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Estado de Minas EMILIANO MUNDRUCU

Racismo: o brasileiro por tr�s de a��o pioneira contra segrega��o nos EUA em 1833

H� quase 200 anos, um revolucion�rio pernambucano desafiou o racismo na Justi�a americana: conhe�a o resgate de sua hist�ria


11/05/2021 09:21 - atualizado 11/05/2021 09:45


A família Mundrucu não aceitou ser barrada de uma área exclusiva para brancos no navio Telegraph(foto: BBC)
A fam�lia Mundrucu n�o aceitou ser barrada de uma �rea exclusiva para brancos no navio Telegraph (foto: BBC)

Era um dia frio e chuvoso de novembro de 1832 quando o imigrante brasileiro Emiliano Mundrucu entrou no barco a vapor Telegraph com sua mulher Harriet e sua filha Emiliana, de apenas um ano. Segundo registros hist�ricos, a fam�lia acompanhava o brasileiro em uma viagem a trabalho da costa de Massachusetts, no nordeste dos Estados Unidos, at� a ilha de Nantucket.

Durante a travessia, Harriet, que se sentia mal, tentou buscar abrigo com sua filha numa �rea do navio exclusiva para mulheres — mas as duas foram barradas. O motivo? Eram negras, e a "cabine de senhoras", um ambiente confort�vel com beliches privativos, s� permitia mulheres brancas.

Naquele momento, pr�ticas segregacionistas separando brancos das pessoas "de cor" cresciam no norte dos Estados Unidos, onde a escravid�o j� n�o era permitida como no sul do pa�s. O objetivo era manter a ideia de inferioridade dos negros mesmo ap�s sua liberta��o, preservando a estrutura de privil�gios e domina��o em favor dos brancos.

Esse sistema se intensificou pelo pa�s ap�s a completa aboli��o da escravid�o em 1865, em um regime formal de segrega��o que s� foi proibido pelo Congresso americano um s�culo depois, em 1964, ap�s intensa luta negra por direitos civis.

Muito antes, por�m, a fam�lia Mundrucu, de pele parda, n�o aceitou passivamente ser barrada e o epis�dio acabou dando origem a um processo judicial pioneiro contra a segrega��o racial nos Estados Unidos.

A a��o impetrada em nome do brasileiro repercutiu amplamente na �poca, mas depois caiu no esquecimento e apenas nos �ltimos anos foi redescoberta por historiadores.

O caso foi parar na Justi�a depois que Harriet insistiu em entrar no local com sua beb�, enquanto Mundrucu discutia com o capit�o do barco, Edward Barker.

"Sua mulher n�o � uma senhora. Ela � uma N*", disse o capit�o a Mundrucu, usando uma express�o extremamente ofensiva para denominar pessoas negras.


Reportagem de 1833 anuncia a vitória de Mundrucu na primeira instância judicial(foto: Readex Newsbank)
Reportagem de 1833 anuncia a vit�ria de Mundrucu na primeira inst�ncia judicial (foto: Readex Newsbank)

O impasse chegou a ser momentaneamente interrompido porque uma tempestade obrigou o barco a retornar � costa. Ao voltar � embarca��o no dia seguinte, no entanto, o casal tentou mais uma vez que Harriet e Emiliana viajassem protegidas, ao inv�s de usarem a cabine da parte da frente do navio, um ambiente comum para homens e mulheres em que os passageiros tinham que dormir em colch�es, direto no ch�o molhado.

Mundrucu argumentava que elas tinham direito ao local mais confort�vel porque ele havia pago a tarifa mais cara para a viagem. Diante da irredutibilidade do capit�o, que mandou a fam�lia descer do barco, o brasileiro anunciou que levaria o caso � Justi�a.

De acordo com os arquivos do processo, Mundrucu prometeu "go and get a writ out immediately" — express�o que poderia ser traduzida na linguagem atual para: "Nos vemos no tribunal".

Foi assim que teve in�cio em Boston, capital de Massachusetts, um processo movido por Emiliano Mundrucu contra o capit�o Edward Barker, por quebra de contrato, caso que recebeu cobertura na primeira p�gina de jornais de Estados como Nova York, Pensilv�nia, Maryland, Carolina do Norte, e repercutiu at� na Europa.

