "indiretas" do kit covid para as mortes no Brasil est�, segundo os m�dicos intensivistas, a "falsa seguran�a" que esses medicamentos produzem, retardando a procura por atendimento m�dico.
Um problema recorrente nas UTIs brasileiras, dizem eles, � a chegada de pacientes em estado grave que, por se sentirem protegidos por hidroxicloroquina e afins, procuraram ajuda m�dica quando era tarde demais.
"Esse autotratamento d� uma falsa seguran�a e as pessoas tendem a retardar mais a procura de cuidados quando evolui para uma forma grave", diz Ederlon Rezende, que � ex-presidente da Associa��o Brasileira de Medicina Intensiva.

Entre os riscos de se procurar ajuda muito tarde est� lesionar o pulm�o a ponto de o problema n�o poder ser revertido com ventila��o mec�nica e intuba��o.
"Quanto maior o tempo decorrido entre a necessidade de terapia intensiva e a efetiva admiss�o ao leito de hospital, maior a mortalidade", destaca Jaques Sztajnbok, que chefia a UTI do Hospital Em�lio Ribas, em S�o Paulo.
A pneumologista Carmen Valente Barbas, que coordena equipes no Albert Einstein e Hospital das Cl�nicas, diz que a insufici�ncia respirat�ria aguda pode evoluir rapidamente para a morte.
"As pessoas est�o ficando com falta de ar em casa ou alugando oxig�nio em casa. O quadro pode se agravar muito rapidamente e ela pode morrer em casa, sem ter tempo de chegar ao hospital".
Foco em cloroquina tira recursos de tratamentos comprovados
Talvez a maior causa de morte causada pelo enfoque do governo federal em defender rem�dios n�o eficazes seja o gasto de dinheiro e tempo que poderiam ser usados na compra de equipamentos, vacinas e na produ��o de um protocolo nacional com orienta��es para o atendimento de pacientes graves com covid.
Diferentemente do que ocorreu em pa�ses europeus e nos Estados Unidos, passado um ano da pandemia, o Minist�rio da Sa�de n�o produziu um documento com informa��es para os profissionais de sa�de seguirem.
"Perdeu-se tempo discutindo tratamento precoce sem qualquer evid�ncia cient�fica e n�o se investiu em disseminar informa��o sobre tratamentos eficazes para pacientes graves, t�cnicas de identifica��o de insufici�ncia respirat�ria, uso da posi��o prona e outros", avalia o pesquisador da Fiocruz Fernando Bozza, autor de uma pesquisa que revelou que 80% dos pacientes intubados no Brasil em 2020 morreram.
Al�m disso, recursos que poderia ter sido usados para medicamentos necess�rios para intuba��o ou para criar leitos de UTIs foram gastos na compra de cloroquina e outros itens do chamado "tratamento precoce", sem comprova��o cient�fica .
Levantamento da BBC News Brasil mostrou que os gastos do governo Bolsonaro com cloroquina, hidroxicloroquina, Tamiflu, ivermectina, azitromicina e nitazoxanida somaram quase R$ 90 milh�es at� janeiro deste ano. Enquanto isso, m�dicos e associa��es farmac�uticas alertam que o estoque de medicamentos necess�rios para intuba��o est� perto de acabar.
A pneumologista Carmen Valente Barbas avalia que vidas poderiam ter sido salvas se os recursos fossem aplicados em solu��es cientificamente comprovadas.
"� gasto que podia estar sendo usado, tamb�m, para comprar vacina", lamenta.
"As fake news e toda a dissemina��o de desinforma��o sobre tratamentos sem efic�cia t�m esse duplo car�ter: leva informa��es falsas para a popula��o e tira a oportunidade de as melhores pr�ticas serem difundidas. Perdemos a oportunidade de investir e implementar pol�ticas baseadas em evid�ncias cient�ficas que poderiam salvar vidas", completa o m�dico infectologista Fernando Bozza, pesquisador da Fiocruz.
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