O uso do chamado kit covid, que re�ne medicamentos sem efic�cia contra a doen�a, mas que continua sendo prescrito por alguns m�dicos e propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro, levou cinco pacientes � fila do transplante de f�gado em S�o Paulo e est� sendo apontado como causa de ao menos tr�s mortes por hepatite causada por rem�dios, segundo m�dicos ouvidos pelo Estad�o.
Hemorragias, insufici�ncia renal e arritmias tamb�m est�o sendo observadas por profissionais de sa�de entre pessoas que fizeram uso desse grupo de drogas, que incluem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes. O aumento relatado por m�dicos de pacientes que chegam ao pronto-socorro com algum efeito relacionado ao uso desses rem�dios coincide com o agravamento da pandemia.
N�meros do Conselho Federal de Farm�cia (CFF) mostram que o total de unidades vendidas de ivermectina, por exemplo, subiu 557% em 2020 em compara��o com 2019, sendo dezembro o m�s recordista de vendas da droga. O rem�dio, indicado para tratar sarna e piolho, n�o teve sua efic�cia contra a covid comprovada. Seu uso contra o coronav�rus foi desaconselhado pela Ag�ncia Europeia de Medicamentos (EMA) e pelo pr�prio fabricante do produto, a Merck.
O produto, por�m, � um dos que foram utilizados pelos cinco pacientes que entraram na fila de transplante de f�gado. Todos eles haviam tido, semanas antes, diagn�stico de covid e receberam a prescri��o do chamado "tratamento precoce".
Pele amarelada
Quatro deles foram atendidos no Hospital das Cl�nicas da USP e o outro no HC da Unicamp. "Eles chegam com pele amarelada e com hist�rico de uso de ivermectina e antibi�ticos. Quando fazemos os exames no f�gado, vemos les�es compat�veis com hepatite medicamentosa. Vemos que esses rem�dios destru�ram os dutos biliares, que � por onde a bile passa para ser eliminada no intestino", diz Luiz Carneiro D'Albuquerque, chefe de transplantes de �rg�os abdominais do HC-USP e professor da universidade. Sem esses dutos, explica ele, subst�ncias que podem ser t�xicas ficam na circula��o sangu�nea, favorecendo quadros infecciosos graves. "O n�vel normal de bilirrubina � de 0,8 a 1. Um dos pacientes est� com mais de 40", conta ele.
D'Albuquerque conta que, dos quatro pacientes colocados na fila do transplante no HC, dois tiveram doen�a aguda e morreram antes da opera��o.
"� uma combina��o de altas dosagens com a intera��o de v�rios medicamentos. A subst�ncia desencadeia um processo em que a c�lula ataca outros c�lulas, levando a fibroses, que causam a destrui��o dos dutos biliares", diz Ilka Boin, professora da Unidade de Transplantes Hep�ticos do Hospital das Cl�nicas da Unicamp, onde um paciente aguarda transplante.
Os dois especialistas explicam que as bi�psias do f�gado desses pacientes evidenciam que os casos s�o de origem medicamentosa e n�o complica��es do pr�prio coronav�rus. "A covid pode atacar o �rg�o, mas de uma forma diferente. Ela causa pequenos trombos (co�gulos) nos vasos. Esse padr�o que encontramos � de les�o por medicamentos", diz Ilka.
H., de 57 anos, � um dos pacientes na fila. Ele conta que tinha a sa�de perfeita antes da covid e que nunca tomava rem�dios. "Nem aspirina." Ele conta que decidiu tomar os rem�dios do kit covid por causa de estudos preliminares que mostravam algum benef�cio da droga. "Fiz com acompanhamento m�dico, mas acho que n�o imaginavam que isso poderia ocorrer comigo, algu�m que n�o tinha nenhuma doen�a cr�nica."
Al�m de duas mortes de pacientes do HC-USP, um �bito por doen�a hep�tica aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre, relata a neurologista Verena Subtil Viuniski. "Era um paciente com quadro psiqui�trico que estava agitado e confuso e marcou um encaixe no ambulat�rio. As enzimas do f�gado estavam 30 vezes mais altas do que o normal. Dez dias antes, ele tinha tido covid e tomado rem�dios do kit."
O paciente foi levado para a emerg�ncia, onde come�ou a convulsionar. Exames revelaram que ele desenvolveu encefalopatia hep�tica, condi��o em que o c�rebro � deteriorado por toxinas que o f�gado n�o conseguiu filtrar. "� muito grave, dif�cil de reverter. Ele morreu no mesmo dia", diz Verena, que disse j� ter atendido outros seis casos de hepatite por medicamentos, ainda que menos graves. "Est�o dando uma salada de rem�dios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo."