O renomado abolicionista ingl�s Edward Abdy, por exemplo, condenou a "aristocracia da pele" de Boston ao reportar o caso para a imprensa brit�nica, conta o historiador sul-africano Lloyd Belton, que em dezembro publicou um artigo sobre a batalha judicial de Mundrucu na revista acad�mica Slavery & Abolition.

Belton estudou a vida de Mundrucu em seu mestrado na Universidade de Columbia (EUA) e agora aprofunda sua pesquisa em um doutorado na Universidade de Leeds (Reino Unido).

Embora pouco conhecido hoje, ele diz que o processo movido pelo brasileiro � a a��o mais antiga contra segrega��o racial que se tem informa��o at� o momento nos Estados Unidos. At� essa descoberta, a historiografia sobre o tema indicava que esses processos come�aram mais tarde, no in�cio dos anos 1840.

Mas por que justamente um brasileiro estaria por tr�s de uma a��o in�dita como essa? A resposta exige um mergulho nos diferentes tipos de discrimina��o vigentes nos dois pa�ses e na trajet�ria incomum de Mundrucu — um revolucion�rio pernambucano que deixou o Brasil para escapar da execu��o ap�s lutar na fracassada Confedera��o do Equador, tentativa de criar em 1824 uma rep�blica independente no Nordeste do Brasil e que ganharia esse nome pela proximidade do local com a linha que corta o globo em dois hemisf�rios.

"� incr�vel que um imigrante negro brasileiro tenha sido a primeira pessoa na hist�ria dos Estados Unidos a desafiar a segrega��o em um tribunal. E � ainda mais incr�vel que ningu�m saiba quem ele �. Nos anos 1830s, em Boston, as pessoas sabiam quem ele era. No Brasil, tamb�m", disse Belton � BBC News Brasil.

Tamb�m estudiosa da vida de Emiliano Mundrucu, a historiadora americana Caitlin Fitz, professora da Northwestern University, diz que n�o s� o processo judicial era pioneiro, mas tamb�m a a��o do casal no barco.

O conhecido epis�dio em que o ex-escravizado Frederick Douglass, um dos mais importantes ativistas negros da hist�ria americana, entrou em um vag�o exclusivo para brancos em um trem em Massachusetts e s� saiu removido � for�a ocorreu em 1841, quase uma d�cada depois.

"N�o � apenas o primeiro processo conhecido contra a segrega��o no transporte, � tamb�m uma medida radical realmente ousada de colocar seu corpo em risco, a bordo de um navio", afirma a americana.

O impacto do julgamento

Bem relacionado em Boston, Mundrucu foi representado no julgamento por juristas de peso. Um deles era David Lee Child, renomado abolicionista americano que falava portugu�s por ter atuado como diplomata em Portugal e se tornou seu amigo pr�ximo.

Outro foi o senador por Massachusetts Daniel Webster, que depois veio a ser Secret�rio de Estado de tr�s presidentes americanos (Henry Harrison, John Tyler e Millard Fillmore).

O argumento central do processo era "quebra de contrato", j� que Mundrucu pagou a passagem mais cara, mas seus advogados "tamb�m quiseram expor a inumanidade das pr�ticas segregacionistas", escreve o historiador Lloyd Belton em seu artigo.

Como a segrega��o no transporte p�blico n�o estava prevista em lei, Child e Webster "tentaram representar Barker como um aplicador desumano de regras arbitr�rias", nota o historiador.

"Nenhuma senhora na terra de Deus, nenhuma pessoa branca instru�da teria sido submetida a tal tratamento. A cor dos Mundrucus era sua �nica distin��o", sustentou Webster, segundo os registros do processo analisados por Belton.


Daniel Webster e David Lee Child, advogados de Mundrucu(foto: Biblioteca do Congresso dos EUA)
Daniel Webster e David Lee Child, advogados de Mundrucu (foto: Biblioteca do Congresso dos EUA)

Os advogados de Barker, por sua vez, rebateram dizendo que a segrega��o nos barcos a vapor era pr�tica comum na costa nordeste americana, argumento que foi refor�ado com depoimentos de capit�es de navios de Nova York e Rhode Island.

Al�m disso, eles usaram outras testemunhas para refor�ar que Emiliano e Harriet, embora n�o tivessem a pela escura, eram negros e s� conviviam em seu ciclo social com pessoas negras. Na leitura de Belton, era uma estrat�gia para indicar que Mundrucu "presumidamente conhecia seu lugar na sociedade".

Em outubro de 1833, o j�ri condenou Barker a pagar uma indeniza��o de US$ 125 a Mundrucu. Mas o capit�o conseguiu reverter a decis�o na Corte Judicial Suprema de Massachusetts, que considerou n�o haver provas de que Barker havia explicitamente concordado que a fam�lia viajasse nas melhores cabines. O brasileiro ainda foi condenado a pagar as custas processuais do capit�o.

Depois disso, nota Belton, o navio Telegraph passou a ter a segrega��o racial escrita em sua pol�tica de pre�os, de modo que negros s� podiam comprar as passagens mais baratas, para viajar na cabine comum e mais exposta do navio, enquanto os brancos s� podiam comprar as mais caras, com acesso �s melhores cabines.

"Outro amplo impacto do caso � que a atitude desafiadora de Mundrucu inspirou diretamente outros ativistas negros. David Ruggles, ativista afro-americano muito famoso, fez exatamente a mesma coisa que Mundrucu no mesmo barco alguns anos depois, em 1841", lembra o historiador.

Segundo Caitlin Fitz, outras empresas de transporte tamb�m passaram a prever expressamente em seus contratos a segrega��o racial nos anos seguintes. Por outro lado, isso levou os ativistas a usarem argumentos mais amplos contra o racismo nos processos judiciais, ou seja, indo al�m da queixa de quebra de contrato.

"O processo movido por Mundrucu acaba sendo um momento importante no desenvolvimento das t�ticas jur�dicas dos ativistas. Ele amplia seus horizontes, abre caminho para esses argumentos mais amplos que atacam a pr�pria base jur�dica da segrega��o em si", afirma.

Por que Mundrucu?


Pintura em homenagem a Mundrucu feita em 2020 pelo artista Moisés Patrício para o livro Enciclopédia Negra(foto: Moisés Patrício/Companhia das Letras)
Pintura em homenagem a Mundrucu feita em 2020 pelo artista Mois�s Patr�cio para o livro Enciclop�dia Negra (foto: Mois�s Patr�cio/Companhia das Letras)

O que explica que um exilado brasileiro, ao lado de sua mulher afro-americana, tenha tido um papel pioneiro na luta contra a segrega��o racial dos Estados Unidos?

Para os historiadores, a resposta � uma combina��o de fatores relacionada �s experi�ncias e trajet�ria incomuns de Mundrucu, um militar rebelde ou revolucion�rio, dependendo de que lado o definisse.

H� pouca informa��o sobre sua origem e n�o existem imagens conhecidas dele e de Harriet. A pesquisa hist�rica indica que ele nasceu em Pernambuco em 1791, filho de um homem com posses e uma mulher n�o branca, talvez uma das pessoas escravizadas por seu pai. Teve acesso � educa��o e ingressou na carreira militar.

O sobrenome Mundrucu — que aparece nos registros hist�ricos com algumas varia��es, entre elas Mundurucu — pode sugerir uma ascend�ncia ind�gena, relacionada ao povo Munduruku, que habita algumas partes da Amaz�nia.

Seu nome original, por�m, era Emiliano Felipe Ben�cio. O sobrenome Mundrucu (ou Mundurucu) foi incorporado em 1823 e seguia um costume entre revolucion�rios nas col�nias americanas de adotar nomes de povos origin�rios das Am�ricas como manifesta��o de uma nova identidade nacionalista e independente da Europa.

Depois de lutar na fracassada Confedera��o do Equador, ele deixou Recife rumo a Boston em uma fuga no meio do carnaval, a bordo do navio Hope (Esperan�a), possivelmente com a ajuda de Joseph Ray, ex-c�nsul dos EUA em Pernambuco, simp�tico a um regime republicano no Brasil.