Hemorragias e a insufici�ncia renal
Al�m dos casos de hepatite medicamentosa associada ao uso de drogas do kit covid, m�dicos relatam outros efeitos colaterais que v�m aparecendo em pacientes sem doen�as cr�nicas, mas que haviam utilizado os medicamentos.
M�dico nefrologista do Hospital das Cl�nicas da USP, Valmir Crestani Filho relata ter atendido pacientes com hemorragia e insufici�ncia renal ligadas direta ou indiretamente ao uso de medicamentos ineficazes contra a covid. Em um dos casos, o doente recebeu azitromicina e teve c�licas, diarreia e fortes dores abdominais, efeitos conhecidos do antibi�tico.
Ao procurar um servi�o de sa�de, o homem recebeu omeprazol para o al�vio dos sintomas e acabou desenvolvendo um quadro raro de insufici�ncia renal associada ao medicamento. "O omeprazol � uma medica��o boa, tem v�rias indica��es, mas existe uma complica��o rara que pode acontecer chamada nefrite intersticial aguda, que � como se fosse uma alergia nos rins", conta.
O paciente precisou ser internado para fazer algumas sess�es de di�lise e se recuperou. "Mas foi uma grande dificuldade, n�o tinha leito. � dif�cil esse quadro em uma situa��o de colapso", afirma.
O outro caso � de um paciente que recebeu prescri��o de anticoagulantes como tratamento precoce para a covid e acabou tendo uma hemorragia g�strica. O homem tamb�m precisou ser hospitalizado, mas se recuperou. Ele tinha um quadro de �lcera n�o diagnosticado e a medica��o acabou agravando o problema.
"A partir do momento que essas medica��es passam a ser usadas por milh�es de pessoas, esses efeitos, mesmo que raros, come�am a aparecer com mais frequ�ncia. Quando a gente prescreve um medicamento � porque os benef�cios s�o maiores que os riscos. Se esses rem�dios n�o t�m nenhum benef�cio contra a covid-19, todo efeito colateral foi em v�o", afirma.
O m�dico Gerson Salvador tamb�m atendeu na �ltima semana casos de efeitos colaterais de anticoagulantes. "Era uma paciente de 40 anos com covid confirmada usando dose alta do anticoagulante enoxaparina e outros medicamentos em casa. Veio com piora respirat�ria e com sangramento de origem pulmonar", conta.
Ele tamb�m relata casos de pacientes que, por estarem tomando as drogas do kit covid e julgarem estar protegidos de um agravamento da doen�a, demoram muito a procurar um hospital e surgem em estado grav�ssimo. "Em um dos �ltimos plant�es, atendi um paciente que estava tomando cloroquina e usando oxig�nio em casa. Ele chegou azul. Tive de intubar na hora", diz. / F.C.
'Rem�dio do Bolsonaro'
Confira a seguir o depoimento de C. (ela n�o quis ser identificada), filha de uma das v�timas do novo coronav�rus. "Fui diagnosticada com covid em dezembro e meu pai, como morava comigo, decidiu fazer o teste. Ele fez o PCR no dia 5 na Prevent Senior e foi orientado a esperar o resultado em casa. Mesmo sem sintomas nem teste positivo, ele recebeu o kit covid l� mesmo. Tinha azitromicina, cloroquina, vitaminas, corticoide. Ele tomou por cinco dias. Eu sabia que esses rem�dios n�o t�m efic�cia comprovada, mas como meu pai era muito teimoso por quest�es pol�ticas, nem adiantou eu falar. Ele disse que queria porque era o 'rem�dio do Bolsonaro'. O corticoide eu sabia que, se dado na fase inicial, pode at� piorar a resposta imune, mas n�o adiantava falar. No dia 13 de janeiro, ele come�ou a ter sintomas e fez um novo teste. Esse deu positivo. Ele voltou a tomar os rem�dios do kit, mas tr�s dias depois piorou e foi internado. Ele nem queria ir ao hospital, achava que estava bem. Acho que esse kit d� uma falsa sensa��o de seguran�a. No dia 19, ele teve duas paradas card�acas e foi intubado. Tr�s dias depois, morreu. A causa foi covid, mas a gente sempre fica pensando se esse monte de rem�dio pode ter diminu�do as chances dele."
As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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