Ap�s uma primeira passagem breve pelos Estados Unidos, Mundrucu viveu tamb�m cerca de seis meses no Haiti. Ele era um admirador da Revolu��o Haitiana, rebeli�o de escravos e negros livres que tornou a col�nia francesa independente da Fran�a em 1791.

Sem conseguir se estabelecer financeiramente por l�, o brasileiro seguiu para a Gr�-Col�mbia (atual Venezuela), onde viveu por cerca de um ano e meio. Voltou para Boston ap�s se frustrar com a dificuldade em obter apoio do movimento de liberta��o das col�nias espanholas liderado por Sim�n Bol�var para a cria��o da Rep�blica de Pernambuco.

Para Belton, essa trajet�ria internacional e sua experi�ncia no Brasil alimentaram sua indigna��o contra a segrega��o sofrida por sua fam�lia em Boston. Isso porque Mundrucu vinha de um pa�s onde tinha mais direitos do que o negro livre nos Estados Unidos, como a possibilidade de votar e de ingressar no Ex�rcito.

No Brasil, a discrimina��o foi historicamente constru�da com base em uma classifica��o mais subjetiva de tra�os f�sicos, como tom da pele, fei��es e tipo de cabelo, hoje chamada de colorismo. Ou seja, indiv�duos mais pr�ximos do padr�o branco tenderiam a sofrer menos preconceito. E, como no s�culo 19 a popula��o negra aqui era bem mais numerosa do que nos EUA, parte desse grupo conseguia se inserir em alguns espa�os de poder, como a carreira militar.

J� nos Estados Unidos, todo n�o branco, independentemente de qu�o escura fosse sua pele, era considerado "pessoa de cor", em um sistema mais r�gido de classifica��o racial que tornava muito dif�cil qualquer ascens�o social de negros.

Al�m da indigna��o provocada por essas diferen�as, outro fator que contribuiu para Mundrucu processar Barker, acredita Belton, � que o brasileiro j� tinha experi�ncia com o sistema de Justi�a americano. Ele vivia modestamente de um pequeno com�rcio de roupas de segunda m�o e esteve envolvido em vinte processos judiciais civis entre 1828-1832, todos relacionados �s suas atividades comerciais.

Para completar, ressalta o historiador, a rica rede de contatos estabelecida por Mundrucu em Boston, na comunidade abolicionista e na ma�onaria, tamb�m foi determinante para a batalha judicial.

Exilado, Mundrucu vive nos Estados Unidos, Haiti e Venezuela


Onde e quando Mundrucu viveu ao longo da vida (1791 a 1863)(foto: BBC)
Onde e quando Mundrucu viveu ao longo da vida (1791 a 1863) (foto: BBC)

Antes do processo judicial contra o capit�o do navio, Mundrucu j� havia sido pioneiro ao ser o primeiro negro a ingressar em uma loja ma��nica de Boston que at� ent�o s� aceitava brancos, conta Caitlin Fitz. Ela acredita que sua admiss�o contou com o apoio de seu futuro advogado David Lee Child, que fez a tradu��o da sua cerim�nia de inicia��o.

Na avalia��o da professora, o caso de Mundrucu se mostrou �til aos ativistas antissegrega��o por refor�ar seu discurso de que a opress�o racial nos Estados Unidos era pior do que em qualquer outro lugar, inclusive o Brasil.

O abolicionista ingl�s Edward Abdy, por exemplo, que conversou com Mundrucu antes do julgamento, escreveu que o racismo sofrido por ele em Boston "n�o era compar�vel a nada no seu pa�s (Brasil)", ao abordar o caso em seu Di�rio de resid�ncia e viagem nos Estado Unidos, publica��o de 1835 sobre a opress�o racial americana.

Essa compara��o, por�m, era "muito discut�vel", ressalta a professora. O Brasil foi o �ltimo pa�s das Am�ricas a abolir a escravid�o, em 1888.

"Mundrucu deu aos abolicionistas dos Estados Unidos evid�ncias para defender sua tese de que os Estados Unidos eram o pior do mundo, no que diz respeito � escravid�o e ao racismo. Essa � uma declara��o muito discut�vel, mas � politicamente �til para os abolicionistas americanos", nota Fitz.

Para a professora, as conex�es de Mundrucu e o modo como o embate ocorreu a bordo do navio Telegraph sugerem que a a��o pode ter sido inclusive premeditada, em parceria com outros ativistas.

"�s vezes presumimos que esses atos de resist�ncia eram espont�neos, que Emiliano e Harriet ficaram com raiva (ao reagir). Talvez tenham ficado com raiva, mas tamb�m eram pensadores pol�ticos estrat�gicos que estavam pensando com muito cuidado sobre a melhor maneira de trazer mudan�as nessas circunst�ncias", acredita.

Quem moveu o processo contra o capit�o foi Mundrucu, mas Caitlin Fitz destaca a import�ncia do papel de Harriet.

"N�o sabemos muito sobre Harriet. Ela era uma mulher de cor, educada, nascida em Boston. Podemos inferir que ela era bastante aventureira, porque afinal se casou com um revolucion�rio brasileiro que ainda estava aprendendo ingl�s. Era tamb�m incrivelmente corajosa e empenhada em lutar pela igualdade racial, j� que tentou repetidamente entrar na cabine de senhoras, colocando seu corpo na linha de frente", nota a professora.


Gravura de 1832 do barco Telegraph, navio em que a família Mundrucu foi barrada(foto: Ewen Collection)
Gravura de 1832 do barco Telegraph, navio em que a fam�lia Mundrucu foi barrada (foto: Ewen Collection)

A volta ao Brasil

Ap�s a decis�o favor�vel a Barker, a defesa de Mundrucu preparava um recurso para a Suprema Corte americana quando ele decidiu voltar ao Brasil em 1835 para retomar sua carreira no Ex�rcito. Isso foi poss�vel ap�s o governo brasileiro perdoar os revolucion�rios da Confedera��o do Equador, retirando a pena de morte contra ele.

Mundrucu, por�m, ficou apenas alguns anos no Brasil, retornando a Boston em 1841.

Embora tenha sido perdoado pelo governo regencial, o exilado n�o foi bem recebido por todos, em especial em parte da elite branca pernambucana, que guardava grande ressentimento da sua atua��o revolucion�ria em 1824. Isso porque Mundrucu era acusado de tentar atacar a popula��o branca abastada de Recife.

At� as recentes pesquisas de historiadores estrangeiros sobre a vida de Mundrucu em Boston, o pernambucano era pontualmente lembrado na historiografia brasileira por sua tentativa de trazer para a Confedera��o do Equador o esp�rito da Revolu��o Haitiana — rebeli�o que assombrava as elites brancas nas Am�ricas.

Mesmo a rec�m-lan�ada Enciclop�dia Negra, da Companhia das Letras, que dedica um verbete a Mundrucu, n�o menciona a pioneira a��o judicial movida por ele nos Estados Unidos.

Marco Morel, autor do livro A Revolu��o do Haiti e o Brasil escravista: O que n�o deve ser dito, � o historiador brasileiro que mais investigou a trajet�ria do revolucion�rio no Brasil.

De acordo com ele, as principais lideran�as da Confedera��o do Equador pertenciam � elite branca administrativa e agr�ria, mas houve alian�as com segmentos oprimidos social e racialmente, caso de Emiliano Mundrucu, que era major do Batalh�o dos Pardos.

A partir de relatos da �poca, Morel conta em seu livro que Mundrucu liderou o batalh�o numa tentativa de revidar um ataque inesperado das for�as imperiais ao porto de Recife. Essa a��o, por�m, incluiria uma agress�o � elite branca.

Segundo o historiador, foi planejado um "ataque ao com�rcio europeu nos bairros brancos centrais de Recife e o massacre dos referidos comerciantes e da popula��o branca abastada".

Com esse prop�sito, Mundrucu teria guiado sua tropa pelas ruas da cidade entoando uma can��o que buscava inspira��o em Henry Christophe, um dos principais l�deres da Revolu��o Haitiana.

"Qual eu imito Crist�v�o / Esse Imortal haitiano / Eia! Imitai o seu povo / Oh meu povo soberano", cantou o Batalh�o dos Pardos liderado por Mundrucu.


Gravura do séc. 19 mostra a cidade de Recife vista do Forte do Brum - Mundrucu foi impedido de comandar a fortaleza(foto: Biblioteca Nacional)
Gravura do s�c. 19 mostra a cidade de Recife vista do Forte do Brum - Mundrucu foi impedido de comandar a fortaleza (foto: Biblioteca Nacional)

A inten��o de atacar a popula��o branca de Recife atribu�da a Mundrucu n�o se concretizou por diverg�ncias dentro da pr�pria Confedera��o, ap�s o Batalh�o de Pardos ser dissuadido pelo Batalh�o de Homens Pretos, do major Agostinho Bezerra Cavalcanti.

Ainda assim, o epis�dio seguiu forte na mem�ria das elites pernambucanas, que chamavam Mundrucu de "o segundo Calabar", em refer�ncia ao portugu�s Domingos Calabar, que se uniu aos holandeses contra Portugal na invas�o ao Nordeste durante o per�odo colonial e tornou-se sin�nimo de traidor.

Foi nesse contexto que Mundrucu retorna dos EUA e sofre grande resist�ncia para subir na carreira militar. Ele chegou a ser indicado pelo governo regencial para comandar o Forte do Brum, importante fortaleza em Recife, mas n�o conseguiu assumir o posto ao sofrer intensos ataques de autoridades e oficiais pernambucanos.

Uma correspond�ncia an�nima, publicada com destaque no Di�rio de Pernambuco em fevereiro de 1837, por exemplo, atacava as qualifica��es de Mundrucu para o posto e afirmava que seus atos na Confedera��o do Equador tiveram "um car�ter t�o ominoso, e deixaram t�o profunda sensa��o nos �nimos de todos os homens, que o seu Comando na Fortaleza do Brum era um fundado motivo de sustos e sobressaltos; ningu�m se julgava seguro em seu sono e a desordem se pintava na imagina��o de todos com a mais horrenda e turva catadura."

Mais adiante, outro trecho da carta dizia que a nomea��o de Mundrucu para o posto militar estava "dando combust�o aos esp�ritos, dando lugar a que renas�a das cinzas uma intriga, que muito convinha n�o suscitar mais, porque h� indiv�duos que nenhum outro m�rito alegam sen�o a cor, como se essa devesse ser um privil�gio para obterem empregos, para os quais nem suas habilita��es, nem o conceito que merece do p�blico de modo algum os qualificam".


Vistas e costumes do Rio de Janeiro - aquarela de Sir Henry Chamberlain mostra hierarquia racial da sociedade brasileira(foto: Biblioteca Nacional/1822)
Vistas e costumes do Rio de Janeiro - aquarela de Sir Henry Chamberlain mostra hierarquia racial da sociedade brasileira (foto: Biblioteca Nacional/1822)

Mundrucu reagiu ao texto an�nimo com longa carta, em que dizia que sua nomea��o pelo governo buscava fazer valer a Constitui��o de 1824, para que "desapare�am os preju�zos de classe, ou de Cores". Por�m, continuava ele, com esses preju�zos "reinando infelizmente nessa prov�ncia (de Pernambuco), mais que em nenhuma outra, n�o pode o autor do comunicado, e outros de in�quos sentimentos, ver de bom grado um oficial pardo em um lugar de distin��o".

"Parece que no sentir destes s� julgam os Pardos, e Pretos, capazes nas ocasi�es de crise ou de perigo", rebatia ainda Mundrucu.

A carta evidencia como Mundrucu sentia que no Brasil, assim como em Boston, o preconceito contra sua cor o oprimia e limitava sua liberdade e suas conquistas.

Segundo Marco Morel, havia casos de outros homens negros que assumiram postos de comando militar no per�odo imperial, como Pedro Pedroso, que foi comandante das armas em Recife no in�cio do s�culo 19.

Para ele, a resist�ncia � nomea��o de Mundrucu refletiu o racismo da �poca, intensificado pela grande avers�o que havia a qualquer proximidade com ideais da Revolu��o Haitiana, um movimento que significava a completa subvers�o da ordem escravista.

O historiador ressalta que a segrega��o racial, embora no Brasil n�o fosse t�o expl�cita como nos EUA, se manifestava no cotidiano do pa�s.

Morel descreve em seu livro, por exemplo, o epis�dio em que o m�dico Joaquim C�ndido Meirelles, um homem mulato, passou a ser tamb�m acusado de "haitianismo" ap�s se opor em 1829 � separa��o dos doentes brancos e negros em alas diferentes da Santa Casa da Miseric�rdia do Rio de Janeiro, determinada pela dire��o do hospital.

A import�ncia do resgate hist�rico de Mundrucu

"Quase 200 anos atr�s um imigrante negro deu um passo contra a segrega��o nos Estados Unidos. Foi um momento muito importante na hist�ria americana e, de alguma forma, n�s nos esquecemos disso", constata o historiador Lloyd Belton.

O que explica esse apagamento? Para historiadores, o imigrante brasileiro — assim como outras lideran�as negras — caiu no esquecimento porque a hist�ria tem sido contada principalmente pelas elites, que focam suas narrativas em si mesmas. � por isso que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, os protagonistas hist�ricos geralmente s�o homens brancos.

"Eu diria sobre o esquecimento do Mundrucu a mesma coisa que digo sobre a Revolu��o do Haiti, que tamb�m � bastante desconhecida no Brasil. Acho que � uma mistura de preconceito e ignor�ncia, por que o preconceito cria um bloqueio que gera uma ignor�ncia", acredita Marco Morel.

"As pessoas n�o falam dele hoje n�o � porque sejam racistas, n�o falam porque n�o sabem que ele existiu. E n�o sabem que existiu porque houve um racismo (no passado) que bloqueou isso", explica o historiador.

Morel inicia o trecho sobre Mundrucu em seu livro o definindo como "figura hist�rica ao mesmo tempo instigante e mal conhecida". Agora, com as recentes descobertas sobre sua vida em Boston, o historiador diz que ele ganha nova dimens�o.

"Mundrucu entra para a galeria de personagens hist�ricos equivalente, por exemplo, ao marinheiro Jo�o C�ndido, da Revolta da Chibata, ou ao jangadeiro Francisco Nascimento, o Drag�o do Mar, ou ao jornalista Luiz Gama", diz, citando renomados negros brasileiros conhecidos por sua atua��o pelo fim da opress�o racial.

"S�o os her�is da plebe, que lutavam contra o preconceito racial e pela justi�a social. Ent�o, eu acho que Mundrucu finalmente est� sendo reconhecido numa posi��o que sempre foi a dele", refor�a.

Especialista em escravid�o e aboli��o no Brasil e Estados Unidos, a professora de hist�ria da Universidade Federal do Rec�ncavo da Bahia Luciana Brito considera importante o resgate da hist�ria de Mundrucu como exemplo de como os negros n�o aceitavam passivamente uma posi��o de "subalternidade".

Ela critica a narrativa hist�rica predominante no Brasil por colocar os abolicionistas brancos como protagonistas da luta contra a escravid�o, quando havia muitas lideran�as negras lutando contra o regime.

"Na nossa forma��o escolar e de senso comum sobre as pessoas escravizadas, h� uma fantasia da conformidade negra, dessa vontade de servir. A realidade nos mostra, atrav�s da hist�ria, que n�o era bem assim", afirma.

Para a professora, a hist�ria de Mundrucu nos Estados Unidos n�o deve ser lida como evid�ncia de que a opress�o racial l� era pior que aqui.

Na sua leitura, o Brasil n�o adotou um sistema expl�cito de segrega��o como o americano — que chegou a contar com leis de separa��o racial em v�rios Estados — porque tinha um n�mero muito maior de negros livres aqui.

De acordo com o projeto The Trans-Atlantic Slave Trade Database, um esfor�o internacional de cataloga��o de dados sobre o tr�fico negreiro, 389 mil escravizados desembarcaram nos EUA em navios vindos da �frica, menos de 10% do total levado ao Brasil (4,9 milh�es).

"No Brasil, desde sempre se p�de comprar alforria. Ent�o, no s�culo 19 havia uma vasta popula��o de negros libertos. Seria muito perigoso para as elites brasileiras implementar o mesmo regime de segrega��o que existia nos Estados Unidos, onde os negros eram uma minoria, como s�o at� hoje. Imagine o que � negar a cidadania para uma parcela da popula��o enorme", ressalta.

Segundo Brito, o grupo dos negros livres, tendo acesso a direitos no Brasil, acabava funcionando como uma "barreira de conten��o" contra a rebeli�o racial. "Nas duas sociedades, o ideal era ser branco, mas atrav�s de estrat�gias distintas", refor�a.


Petição pelo fim da segregação racial nas escolas de Boston assinada por Mundrucu em 1851(foto: Harvard Library)
Peti��o pelo fim da segrega��o racial nas escolas de Boston assinada por Mundrucu em 1851 (foto: Harvard Library)

Para Lloyd Belton, que pesquisa tamb�m a atua��o de outros imigrantes negros latino-americanos nos EUA, � preciso valorizar a contribui��o deles para a hist�ria americana, ainda mais considerando o aumento do preconceito contra os latinos durante o governo de Donald Trump (2017-2021)

"A hist�ria do Mundrucu mostra como bem conectadas as Am�ricas eram naquele tempo. O Brasil era conectado com a Venezuela, a Venezuela era conectada com o Haiti, o Haiti com os EUA. Esses ativistas negros eram uma popula��o muito m�vel. Podiam viajar, falar diferentes l�nguas", nota Belton.

"E ele n�o era o �nico. Havia outros imigrantes negros da Am�rica do Sul, do Caribe, que estavam em Boston, em Nova York, ou na Filad�lfia, e eles estavam envolvidos nessas comunidades ativistas que eram muito cosmopolitas", diz.

Nas duas d�cadas finais de sua vida em Boston, o brasileiro manteve-se atuante contra a escravid�o e na luta pelos direitos civis da popula��o negra. Um das suas bandeiras foi o fim da segrega��o das crian�as em escolas exclusivas para brancos e negros.

Mundrucu morreu em 1863, depois do presidente Abraham Lincoln assinar o Ato de Emancipa��o em janeiro daquele ano, determinando que os escravos dos Estados sulistas rebeldes eram livres e podiam lutar na guerra civil entre o Norte e o Sul.

Segundo Belton, Mundrucu celebrou esse an�ncio ao lado de Frederick Douglass, em um encontro da Union Progressive Association, um grupo abolicionista predominantemente negro do qual o brasileiro foi vice-presidente.

"Em 1863, Mundrucu e sua esposa eram muito respeitados por seus colegas bostonianos, negros e brancos. Ambos foram homenageados em seus respectivos obitu�rios, nos quais foram lembrados como generosos, de esp�rito p�blico e excepcionalmente viajados", ressalta Belton em outro artigo sobre a vida do brasileiro.


Túmulo do filho de Mundrucu em um cemitério católico de Boston. Belton acredita que o pai também está enterrado no local, mas lápide foi destruída(foto: Lloyd Belton)
T�mulo do filho de Mundrucu em um cemit�rio cat�lico de Boston. Belton acredita que o pai tamb�m est� enterrado no local, mas l�pide foi destru�da (foto: Lloyd Belton)

O sobrenome Mundrucu n�o parece ter sobrevivido nos Estados Unidos porque seus dois filhos homens morreram sem deixar descendentes. Uma das filhas do casal, Marie H. Mundrucu se casou com Thomas C. Scottron, integrante de uma influente fam�lia negra abolicionista.

Belton conseguiu localizar um dos descendentes desse casamento, Mary Linda Scottron-Savage, que aos 80 anos vive em Phoenix, Arizona. Assistente social aposentada, ela diz que � "fascinante" ser tetraneta do casal Mundrucu e acredita que o exemplo deles passou de gera��o em gera��o na fam�lia.

"O preconceito continua existindo nos Estados Unidos. Para mim, por�m, cada pessoa � um indiv�duo e eu cuido delas como pessoas. Isso � provavelmente algo que minha m�e e meu pai incutiram em mim. Ent�o, eu aprecio isso sobre Mundrucu", disse � BBC.


Mary Linda Scottron-Savage diz que é
Mary Linda Scottron-Savage diz que � "fascinante" ser tetraneta do casal Mundrucu (foto: Acervo familiar)


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